São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1952
Neste texto foi mantida a grafia original

"PASSEIOS NA ILHA"

"Divagações sobre a vida literaria e outras materias"

Não é tão raro quanto parece o caso dum poeta moderno ser bom prosador, e vice-versa. Basta citar na Inglaterra Thomas Hardy, na França Milosz, e entre nós Vinicius de Morais e Carlos Drummond de Andrade. Acontece, porem, que quase sempre tais estados não são simultaneos, como no autor de Judas - o Obscuro, que abandonou definitivamente a prosa para escrever poesia. Outrossim, às vezes a prosa sai com intromissão poetica involuntaria, como no romance A Iniciação Amorosa do poeta dos Arcanos.

Clima de conversa tipica, dando porem à prosa um sentido plastico diferente, sem quaisquer semelhanças com o processo de elaboração poetica, isso então é rarissimo, mas "acontece" _ não eventualmente _ e de maneira muito peculiar em Carlos Drummond de Andrade. Pode-se mesmo dizer que a "divagação", os estados de alma em que tal divagação é feita, os elementos observados e colhidos, serão de natureza e de sensibilidade poetica. Mas o trato, embora não descendo ao imediatismo da cronica, é da mais saborosa prosa intima, quase uma grafia do fluxo do pensamento.

Confissões de Minas evidentemente nada tem do estilo de fundo de arca, nem cheira a canfora ou naftalina. É antes um para-brisa limpido que uma velocidade de feria e de fuga leva para dentro das paisagens tratadas de maneira tão diferente, por exemplo, da rapsodia rembrandteana (se assim se poder dizer) dum Dantas Mota.

Já os Contos do Aprendiz nos tinham dado a medida do grande prosador e artifice do conto perfeito, dos melhores de nossas letras.

Mas humano, fundamentalmente drummondeano, de agora, de sua solidão rica, verdadeira inspecção de avô precoce pelo reino natural por onde o neto viverá, é esta serie de Passeios na Ilha, que como trabalho bibliografico honra a Organização Simões e que na nossa historiografia literaria de 1952 fecha a simetria da produção de Carlos Drummond de Andrade, até então impar com o Claro Enigma. Como indice psicologico os dois livros se completam, porque registram um estado intimista beirando a memoria e a confissão. Claro Enigma de fato reflete em misterio realidades da alma, ao passo que Passeios na Ilha é um mundo exterior refletido nessa alma.

Como em tudo que advem de Carlos Drummond de Andrade, é preciso aproveitarmos a didatica que ele apresenta sem querer, antes de aproveitarmos o mais. É que cada remessa, desde a embalagem até o material da safra, tem que ser funcionalmente avaliada para vantagem do leitor, por causa do carimbo "Made in Joaquim Nabuco Street".

A primeira coisa, na apresentação do novo livro, é quem o escreveu continua sendo um aprendiz de magico em potencial, já que confessa, ao nos introduzir nessa linha real do nowhere: "Quando me acontecer alguma pecunia, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha". Ante tal assertiva, o leitor se engaja logo.

Esse modo "bem de convés, de chamar ilha a arquipelagos" é um mal necessario pelas surpresas que visa esconder quem assim usa. Pois na verdade passeiamos invisiveis, não querendo turvar a serenidade e os soliloquios de quem nos leva sob a condição previa de mutismo. A verdade é que nos habituamos a tal companhia, fazendo tudo por merecê-la, recebemos logo da simpatia humana desse solitario antilugubre as vantagens mais ricas, não raro combinamos escaladas ao Alto da Boa Vista, chegamos mesmo a ser admitidos em salas e bibliotecas de seus contemporaneos mais afins, como Manuel Bandeira, Americo Facó, João Alphonsus e Raul Bopp. Aproveitamos tambem a oportunidade duma viagem até Belo Horizonte, onde ele vista pachorrentamente Emilio Moura ou vai à casa de Henriqueta Lisboa, não mais no jardim com jatoticabas mas no apartamento com discos.

Como se não bastasse -_que tantas são as vantagens da gente aproveitar _ o aprendiz de magico leva-nos até a poetisa Maria Isabel, criatura mistica porem real e humana como Simone Weil, que não reza egoisticamente para uma ascese individual, mas que em seus poemas nos quer a todos fazendo coro serafico em torno de temas dirigidos por Bremond.

Outra manifestação deste livro de cronicas do poeta de Sentimento do Mundo é o ritmo domingueiro de sua prosa. Isto é, essa especie de conversa de domingo, num peitoril, num pomar, numa saleta, onde cada pagina nos mostra que o solitario amanuense de si mesmo, em tarefa total de semana, se entremostra com periodos ou fases iguais, mas nunca em minguante. E então a sua prosa explica a sua condição poetica de comunicabilidade. Não a comunicabilidade por enigmas e simbolos, mas pela espontaneidade de longas horas tranquilas, onde embora haja "renuncia ao desejo de influir e de atrair", Carlos Drummond de Andrade consegue paradoxalmente fazer dos leitores mais do que companheiros, cumplices do "gosto de se pensar sozinho, que é ato individual, como nascer e morrer".
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