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Não é tão raro quanto parece o caso dum poeta
moderno ser bom prosador, e vice-versa. Basta citar na Inglaterra
Thomas Hardy, na França Milosz, e entre nós Vinicius
de Morais e Carlos Drummond de Andrade. Acontece, porem, que quase
sempre tais estados não são simultaneos, como no autor
de Judas - o Obscuro, que abandonou definitivamente a prosa
para escrever poesia. Outrossim, às vezes a prosa sai com
intromissão poetica involuntaria, como no romance A Iniciação
Amorosa do poeta dos Arcanos.
Clima de conversa tipica, dando porem à prosa um sentido
plastico diferente, sem quaisquer semelhanças com o processo
de elaboração poetica, isso então é
rarissimo, mas "acontece" _ não eventualmente _
e de maneira muito peculiar em Carlos Drummond de Andrade. Pode-se
mesmo dizer que a "divagação", os estados
de alma em que tal divagação é feita, os elementos
observados e colhidos, serão de natureza e de sensibilidade
poetica. Mas o trato, embora não descendo ao imediatismo
da cronica, é da mais saborosa prosa intima, quase uma grafia
do fluxo do pensamento.
Confissões de Minas evidentemente nada tem do estilo
de fundo de arca, nem cheira a canfora ou naftalina. É antes
um para-brisa limpido que uma velocidade de feria e de fuga leva
para dentro das paisagens tratadas de maneira tão diferente,
por exemplo, da rapsodia rembrandteana (se assim se poder dizer)
dum Dantas Mota.
Já os Contos do Aprendiz nos tinham dado a medida
do grande prosador e artifice do conto perfeito, dos melhores de
nossas letras.
Mas humano, fundamentalmente drummondeano, de agora, de sua solidão
rica, verdadeira inspecção de avô precoce pelo
reino natural por onde o neto viverá, é esta serie
de Passeios na Ilha, que como trabalho bibliografico honra
a Organização Simões e que na nossa
historiografia literaria de 1952 fecha a simetria da produção
de Carlos Drummond de Andrade, até então impar com
o Claro Enigma. Como indice psicologico os dois livros se
completam, porque registram um estado intimista beirando a memoria
e a confissão. Claro Enigma de fato reflete em misterio
realidades da alma, ao passo que Passeios na Ilha é
um mundo exterior refletido nessa alma.
Como em tudo que advem de Carlos Drummond de Andrade, é preciso
aproveitarmos a didatica que ele apresenta sem querer, antes de
aproveitarmos o mais. É que cada remessa, desde a embalagem
até o material da safra, tem que ser funcionalmente avaliada
para vantagem do leitor, por causa do carimbo "Made in Joaquim
Nabuco Street".
A primeira coisa, na apresentação do novo livro, é
quem o escreveu continua sendo um aprendiz de magico em potencial,
já que confessa, ao nos introduzir nessa linha real do nowhere:
"Quando me acontecer alguma pecunia, passante de um milhão
de cruzeiros, compro uma ilha". Ante tal assertiva, o leitor
se engaja logo.
Esse modo "bem de convés, de chamar ilha a arquipelagos"
é um mal necessario pelas surpresas que visa esconder quem
assim usa. Pois na verdade passeiamos invisiveis, não querendo
turvar a serenidade e os soliloquios de quem nos leva sob a condição
previa de mutismo. A verdade é que nos habituamos a tal companhia,
fazendo tudo por merecê-la, recebemos logo da simpatia humana
desse solitario antilugubre as vantagens mais ricas, não
raro combinamos escaladas ao Alto da Boa Vista, chegamos mesmo a
ser admitidos em salas e bibliotecas de seus contemporaneos mais
afins, como Manuel Bandeira, Americo Facó, João Alphonsus
e Raul Bopp. Aproveitamos tambem a oportunidade duma viagem até
Belo Horizonte, onde ele vista pachorrentamente Emilio Moura ou
vai à casa de Henriqueta Lisboa, não mais no jardim
com jatoticabas mas no apartamento com discos.
Como se não bastasse -_que tantas são as vantagens
da gente aproveitar _ o aprendiz de magico leva-nos até a
poetisa Maria Isabel, criatura mistica porem real e humana como
Simone Weil, que não reza egoisticamente para uma ascese
individual, mas que em seus poemas nos quer a todos fazendo coro
serafico em torno de temas dirigidos por Bremond.
Outra manifestação deste livro de cronicas do poeta
de Sentimento do Mundo é o ritmo domingueiro de sua
prosa. Isto é, essa especie de conversa de domingo, num peitoril,
num pomar, numa saleta, onde cada pagina nos mostra que o solitario
amanuense de si mesmo, em tarefa total de semana, se entremostra
com periodos ou fases iguais, mas nunca em minguante. E então
a sua prosa explica a sua condição poetica de comunicabilidade.
Não a comunicabilidade por enigmas e simbolos, mas pela espontaneidade
de longas horas tranquilas, onde embora haja "renuncia ao desejo
de influir e de atrair", Carlos Drummond de Andrade consegue
paradoxalmente fazer dos leitores mais do que companheiros, cumplices
do "gosto de se pensar sozinho, que é ato individual,
como nascer e morrer". |
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