São Paulo, domingo, 17 de setembro de 1978

UM MÁGICO ATACA O PARANORMAL

J. Reis

Ninguém até hoje conseguiu abiscoitar o cheque de 10.000 dólares que James Randi leva consigo para entregar a quem consiga fazer demonstração convincente de qualquer fenômeno paranormal.

Randi, ou "O Fantástico Randi", como em geral é conhecido, é mágico profissional de grande fama, que se empenha há muito em desacreditar os esforços que até mesmo cientistas vêm fazendo para provar fatos aparentemente supranormais (coisas como as de Uri Geller, telepatia, levitação etc.). Fundou o "Committee for Scientific Investigation of Claims of the Paranormal" (CSICP), que publica revista na qual ele frequentemente escreve. Tem feito numerosas conferências perante organizações acadêmicas e outras, entre as quais a Royal Institution de Londres, a Union Rationaliste da França e a American Humanist Association, dos Estados Unidos. Tem viajado muito, visitando os centros de pesquisa psíquica, com o intuito de analisar os fenômenos paranormais registrados nesses centros.

A revista de divulgação do Massachusetts Institute of Technology publicou importante artigo de Randi sobre a psicologia da arte da magia, o que mostra o respeito que merece o trabalho que ele vem realizando parar desmascarar fatos que, produzidos mediante truques de pura mágica, são apresentados ao público como manifestações de percepção extra-sensorial e poderes ocultos. ("Technology Review", 80(3): 56-63, 1978).

A apressada mente humana

O que os mágicos e muitos dos que se atribuem poderes extra-sensoriais utilizam para dar a impressão de realidade àquilo que fazem é essencialmente a capacidade, que nossa mente revela, de chegar a conclusões a partir de conjunto incompleto de fatos ou de dados sensoriais incompletos. Capacidade negativa, essa? Não, diz Randi, pois sem ela não funcionaríamos; a todo instante, defrontados com os acontecimentos mais diversos, tomamos atitudes prontas, e necessárias. Baseiam-se estas em pressupostos a respeito de nosso ambiente, estribados em provas muito frágeis, todavia amparadas em lembranças de situações passadas e semelhantes, e na idéia de que o mundo, neste momento, é exatamente o mesmo daquele outro momento em que passamos pela mesma experiência.

Conta o mágico episódio interessante, vivido por ele quando se exibia perante certos índios no Peru. Os índios não se espantaram com a mágica de apresentar lenço que mudava de cor, diante de seus olhos, com as manipulações muito às claras, aparentemente, de Randi. Mas demonstraram máximo espanto quando o mágico fez desaparecer de sua mão uma pedra que nela se achava. Explicação: eles conheciam a pedra como objeto real, que sua própria experiência mostrava não poder desaparecer daquele modo, mas o lenço de seda... aquilo bem poderia ser uma peça tecnológica! Por isso, a primeira mágica lhes teria parecido curiosa, porém dentro das possibilidades da técnica, enquanto a segunda não poderia deixar de significar a posse de algum dom superior.

Não basta, para o espetáculo de mágica, uma série de dispositivos mecânicos, às vezes complicados e perturbadores. É preciso que o mágico saiba usar certos ensinamentos da psicologia aplicada, para conseguir ao mesmo tempo iludir e entreter o público. A prova disso está em que muitas excelentes mágicas se fazem sem equipamento especial, fiando-se o mágico apenas nas suas habilidades físicas servidas por aqueles conhecimentos psicológicos, aliás rudimentares.

O exemplo mais simples que Randi nos dá é o de conhecido número em que o mágico retira do bolso um baralho fechado, abre-o diante do público, pede que alguém o segue e embaralhe, e afinal o recoloque no seu bolso, enquanto ele desvia o rosto para não poder ver. Com surpresa para o auditório, o ilusionista a seguir mete a mão no bolso e vai "predizendo" sem erro cada uma de quatro cartas que vai retirar do baralho que ele "não viu" e que "foi verificado" pelo respeitável público.

