São Paulo, domingo, 28 de Agosto de 1949
Neste texto foi mantida a grafia original

O MARINHEIRO DE AMSTERDÃO

Guillaume Apollinaire

O brigue holandês "Alkamaar" voltava de Java, carregado de especiarias e outros artigos preciosos. Fez escala em Southampton e os marinheiros tiveram permissão para descer à terra.

Um dentre eles, Hendrijk Versteeg, levara um mico no ombro direito, um papagaio no esquerdo, e sobre as costas umas peças de tecidos híndus, que pensava vender na cidade, juntamente com os animais.

Era o começo da primavera e anoitecia cedo. Hendrijki Versteeg caminhava rapidamente pelas ruas um tanto nevoentas, iluminadas apenas pela luz do gás. O marinheiro pensava em seu proximo regresso a Amsterdão, em sua mãe, a qual fazia três anos que não via, em sua noiva, que o esperava em Monikendão. Calculava o dinheiro que lhe renderiam os animais e os tecidos e procurava uma loja onde vender essas exoticas mercadorias.

Na "Above Bar Street", um senhor muito bem posto o abordou e perguntou-lhe se procurava comprador para o papagaio.

- Esta ave - disse - me convinha. Preciso de alguem que me fale sem que eu deva responder-lhe, e vivo só.

Como quase todos os marinheiros holandêses, Hendrijk Versteeg falava inglês. Fixou um preço que o desconhecido aceitou.

- Siga-me - disse este -. Vivo bastante longe. O senhor porá o papagaio numa gaiola que tenho em casa. Mostrar-me-á seus tecidos e talvez eu encontre algum que me agrade.

Muito satisfeito, Hendrijk Versteeg seguiu o cavaleiro e, enquanto caminhavam, fez-lhe o elogio do mico, que pertencia, disse, a certa raça muito rara, cujos individuos se afeiçoam aos amos e resistem bem o clima da Inglaterra.

Muito depressa Hendrijk Versteeg deixou de falar. O desconhecido não lhe respondia e nem ao menos parecia escutá-lo.

Seguiram seu caminho em silencio, um ao lado do outro. Nostalgicos da selva natal, o mico, assustado pela neblina, gemia como um recem-nascido, e o papagaio agitava as asas.

Ao cabo de uma hora de andar, disse abrutamente o desconhecido:

- Já estamos perto de casa.

Estavam fora da cidade. Ladeavam o caminho grandes parques rodeados de grades; de quando em quando brilhavam entre as arvores as janelas de uma casa de campo e se ouvia às vezes, muito longe, o sinistro grito de uma sereia, no mar.

O desconhecido se deteve ante uma grade, tirou um chaveiro e abriu a cancela. Fechou-a depois que Hendrijk entrou.

O marinheiro estava inquieto. Via apenas, no fundo do jardim, uma pequena casa de aparencia bastante boa, mas cujas venezianas fechadas não deixavam transpassar nenhuma luz.

O cavaleiro silencioso, a casa sem vida, tudo isso era bastante lugubre. Mas Hendrijk lembou-se de que o desconhecido vivia só. "É um homem original" pensou; e como um marinheiro holandês não é bastante rico para que alguem pense em assaltá-lo envergonhou-se desse momentaneo temor.

- Se tem um fosforo, ilumine-me - disse o desconhecido, introduzindo uma chave na fechadura da porta da casa de campo.

O marinheiro obedeceu e, enquanto entravam, o desconhecido trouxe uma lanterna, que logo iluminou uma sala mobiliada com gosto.

Hendrijk Versteeg tinha recobrado a tranquilidade. Alimentara já a esperança de que seu estranho companheiro lhe compraria boa parte das fazendas.

O desconhecido, que havia saido da sala, voltou com a gaiola.

- Ponha aqui o papagaio - disse - . Por-lhe-ei um anel quando estiver amansado de todo e saiba dizer o que eu quero que diga.

Depois de haver fechado a gaiola, ordenou ao marinheiro que pegasse a lanterna e entrasse no quarto contiguo, onde havia, disse, uma mesa comoda para desembrulhar as fazendas.

