São Paulo, domingo, 9 de julho de 1950
Neste texto foi mantida a grafia original

A INVASÃO DOS MARCIANOS

Orson Welles relata a sua desastrosa radiofonização da "Guerra de dois mundos"

Um jornalista francês obteve, não faz muito tempo, um relato pormenorizado de Orson Welles, sobre a sua famosa e extraordinaria irradiação da "Guerra de Dois Mundo" e que deu origem a acontecimentos tragicos em varias cidades norte-americanos. Essa irradiação, por outro lado, fez revelar ao mundo o genio de Welles, que mais tarde se dedicaria ao cinema, onde pôde demonstrar sua capacidade realmente grandiosa. Eis o relato:

Em outubro de 1938 Orson Welles era um cenarista muito pouco conhecido na America. Certo dia resolveu propor à direção da "Columbia Broadcasting System" uma transmissão diferente: a adaptação radiofonica da "Guerra de Dois Mundos", de H. G. Wells. Essa irradiação foi feita às 20 horas do dia 30 de outubro daquele ano.

- "Eu julgava - disse Orson Welles ao jornalista - que somente crianças de 9 anos de idade ou debeis mentais poderiam levar a serio minhas elocubrações. Entretanto, em Nova York elas provocaram um panico inacreditavel..."


Como foi irradiada a historia

A "Guerra dos Dois Mundos" não havia sido incluida no programa daquele dia. Orson Welles teve que batalhar durante 15 dias, junto à direção da radio, para obter esse favor. Ele considerava que todo o interesse de sua transmissão dependia desse parti cular, isto é, de não figurar concerto executado pela orquestra de Ramon Raquello."

As previsões meteorologicas foram irradiadas na hora exata. "E agora - disse o locutor - nós nos transportaremos para o "Meridian Room", do Hotel Park Plaza, de Nova York, a fim de irradiarmos o no programa. Assim, o boletim publico da C.B.S., contendo o programa do dia, dizia apenas: 19h 45: Boletim Meteorologico; 20 h: Musica de dança; 20 h 45: Noticiario.


O truque de Welles

Mas, depois de alguns minutos de transmissão, houve uma interrupção brusca. Algum incidente tecnico (pensaram os 50 milhões de ouvintes. A voz de um locutor desconhecido anunciou: "A C.B.S. interrompe seu programa para anunciar aos ouvintes que um meteoro de grandes dimensões caiu em Grovers Hill, no Estado de Nova Jersey, a algumas milhas de Nova York."

O acontecimento provocou certa emoção. Mas a musica de dança recomeçou, normalmente. Pouco depois, nova interrupção. Desta vez o locutor entrevistava um professor de meteorologia sobre a origem dos meteoros.

Novo corte brusco: a C.B.S. cedia a antena a seu reporter, enviado especial a Grovers Hill. Ligeira confusão, pois ouviu-se a voz de Carl Philips. Em poucas palavras ele descreveu a cena: o meteoro jazia numa planicie imensa, que parecia ter escolhido para campo de pouso. Iluminado pelos faróis de milhares de automoveis reunidos, parecia uma locomotiva, brilhante, plantada sobre a terra. Mas subitamente - e a voz do locutor tornara-se apavorada - o enorme cilindro se abre e seres gigantescos, prolongados por tentaculos começam a sair de seu interior. A multidão concentrada ao redor, sente perpassar-lhe um calafrio. Incapaz de traduzir as impressões que se embaralham no seu cerebro, Carl Philips fala de formas que se aproximam, de atropelos. Depois a voz se perde no tumulto. Alguns segundos mais tarde ele cai, arrastando o microfone na queda, morto pela arma secreta dos seres saidos do cilindro: o raio mortal dos marcianos.

Um longo silencio sobre as ondas. Cem milhões de ouvintes largam o jornal que liam e manobram febrilmente o botão de volume de seus aparelhos. Nada. Depois de varias tentativas, ouve-se o prefixo indicativo da estação: cinco notas da C.B.S. De longe, ao piano, alguem toca o "Clair de Lune" de Debussy. Um novo silencio. Enfim, uma voz palida. Um locutor anuncia uma mensagem do general Montgomery Smith, comandante da Policia Federal de Nova Jersey:

"Uma imensa batalha está em curso, declara o general, entre invasores vindos do planeta Marte e a Policia do Estado. Os principais combates estão-se desenvolvendo em Watchung Hill." O general acrescenta que a lei marcial fora proclamada nas regiões de Princeton e de Jannesburg.


Pormenores demasiadamente barbaros

Um reporter desconhecido anuncia que testemunhas telefonaram imediatamente ao estudio relatando pormenores das operações em curso, e que tais detalhes são demasiadamente barbaros para serem irradiados. Há mortos. O "Clair de Lune" de Debussy, acompanhando essas noticias, é uma especie de fundo musical do fim do mundo.