Na realidade, o que se passou foi isto: antes do espetáculo o mágico violou o baralho, removeu as quatro cartas que pretende "adivinhar", tornou a arrumar direitinho o baralho, embrulhá-lo em papel adequado e lacrá-lo. As cartas que separou, ele as memoriza por ordem e coloca num bolso interno, adjacente ao de onde vai retirar o baralho fechado.

Banalidade ou milagre

"O resto é óbvio - ou não?" indaga Randi. Ele mesmo responde: "Não tanto, pois esse truque pode parecer um quebra-cabeça irrelevante ou um grande milagre, conforme a psicologia aplicada". De fato, o espectador precisa acreditar fielmente em certos fatos, mas ao mesmo tempo precisa entreter, pelo menos de início, certo grau de dúvida, parar ser possível manter o impacto do que virá depois. Se o mágico tivesse pedido que alguém do público lhe retirasse do bolso o baralho e o abrisse, estaria sendo mais positivo em sua suposta prova de idoneidade, mas estaria perdendo a oportunidade de manter a dúvida inicial. Esta surge precisamente quando o artista remove do bolso o baralho e o abre. Mas desaparece quando ele, com aparente sinceridade, passa às mãos do público o baralho, pedindo que o embaralhem cuidadosamente. A maneira tranquila, gentil, com que o mágico entrega as cartas sugerindo que sejam embaralhadas, desarma o espectador, que não se recusa a fazê-lo e nem sequer se lembra de tentar examinar as cartas.

Nessa mágica o artista nunca diz que se trata de um baralho comum, porque isso poderia despertar a suspeita, mais forte, de se tratar de baralho especial. E também jamais sugere que o público o examine, pois isso seria um convite, sem dúvida aceito, de realmente examinar o conjunto de cartas, à procura de fraude. Tudo se passa muito sugestivamente. O mágico remove o baralho, abre-o, convida alguém a baralhá-lo quantas vezes quiser a a repô-lo no bolso de que foi retirado. A essa altura o auditório está satisfeito quanto à lealdade de todo o processo e preparado para esperar um efeito extraordinário, não imaginando que o mágico retira de outro bolso as quatro cartas surripiadas antecipadamente do baralho.

Conforme sua capacidade de lidar com a psicologia do público, o mágico pode aventurar-se a ações muito mais ousadas. Pessoas muito atentas e de espírito crítico afirmaram ter visto as chaves que Uri Geller disse haver dobrado diante delas (já estavam dobradas) continuarem no processo de encurvamento, progressivamente. Randi afirma haver repetido com um prego dobrado o truque das chaves de Geller diante de um psicólogo, que facilmente se deixou enganar e continuou afirmando que vira o prego continuar a entortar-se. Pior ainda, mesmo depois de explicados os fatos, o cientista persistiu na idéia de que poderia haver explicações supernaturais para fenômenos paranormais apresentados com provas não mais fidedignas que a do prego. O mágico habilidoso estimula essa persistência, conseguindo novo estádio na falsa interpretação dos dados.

Escreve Randi: "Embora o espectador saiba que apreciou um truque, às vezes decide que sua crença nessas questões e sua necessidade desses fenômenos em sua filosofia requer a rejeição dos fatos e a aceitação do irracional!" As raízes desse comportamento vêm, naturalmente, de muito longe na história da humanidade, desde talvez que o homem, segundo refere Julian Huxley num de seus escritos, percebeu sua solidão, como espécie, no mundo em que evoluiu.

Cirurgias e relógios

Em seu artigo Randi descreve minuciosamente e com documentação fotográfica, como se realizam cirurgias sem escalpelo e sem abrir o corpo (um dedo postiço cheio de sangue, um corpo estranho bem guardado na mão, a habilidade dos dedos em fazer uma prega no corpo, por ela enfiar um dedo, fazer jorrar um pouco de sangue, aparecer o corpo estranho e afinal a limpeza do campo operatório sem qualquer incisão...). Semelhantemente descreve, passo a passo, o impressionante truque do relógio que pára e anda, quebra e se conserta, exibido com tamanha e tão imprópria promoção em todo o mundo, pela televisão que, em alguns países, timbrou em apresentar Uri Geller como um supernormal mesmo depois de plenamente desmascarado na Europa.

