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São
Paulo, quinta-feira, 7 de agosto de 1941
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Neste
texto foi mantida a grafia original
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"PODEMOS DECLARAR AO PERCORRER "OS SERTÕES"
DE EUCLYDES DA CUNHA: ESTE É O LIVRO, O NOSSO LIVRO, O
GRANDE LIVRO DO BRASIL", DIZ-NOS AGRIPPINO GRIECO
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A
propósito das comemorações Euclydeanas, que
ora veem sendo preparadas, fala à reportagem da "Folha
da manhã" o autor de "evolução
da prosa brasileira" - atualidade de Euclydes da Cunha
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RIO, 6 (Da nossa sucursal) - Fomos encontrar Agrippino Grieco em
sua residencia, no Meyer. Não descansa um minuto na sua faina
literária. Está sempre em atividade. Ora lendo, devorando
com verdadeira volúpia as últimas novidades que surgem,
ora debruçado sobre sua mesa de trabalho, escrevendo, escrevendo...
Quando chegamos, ele lia. Sobre a secretária, atulhada de
papéis, jornais, revistas, alguns livros abertos, de escritores
estrangeiros preferidos, ao lado de outros ainda intactos, esperando
pela vez.
- "É isto que você está vendo - disse,
depois de dois dedos de prosa, o conhecido crítico literário.
A vida é luta. Quando não escrevo, leio. Este assunto
não se acaba nunca. Diariamente surgem livros novos".
- É um bom sintoma - replicamos. Uma prova de que o brasileiro...
Agrippino Grieco não deixou que terminássemos a frase.
Com aquela ponta eterna de malícia que reçuma de suas
próprias páginas, foi logo dizendo:
- "Mas o peor é que quasi nada disso tudo vale muita
coisa..."
Depois, como tivéssemos falado das próximas comemorações
euclydianas, de S. José do Rio Pardo, o autor da "Evolução
da Prosa Brasileira" acrescentou:
- Cada vez mais admiro "Os Sertões", o livro em
que existe maior substância brasileira".
- Nesse caso, você não quererá conceder uma
entrevista especial para a "Folha da Manhã"? O
momento não poderia ser então mais oportuno...
Aquiescendo, Agrippino Grieco respondeu:
- "Releio sempre certos trechos da obra máxima de Euclydes
da Cunha. E sempre são novas descobertas sensacionais para
o meu entusiasmo. As festas ao grande escritor, promovidas anualmente
em S. José do Rio Pardo, constituem preciosos títulos
de nobreza para S. Paulo, a S. Paulo das boas escolas, das boas
bibliotecas. Dos jornais otimamente redigidos. Parece justo que
os paulistas se orgulhem de fato de ter vindo de um belo trecho
da terra bandeirante a obra prima que decifrou o destino de todos
os brasileiros".
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As
páginas de Euclydes devem ser relidas sempre |
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Achamos
interessantes as declarações do autor de "Fetiches
e Fantoches", crítico nem sempre propenso a louvar.
Externado a esse respeito nosso pensamento, eis o que nos respondeu:
- "De fato. As páginas de Euclydes da Cunha deverão
ser relidas sempre. Pelo contrário, importaria em empobrecer
a nossa cultura e seria um roubo iníquio ao maior dos gênios
da nossa prosa. De resto, basta correr as primeiras linhas do volume
para sentir o irresistivel influxo desse sociólogo, do qual
se pode verdadeiramente dizer que arrasta os leitores pelos cabelos
e os leva até onde queira levá-los. As palavras de
Euclydes como que saem de uma boca que ainda respira junto de nós".
- Mas há quem aponte defeitos nesse livro - arriscamos.
- "Pouco importam humaníssimos defeitos - replicou Agrippino.
