São Paulo, domingo, 4 de outubro de 1964
Neste texto foi mantida a grafia original

AGENTE SECRETO

Carlos Heitor Cony

Os meus leitores de São Paulo sabem que o cronista esta sendo processado pelo ministro da Guerra, sob o rigor da Lei de Segurança Nacional. À margem do processo, de suas causas e fins, aconteceu-me o seguinte: depondo como testemunha de acusação, o secretario de Segurança da Guanabara declarou que, apesar de não conhecer nenhum fato ou indicio de vinculações minhas com qualquer grupo, entidade ou partido politico, podia afirmar que eu era um agente a soldo de uma determinada potencia estrangeira. Na hora, no meio de outras acusações, a coisa passou-me despercebida. No dia seguinte, lendo os jornais, vi destacada a frase, encimando a noticia: CONY É AGENTE SECRETO DE UMA POTENCIA ESTRANGEIRA.

Li a frase e deixei cair, perplexo, o jornal. Fui ao espelho, olhar a cara do agente secreto de cuja existencia acabara de tomar conhecimento. Vi a mesma cara ali no espelho, a cara abobalhada de sempre, intima, antiga, sofrida e palida. Nada naqueles olhos que revelasse sagacidade ou argucia. Talvez fosse um belo trabalho do agente, esse de mascarar-se em pacato cidadão. Mas ali estava, um personagem saido de Graham Greene ou de Ian Flemming - e à idéia do tipo padronizado pela literatura especializada, tentei sorrir com inteligencia e malicia. Saiu uma coisa ridicula, só mesmo decepando a minha cabeça e colocando outra no lugar é que poderia pretender adquirir um rictus de James Bond.

Bom, talvez a impressão fosse prejudicada pelo velho hábito de ver a mesma cara todas as manhãs. Fui olhar as minhas filhas, ver se me recebiam como a um sujeito sinistro e poderoso. Tentei caminhar com desenvoltura, abri a porta do quarto delas com cautela, como convem a um agente secreto. Elas dormiam ainda e as filhas de um agente dormem como todas as meninas dormem: em paz e em beleza.

_ "Nenhum homem é grande para o seu camareiro" _ pensei comigo mesmo. Dentro de casa ninguem acreditaria em minha internacional e secreta periculosidade. Na rua, a coisa seria diferente.

Foi. Parei numa calçada proibida e o guarda apareceu subitamente, exigindo-me documentos e explicações. Fuzilei o guarda com meu olhar mais sinistro e nem assim adiantou. A bronca foi humilhante e eu fiquei com a multa e a raiva.

Vim para a redação e aproveitei estar sozinho no elevador para compenetrar-me do meu importante papel. Entrei pela redação pisando nos pés, sem fazer ruido, enviando olhares pesquisadores em varias direções. Não adiantou. O Salviano me espinafrou na frente de todo mundo, por conta de um clichê extraviado e de uma legenda trocada - e me surpreendo humilde outra vez, sem misterio, quase puro, em busca da sagacidade e da legenda perdidas.
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