São, agora, 20 h 25. Orson Welles está na Florida e ouve sua irradiação, cercado de amigos e bebendo uisque. Todos riem quando ouvem a declaração do general Smith. Mas no mesmo instante, em Nova York, os veteranos da Grande Guerra vestem apressadamente seus uniformes, abraçam suas familias e partem a fim de se colocarem a serviço do país. O Estado de Nova Jersey é tomado pela angustia: os quartéis dos bombeiros, os postos policiais, os hospitais, as salas de redação, são tomados de assalto por uma multidão super-excitada. Em Newmark, cidade mais proxima do campo de batalha, 50.000 pessoas deixam suas casas e correm, na noite, à procura de abrigos naturais. Nas igrejas os padres fazem orações. Orson Welles, na Florida, pensa que está fazendo morrer de riso todo o país. No Harlem, milhares de negros, vitimas de uma crise de histeria, abrem as janelas e se atiram na calçada. Em Pittsburgh há suicidios. Em Minneapolis uma mulher percorre as ruas, descabelada, anunciando o fim do mundo. Em Los Angeles, em Salt Lake City, em todas as cidades norte-americanas, propaga-se a noticia de que Nova York está ameaçada pelos "robots" vindos do planeta Marte. Em todos os pontos do país milhões de seres humanos preparam-se para morrer (O Instituto Gallup provará, mais tarde, que muito poucos escaparam a esta reação), sem se surpreenderem com a extraordinaria rapidez que a noticia foi difundida - apenas 18 minutos depois da queda do meteoro.

20 h 31. "Essa é a melhor passagem de minha vida" - disse Welles aos amigos que o cercavam, no apartamento, entre dois goles de uisque.

Uma proclamação do secretario de Estado do Interior:

- "Cidadãos! Não tentarei dissimular a gravidade da situação. Insisto no sentido de que todo o mundo, na atuais circunstancias, conserve o sangue frio. Cada um deve estar pronto para sacrificar sua propria vida. O objetivo desta luta tremenda que ora se trava é a supremacia da raça humana sobre a terra..."

As palavras continuam, a mesma idéia se repete sob vinte formas diferentes. A voz é meio surda, sob um fundo sonoro. Um locutor transmite, numa voz sonante, as ultimas noticias: destruição de Newmark, travessia do Hudson e avanço dos marcianos em direção a Nova York! A cidade dos arranha-céus está em perigo. Milhões de pessoas se aglomeram defronte ao estudio. As primeiras informações sobre o que se passa nas ruas, chegam à CBS. Orson Welles continua não sabendo de nada. Em Nova York pensa-se em interromper a irradiação. Chega-se a redigir, mesmo, rapidamente um projeto de comunicado, mas afinal verifica-se que sua divulgação acabará por aumentar ainda mais a confusão reinante.

Restam apenas três minutos para encerrar o programa. O diretor da estação, diante de sua mesa de escuta, tem a impressão de ter desencadeado um verdadeiro cataclisma que agora escapa completamente ao seu controle. Parar é impossivel. Corajosamente, ele dá a ordem:

- "Prossigam!"

E a irradiação prossegue:

"A invasão se completa - declara agora uma voz do outro mundo. Os marcianos, após atravessarem o Hudson, penetram agora nas ruas de Nova York. Nuvens homicidas de um gás desconhecido envolvem a cidade e penetram nos arranha-céus pelas janelas superiores. Toda resistencia organizada cessou da parte do genero humano."

É o fim de Nova York. No microfone, a voz do locutor vai sumindo, até desaparecer. Seus pulmões, atacados pelo gás da morte, permitem-lhe apenas mais algumas palavras para descrever a agonia da cidade e a aparição triunfante dos vencedores, suas silhuetas brilhantes, metalicas. Nas calçadas abrem-se buracos. O locutor não pode mais: cai, arrastando o microfone consigo.

Silencio. Ao longe, ouve-se uma sirene de navio que provavelmente tenta singrar os mares levando milhares de refugiados. Depois ouve-se o apelo desesperado do radio de bordo, tentando pôr-se em comunicação com a terra:

- "Aqui chama 2 X 2 CQ Nova York. Aqui chama 2 X 2 CQ. Alô, alô!... Alô..."

Essa mensagem desesperada faz Orson Welles rir, mas apavora toda a America. Em Washington uma mulher enlouquece. A irradiação termina. Depois de cinco segundos de silencio, a voz de um locutor lê o seguinte texto:

- "Acabaram de ouvir a primeira parte de uma irradiação de Orson Welles, que radiofonizou a "Guerra de Dois Mundos", do famoso escritor inglês H. G. Wells."

Depois daquele dia, houve uma vaga de diretor na C.B.S. e uma cidadão tornou-se celebre em todo o mundo:

- Esse cidadão sou eu - diz Orson Welles sorrindo, ao jornalista francês.
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