Neste texto foi mantida a grafia original da época
A MORTE É VIRGULA, PONTO E VIRGULA OU PONTO FINAL?
Monteiro Lobato, que vai regressar ao nosso país, quer verificar essa "inquietação"
 
Em entrevista exclusiva para "Folha da Noite" narra o grande escritor as verdadeiras razões de sua viagem à Argentina e os motivos que o trazem de volta ao Brasil, aonde deverá chegar dentro de poucos dias

 
  Correspondencia especial para a "Folha da Noite"
 
 
BUENOS AIRES, abril, por via aerea - Monteiro Lobato voltará ao Brasil no fim deste mês. Desta vez vai mesmo. E vai para ficar.

O seu retorno, tantas vezes anunciado e tantas vezes desmentido, foi-nos comunicado com essas simples palavras:

- Estou de malas prontas para voltar a São Paulo. Vou ficar em hotel, já que não há casa...

Foi assim que Monteiro Lobato nos revelou uma noticia que todos os verdadeiros amigos e discipulos do grande escritor desejavam ouvir há tanto tempo. E concluiu, resmungando:

- Não vá publicar nada do que lhe disse. Isso aqui é uma informação para uso pessoal e não uma entrevista. Veja esses recortes são de entrevistas a mim atribuidas. E olhe quanta besteira contem esse pequeno trecho, quanta besteira em tão poucas linhas!

 
  Uma entrevista nada facil  
 
A verdade, entretanto, é que nossa entrevista saiu sem que nós ou Monteiro Lobato estivessemos com esta intenção. Ao visitá-lo, não nos passava pela cabeça entrevistá-lo. Alem do mais, quasi que não havia nenhuma originalidade em mais uma entrevista com Lobato.

Raro é o jornalista brasileiro que vem a Buenos Aires e não corre logo à casa de Lobato. Que belo assunto para jornal. O reporter nem tem que fazer força. Lobato - e como ele e sua familia sabem receber bem os brasileiros que passam por aqui! - vai dizendo, com aquele seu geitão de caipira paulista, frases que podem constituir cada qual uma manchete. Mas, quando a entrevista sae lá vem o estrilo.

A culpa, porem, nem sempre é do reporter. Não é nada facil registrar mentalmente o aluvião de coisas interessantes que o escritor vai dizendo. Alem do mais, aqueles dois olhos negros, escondidos debaixo de um par de imponentes sobrancelhas, não param de se agitar. O pobre do reporter nem sabe o que deve registrar primeiro - as palavras ou a malicia do olhar, as frases ou aquela gargalhada nervosa e indecifravel.

E enquanto essa pequena tragedia profissional ocorre, Lobato - sem se dar conta de que o reporter esfrega intimamanete as mãos de contente - vai distilando a sua amargura, essa amargura que o torna um dos espiritos mais construtivos do Brasil.

 
  "É por isso que a gente passa por burro"  
 
Foi assim que nasceu esta entrevista. Lobato agitou no ar um dos últimos recortes que recebera de São Paulo, onde alguem colocara em sua boca que "o Brasil melhorara porque não estava mais dominado por politicos ossudos, bojudos e soturnos".

- Eu nunca diria esse amontoados de asneiras. Ora, ora, politicos ossudos e bojudos Você é capaz de me explicar o que quer dizer isso? Naturalmente me referi a qualquer outra coisa e o reporter fez a confusão.

Sim, Lobato tinha razão. Mas - que diabo! - ele estava falando com um jornalista. E o instinto profissional se manifestaria ... Assim, de mansinho, partiu a insinuação:

- O metodo americano de entrevista de jornal, é que é batata. O reporter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há geito da confusão se estabelecer.

- É isso mesmo, respondeu Lobato. O que nos falta é metodo, é sistema. É por falta dessas coisas que a gente passa tantas vezes por desonesto e burro.

Enquanto Lobato falava, rabiscavamos - como quem não quer nada - um questionario. E o escritor mais lido e difundido na America Latina, caiu na armadilha como um patinho.

 
  Por detrás da cortina de ferro  
 
Aliás, para aproveitar a deixa , esta não é a primeira demonstração de inocencia de Lobato. Apesar de seu ar feroz e casmurrão, ele é um dos homens mais puros do Brasil. E daí tantas de suas cabeças.

A gente está habituada a vêlo revolver e espicaçar a vaidade nacional com uma critica impiedosa e incorruptivel, como raros são os intelectuais do Brasil com coragem de fazê-lo. Entretanto, por detrás da cortina de ferro de cepticismo e descrença de Lobato, encontra-se um homem que ama o Brasil e que para torna-lo melhor vai dos livros ao fundo da terra, cria a Jeca Tatu, organiza editoras e funda companhias de petroleo e ferro , para ver se a coisa toma melhor jeito.

Aqui mesmo, em Buenos Aires o dedo de Lobato se acha por trás de tudo que signifique melhorar o nome e a posição do Brasil diante do povo argentino.

Há uma exposição de livros brasileiros. Oficialmente, é a nossa embaixada a sua organizadora. E não há dúvida que o jovem e eficiente secretario, Murilo Pessoa, dedicou-se a ela com o melhor dos seus esforços. Mas, é ele mesmo quem nos confessa:

- Monteiro Lobato foi o primeiro e o que mais nos animou e auxiliou na realização desse empreendimento.

E, se um dia a correspondencia de Lobato for publicada - aliás, por que é que ninguem não se lembrou ainda de editá-la? - a gente descobrirá a preocupação de Lobato, por um Brasil melhor através dos inumeros exemplos, sugestões, planos, criticas, conselhos, que ele envia incansavelmente daqui para os seus amigos e companheiros do Brasil.

 
  "O meu cavalo esta cansado"  
 
Mas, isso já é assunto para outra conversa. Aqui, o que nos interessa é a entrevista, a primeira que Lobato afirma ser plenamente autorizada para os jornais do Brasil.

E, lá vai ela, tal e qual Lobato a redigiu, respondendo ao nosso questionario:

P. - Em verdade, por que saiu do Brasil?
R. - Para visitar na Argentina os trinta filhos que lá tenho sob forma de edições de livros.

P. - E agora, qual a verdadeira razão de sua volta ao Brasil?
R. - Nostalgia da lingua. Descobri que Patria é pura e simplesmente a lingua nativa, na qual, desde o "papá-mamãe" vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba.

P. - Comparativamente, quais as diferenças fundamentais de vida no Brasil e na Argentina?
R. - As mesmas que há entre um automovel que já partiu e um automovel cujos passageiros ainda discutem com o chofer sobre o caminho a tomar.

P. - Olhando de longe, seus pontos de vista sobre o futuro do Brasil sofreram qualquer alteração?
R. - Nenhuma. Perto ou longe o nevoeiro é o mesmo.

P. - Acha que a Argentina de hoje oferece alguns exemplos que o Brasil poderia aceitar e aplicar para o seu proprio desenvolvimento?
R. - Acho que a abundancia de agua nas torneiras argentinas é um exemplo dignissimo de ser imitado pelas torneiras cariocas.

P. - Voltando ao Brasil pretende divulgar o que viu na Argentina?
R. - Divulgar a existencia de bifes para o faminto e agua para o sedento me parece obra de uma crueldade.

P. - Finalmente, retornando ao Brasil, que pretende fazer ?
R. - Que pretendo fazer? Rebolar-me dentro da goiaba, contemplar o umbigo e preparar-me num convento para a viagem final. O meu cavalo está cansado, querendo cova - e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é virgula, ponto e virgula ou ponto final.

 
Data de publicação  22.abr.1947

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