Sustenta Randi que os piores peritos em deslindar truques físicos ou "psíquicos" são aqueles que têm conhecimento bastante para fazê-lo.

Conta como transformou certa vez um truque muito comum que os mágicos fazem para crianças, num sério problema para auditório de adultos. O truque consiste em apresentar às crianças dois coelhos, um preto e um branco, e dizer que vai cobrí-los com um pano e, depois de descobertos, eles terão trocado de posição. Mas o mágico ostensivamente gira a tampa da mesa de 180 graus, o que as crianças percebem. Protestam elas e o mágico, fingindo-se apanhado, atende à exigência do auditório e gira a mesa ao contrário. Aplausos das crianças vitoriosas, que esperam completar o desmascaramento do ilusionista quando este descobrir os coelhos. A gritaria vira silêncio e espanto quando, retirado o pano, os coelhos que aparecem são um vermelho e outro verde.

A experiência de Randi com essa mesma mágica perante adultos fê-lo conhecer um outro nível de ilusão. Ele compareceu diante de um auditório de adultos e se propôs efetuar a mágica citada, dizendo que era para as crianças eventualmente presentes. Isso deixou os adultos numa atitude condescendente e simpática. Mas assim que Randi girou a tampa da mesa e as crianças reclamaram, os adultos passaram a manifestar preocupação com o malogro do mágico e seu desmascaramento pelas crianças. Entraram num nível todo especial de tensão, de modo que quando Randi completou a mágica, os adultos, cujo espírito crítico se havia relaxado com a preocupação, ficaram ainda mais espantados que as crianças e incapazes de explicar o truque.

Estes são alguns episódios contados pelo mágico. Algumas de suas experiências mostram como as pessoas se deixam facilmente enganar e esquecer o que havia pouco fizeram, por efeito da personalidade do mágico. Por exemplo, pessoas que, ao entrar numa "sessão", recebem o pedido de escrever uma pergunta e colocá-la dentro de envelope no qual deixam o nome por extenso. Quando, mais tarde, o suposto "medium" recolhe os envelopes, afirma com toda a naturalidade que neles estão escritas as iniciais dos nomes, que passa a adivinhar. Deixa tão confusas as pessoas que, ao ler as perguntas, muito diretas, que estão nos papéis, dá, até mesmo a elas, a impressão de uma grande vagueza que ele, todavia, acaba interpretando corretamente. Fazia ainda Randi de vários recursos utilizados pelos "mentalistas" que exploram o terreno da percepção extra-sensorial (precognição, psicocinese, visão com olhos vendados etc.) entre eles a mudança de objetivo, uma espécie de desconversa.

Não se conforma Randi com as vultosas quantias que hoje vão para as pesquisas em torno da percepção extra-sensorial, especialmente quando realizadas por cientistas das ciências físicas e naturais. Exercitados num tipo de raciocínio, são facilmente manipulados por mágicos e "psíquicos" que lançam mão de doses de psicologia que eles não sabem manejar.

"Menciono tudo isso", escreve Randi, "porque os cientistas que investigam eventos supostamente paranormais se mostram muitas vezes inclinados a omitir detalhes relativos a seus experimentos - por exemplo, as pessoas que estavam presentes durante a demonstração - por acreditarem que esses detalhes carecem de importância". E aí podem cometer grave erro. "O imperdoável, todavia, é a prática de compor os próprios erros negando-os e deliberadamente relatando mal as condições e os eventos. Assim não se serve a ciência." E acrescenta o mágico, numa advertência muito grave: "Creio que as reputações de cientistas que estudam o "paranormal" algumas vezes se salvam ou se fazem, mediante essas negações e defeituosos relatos".

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