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Estas são as linhas iniciais de um dos poemas mais famosos
da língua alemã, surgidos no periodo do após-guerra.
O autor, Paul Celan era, na época de sua publicação,
conhecido por um circulo pequeno de leitores. Com a Fuga da Morte
(Todesfuge) tornou-se, no entanto, não só nome
obrigatório em antologias, como também, um clássico
alemão moderno, cuja obra, curta e densa, passou a merecer
a prestimosa atenção de críticos e professores.
Essa predileção talvez possa ser explicada pelo desafio
que seus textos francamente obscuros e "herméticos"
oferecem aos dissecadores de toda poesia "dificil". Mas
é possível, também, que o que este poeta diz,
no seu código cifrado, exerça um poderoso apelo sobre
todos os que hoje se preocupam com o estatuto da linguagem - principalmente
com o da linguagem poética, que, marginalizada numa sociedade
tecnológica de preconceitos bem firmados sobre a "utilidade",
a "eficiência" e a "precisão" das
atividades do homem moderno, se descarta do discurso poetico e literário
como se êle não atendesse a mais nenhuma necessidade
humana. Acontece, porém, que a Fuga da Morte manipulava
um tema e um dilema que a lucidez contemporânea não
estava em condições de dispensar como inutil, pois
o poema de repente trazia à tona da linguagem e da consciência
lírica o horror dos campos de concentração
da Alemanha nazista. Desmentia-se, assim, a declaração
categórica de que depois de Auschwitz, não havia mais
lugar para a poesia no mundo. Pois havia - e com um dado a mais:
ela podia inclusive inscrever, no seu fechado universo de signos,
a própria realidade de Auschwitz. Celan foi o primeiro a
fazê-lo. Para isso tinha não só o instrumento
como a experiência concreta: seus pais tinham sido assassinados
num KZ e ele sobreviveu aos campos e à guerra para dar testemunho
do que vivera. Testemunho de poeta: arrancando do miolo das palavras
um vigor germinal que parecia pelo uso comum e irrefletido da língua
e dispondo-as em combinações móveis como acordes
numa fuga musical; chocando-as uma contra as outras, para que a
colisão surgisse num clarão repentino de percepção
e conhecimento: uma revelação. Esse objetivo não
comportava o apelo ao panfleto, que comumente dilui a veracidade
da emoção e da experiência profunda nos estereótipos
da linguagem-clichê. A denúncia é mais atuante
na medida em que, ameaçando desmantelar o universo verbal
pré-constituído, não dá margem às
acomodações de uma leitura digestiva e compele o leitor
a lidar com o desconhecido desconfortável, que é uma
linguagem "quebrada". Pois só assim é que
os preconceitos (os conceitos já cristalizados na
linguagem usada mecanicamente) se desarticulam e permitem a entrada
do novo na sensibilidade e na compreensão: uma novidade
"conhecida" transformada em choque através do arranjo
inesperado das palavras. Esse trabalho de afugentar os automatismos
com que tantas vezes deglutimos a História sem a menor angústia
(como acontece com a impessoalidade higiênica dos noticiários)
começa, no poema, já na primeira linha, quando o poeta
lança na página o leite negro da madrugada.
Sabemos, através da linguagem comum, que leite nenhum é
negro; no entanto, o poeta o diz sem cerimônias e temos que
aceitá-lo, intuindo obscuramente o peso dessa declaração.
No impacto somos levados a acatar a qualidade desse leite que nós
bebemos de dia e à noite. Veja-se bem: nós
é que o bebemos. É o poeta que já nos envolve
nessa vivência tenebrosa. A partir daí o único
recurso, que não seja uma fuga de consciência pesada
e desprezada, é acompanhá-lo. E nesse passo vamos
ao encontro do homem que "bole com cobras" e começamos
a partilhar de um destino. Destino de que tínhamos apenas
noticia - pelos jornais, pelos livros, pelas fotografias,
pelos documentários - mas que ainda não havíamos
vivido no mundo de uma comunicação verbal fora
de controle coletivo, de uma fala não acomodada
e por isso mesmo radical. Radical como a situação
destes homens concentrados diante de um juízo final mais
arbitrário do que a própria sintaxe que agora o re-constitui.
Pois esta ainda guarda as proporções de uma trabalhada
e penosa harmonia, ao passo que a outra, a real, a que permaneceu
gravada nas ordens de deportação e de extermínio,
essa sempre conservou um alvoroçado respeito pela objetividade
das normas consagradas. Mas é justamente pelas frestas desse
idioma fraturado que começam a sair os fragmentos liberados
de um cortejo irracional e no entanto verdadeiro: filas, mastins,
assobios, covas, fumaça de fornos crematórios, olhos
azuis, ordens, crepúsculo, cabelos dourados e cabelos em
cinzas - tudo jogado numa rede pródiga de repetições
e variações, exatamente como a música desse
"mestre da Alemanha", que é a Morte. Pois é
a técnica do contraponto musical que organiza e transmite
este poema, montado a partir de pontos que se separam, se
agrupam e se opõem, para novamente se unirem e separarem,
num trânsito complicado que, de repente, se imobiliza com
a bala de chumbo que "te acerta em cheio". A tensão,
no entanto, ainda está lá, na oposição
final de "cabelos dourados" e de "cabelos de cinzas".
São estes que, correndo paralelos, tema e contratema da peça,
transcendem o campo e seu séquito de aparições
para se firmarem, no espaço aberto pela linguagem desestereotipada,
como possibilidades de uma escolha.
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Paul
Celan é o pseudônimo literário de Paul Antschel,
nascido em Czernowtiz em 1920. Durante a ocupação
nazista, seu pais, judeus alemães, foram presos e mortos
em campos de concentração. Ele também foi
aprisionado, mas conseguiu fugir e passou a viver na União
Soviética. Terminada a guerra, voltou à Romênia,
de onde rumou para Paris, onde se estabeleceu e suicidou-se, em
1971. Sua obra, das mais importantes da lírica alemã
contemporânea, inclue os livros Papoula e Memoria, De Limiar
a Limiar, A Rosa-ninguém, Giro de Fôlego e Grade
de Linguagem, além de traduções de poetas
franceses e russos para a lingua alemã.
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