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Os meus leitores de São Paulo sabem que o cronista esta sendo
processado pelo ministro da Guerra, sob o rigor da Lei de Segurança
Nacional. À margem do processo, de suas causas e fins, aconteceu-me
o seguinte: depondo como testemunha de acusação, o
secretario de Segurança da Guanabara declarou que, apesar
de não conhecer nenhum fato ou indicio de vinculações
minhas com qualquer grupo, entidade ou partido politico, podia afirmar
que eu era um agente a soldo de uma determinada potencia estrangeira.
Na hora, no meio de outras acusações, a coisa passou-me
despercebida. No dia seguinte, lendo os jornais, vi destacada a
frase, encimando a noticia: CONY É AGENTE SECRETO DE UMA
POTENCIA ESTRANGEIRA.
Li a frase e deixei cair, perplexo, o jornal. Fui ao espelho, olhar
a cara do agente secreto de cuja existencia acabara de tomar conhecimento.
Vi a mesma cara ali no espelho, a cara abobalhada de sempre, intima,
antiga, sofrida e palida. Nada naqueles olhos que revelasse sagacidade
ou argucia. Talvez fosse um belo trabalho do agente, esse de mascarar-se
em pacato cidadão. Mas ali estava, um personagem saido de
Graham Greene ou de Ian Flemming - e à idéia do tipo
padronizado pela literatura especializada, tentei sorrir com inteligencia
e malicia. Saiu uma coisa ridicula, só mesmo decepando a
minha cabeça e colocando outra no lugar é que poderia
pretender adquirir um rictus de James Bond.
Bom, talvez a impressão fosse prejudicada pelo velho hábito
de ver a mesma cara todas as manhãs. Fui olhar as minhas
filhas, ver se me recebiam como a um sujeito sinistro e poderoso.
Tentei caminhar com desenvoltura, abri a porta do quarto delas com
cautela, como convem a um agente secreto. Elas dormiam ainda e as
filhas de um agente dormem como todas as meninas dormem: em paz
e em beleza.
_ "Nenhum homem é grande para o seu camareiro"
_ pensei comigo mesmo. Dentro de casa ninguem acreditaria em minha
internacional e secreta periculosidade. Na rua, a coisa seria diferente.
Foi. Parei numa calçada proibida e o guarda apareceu subitamente,
exigindo-me documentos e explicações. Fuzilei o guarda
com meu olhar mais sinistro e nem assim adiantou. A bronca foi humilhante
e eu fiquei com a multa e a raiva.
Vim para a redação e aproveitei estar sozinho no elevador
para compenetrar-me do meu importante papel. Entrei pela redação
pisando nos pés, sem fazer ruido, enviando olhares pesquisadores
em varias direções. Não adiantou. O Salviano
me espinafrou na frente de todo mundo, por conta de um clichê
extraviado e de uma legenda trocada - e me surpreendo humilde outra
vez, sem misterio, quase puro, em busca da sagacidade e da legenda
perdidas. |
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