Hendrijk Versteeg tinha recobrado a tranquilidade. Mal entrou a porta fechou-se atrás dele e a chave girou: estava preso.

Confuso deixou a lanterna sobre a mesa e quis investir contra a porta, para forçá-la. Uma vos o deteve:

- Um passo e eu o mato, marinheiro!

Levantando a cabeça, Hendrijk viu, por uma clarabóia que até então não havia notado, o cano de um revolver que o visava. Deteve-se aterrado.

Impossivel lutar. De nada lhe serviria sua faca; nem mesmo um revolver lhe teria servido para alguma coisa. O desconhecido disse:

- Escute-me bem e obedeça. O serviço forçado que o senhor me fará, terá recompensa. Mas a decisão é minha. O senhor me obedecerá cegamente; senão eu o matarei como a um cachorro. Abra a gaveta da mesa; encontrará um revolver de seis tiros, com cinco balas. Pegue-o.

O marinheiro holandês obedecia quase inconsicentemente. Em seu ombro, o mico gritava e tremia. O desconhecido continuou:

- No fundo do quarto há uma cortina. Descerre-a.

Descerrada a cortina, Hendrijk viu uma alcova; ali, amarrada de pés e mãos, sobre uma cama, uma mulher olhava-o com desespero.

- Desate essa mulher - disse o desconhecido - e tire-lhe a mordaça.

Executada a ordem, a mulher, jovem e de admiravel beleza, ajoelhou-se em frente à clarabóia, e gritou:

- Harry, é uma cilada infame. Tu me trouxeste aqui para me assassinar. Fingiste ter alugado esta casa para passarmos os primeiros tempos de nossa reconciliação, acreditei haver-te convencido. Acreditei que por fim estavas seguro de que nunca fui culpada. Harry, Harry, estou inocente!

- Não te creio - disse secamente o desconhecido.

- Harry, estou inocente - repetiu a moça com voz desolada.

- São tuas ultimas palavras; eu as registro cuidadosamente. Haverão de mas repetir toda a vida - a voz do desconhecido tremulou um pouco, mas imediatamente se firmou -, pois continuo te amando; se eu te amasse menos, eu mesmo te mataria. Mas isso me será impossivel, porque eu te amo... Agora, marinheiro, se não matar essa mulher antes que eu tenha contado até dez, cairá morto junto a ela. Um , dois, três, quatro...

Antes do desconhecido pudesse contar até cinco, Hendrijk fez fogo sobre a mulher que, sempre ajoelhada, olhava-o fixamente. A mulher caiu ao chão, de face. Recebera o tiro pela frente. Em seguida segundo disparo alcançou o marinheiro, na tempora direita. Hendrijk caiu contra a mesa, enquanto o mico com agudos gritos de espanto, se escondia em sua blusa.

No dia seguinte, alguns transeuntes ouviram gritos estranhos que saíam de uma casa de campo nos arredores de Southampton e avisaram a policia. Os agentes entraram na casa.

Encontraram os cadaveres da moça e do marinheiro. O mico saiu inopinadamente da blusa de seu amo e subiu sobre um dos policiais. Tanto os assustou, que estes recuaram e o mataram a tiros.

A justiça deu seu parecer. Parecia evidente que o marinheiro tinha matado a moça e depois se havia suicidado. Entretanto, as circunstancias do drama eram misteriosas. Não houve dificuldade em identificar os cadaveres. Perguntava-se como é que Lady Finngal, mulher de um par de reino, podia ter estado sozinha, numa isolada casa de campo, com um marinheiro que na vespera desembarcara em Southampton.

O proprietario da casa não pôde dar à justiça nenhuma informação satisfatoria. A casa de campo havia sido alugada, oito dias do drama, por um tal Collins de Manchester. Collins usava oculos e tinha uma longa barba loura que bem podia ser falsa.

O lorde chegou de Londres, a toda pressa. Adorava a sua mulher e seu desespero dava dó! Como a todos, o caso lhe parecia inexplicavel.

Desde estes acontecimentos retirou-se do mundo. Viveu em sua casa de Kensington, sem outra companhia que um empregado mudo e um papagaio que repete sem cessar:

- Harry, estou inocente!

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