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Marcel
Duchamp (1887-1968) é suficientemente reconhecido pelos manuais
de artes plásticas para que se possa dizer algo de novo sobre
sua produção eclética e invariavelmente inconformista. Não foi
bem para explicar telas, esculturas e objetos que o governo francês
o escolheu para a exposição inaugural do Centro Pompidou (aberto
por aqui há um mês). Trata-se - com o perdão da palavra - de uma
homenagem. Duchamp faz parte deste punhado reduzido de artistas
que a merece.
Basta citar a maneira com que, em 1912 ("Nu descendo uma escada"),
ele transpôs a idéia de movimento para a superfície cronologicamente
fixa de uma tela. Inspirado nas "cronofotografias" - reprodução
dos movimentos do corpo humano pela exposição sucessiva de um
negativo na mesma câmara fotográfica - encadeou várias imagens
de um modelo feminino, devidamente subvertido pelo abandono do
figurativismo acadêmico.
Na época, o trabalho de Duchamp era associado ao futurismo dos
italianos Boccioni ou Balla. Mas, em verdade, suas pesquisas já
tomavam um rumo praticamente inclassificável. Como por
exemplo ao conceber em 1913 seu primeiro "ready-made" - arranjo
num espaço tridimensional de objetos devidamente deslocados de
seus contextos originais. Imigrando para os Estados Unidos - onde
se naturalizou - une-se a pessoas como Man Ray ou Calder para
uma sucessão de experiências que fizeram escola e se encontraram
hoje na base de toda uma revolução estética. O que dizer, por
exemplo, de alguém que, em 1917, concebe uma "fonte" que não passa
do aproveitamento de um urinol de cerâmica branca? Ou então da
capa plástica de uma máquina de escrever, ironicamente intitulada,
no mesmo ano, "bagagem"?
Marcel Duchamp - amante do xadrez e da geometria - concebeu em
1935 uma série de discos que, ao serem movimentados, valem como
um bailado de formas curvas, como num caleidoscópio de movimentos
harmônicos; coisa hoje banalizada pelos inúmeros imitadores. Também
usando discos, gravava frases montadas em espiral, com trocadilhos
e aproximação de palavras quase homofônicas, numa espécie de poesia
cinética extremamente curiosa. E o que ocorre com duas expressões
como "un mot de reine" (uma palavra de rainha) e "des maux de
reins" (dores nos rins); os demais exemplos seriam intraduzíveis.
Esculpe em alto-relevo pedaços da anatomia feminina, trabalha
com o vidro para a produção de formas cuidadosamente inúteis,
transforma o olhar enigmático de Mona Lisa e outras experiências
pouco ortodoxas para um artista que, ainda adolescente, conformava-se
com uma pintura acadêmica (segundo a ilusão de reprodução do real).
Há duas dezenas de ensaios publicados só na França sobre suas
experiências. O catálogo completo de sua obra ocupa quatro volumes.
É difícil falar de Marcel Duchamp, sem correr o risco de deixar
de lado milhões de coisas essenciais. Logo, contento-me em dizer
que ele está sendo homenageado pelo governo francês no quinto
andar do Centro Pompidou.
João Batista Natali, correspondente em
Paris
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