O caso é que não há exagero em assegurar-se
que a grande literatura do Brasil parou em 1902, data da aparição
dessa maravilhosa sinopse da nossa terra e do nosso povo. "O
Guarani", as "Espumas Flutuantes" e "Os Sertões"
representam os três acontecimentos supremos da vida mental
da nação. Alencar, Castro Alves e Euclydes: eis os
nomes que iluminam em cheio a nossa história literaria. E
esteja certo de que não elogio tanto Euclydes da Cunha por
ser, como eu, fluminense. Tanto mais quanto o seu trabalho possue
um sentido de amplitude nacional que escapa a qualquer veleidade
localista. Antepassados do mestre eram baianos e foi na Baía
que ele encontrou o seu assunto, naquela veemência de paixões
bem nortista, bem de uma região, propensa à eloquência
e ao drama, que assistira às prédicas de Vieira e
modelara o gênio de Castro Alves e Ruy Barbosa. O espantoso
poeta trágico que foi Euclydes nos "Sertões",
poeta mesmo sem rimas e sem métrica só estaria à
vontade num tema em que se refletem vertiginosas catástrofes.
Ele próprio falou da sua emoção quando, a caminho
de Canudos, enxergou sobre as montanhas a velha Baía-Mater,
com seus templos e seus solares..."
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O
forte temperamento de Euclydes |
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- "Nele
- prosseguiu - coisa muito interessante, o temperamento era tão
forte quanto seu talento. Notei sempre em Euclydes uma espécie
de mutilação sentimental, que talvez lhe resultasse
do fato de bem cedo haver sido privado do carinho materno. Na Escola
Militar, comprazia-se em tecer versos satíricos contra colegas
e professores, mais que em tomar parte nas pândegas boêmias,
nas fugas noturnas dos outros rapazes. Impulsivo, frenético,
andou muitos quilómetros a pé afim de apresentar-se
a Deodoro, quando proclamaram a República. Florianista flamejante,
a certa hora se indispôs com o ídolo. Era um homem
sem bússola, sem norte muito seguro no instante em que os
nervos o sacudiam. Com seu olhar vago e a sua fisionomia atormentada,
num ar de índio sem taba e um pouco triste na cidade, não
se expandia, evitando efusões romanescas junto aos amigos.
Aliás, quasi tudo na vida o atraiçoou. Só a
literatura lhe foi fidelíssima e o fez eterno. Quantos germens
de beleza nos "Sertões"! Todos os historiadores
e sociólogos que se acham presentemente em atividade procedem
dele, mesmo quando o ataquem ou melhor, especialmente quando o ataquem.
Tambem os sertanistas do conto e do romance são grandes devedores
desse patrício que morreu paupérrimo...
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A
atualidade dos "sertões" |
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A certa altura da palestra que mantivemos com o nosso ilustre entrevistado,
como perguntássemos sobre a atualidade desse grande escultor
de almas, eis o que nos adiantou:
- "O livro de Euclydes da Cunha está sempre acabando
de aparecer. E que riqueza de vocabulário brasileiro a aturdir
os que apenas versavam os autores lusos! Que aula contínua
de nacionalismo! Esse neologista era um creador de vida. O Brasil
se encerrava todo nesse cérebro, nessa alma. Quantas frases
suas abriram na memória arranhões que nunca cicatrizam.
Pena é que certos admiradores seus, as suas "viuvas"
literárias, passem a vida a ir lacrimejar-lhe no túmulo,
em lugar de explicá-lo melhor à gente nova, a torná-lo
o nosso clássico, o nosso formador de espíritos jovens.
Ainda, há dias, um desses euclydianos suspeitos teve a audácia
de fazer retratar-se a escrever na mesa de Euclydes, no barracão
de S. José do Rio Pardo, e em mangas de camisa, parecendo
antes um caixeiro de botequim...
- Euclydes - disse depois - fez pelo Brasil o que Sarmiento fez
pela Argentina. Morrendo aos 43 anos, legou-nos um tomo em que há
cristalizações seculares de pensamento e cultura.
Nosso grande inventor de metáforas é tambem um definidor
axiomático de caracteres. O engenheiro que lia Renan na selva
amazônica foi um estilista (daí amar o coruscante Saint-Beuve),
mas teve as suas intuições de metafísico".
Pois eu folgo muito - respondí - de ver esse entusiasmo num
crítico que tantos julgam um demolidor...
Ao que Agrippino Grieco, finalizando a interessante entrevista que
concedeu à "Folha da Manhã" - acrescentou:
- "E eu me ufano desse entusiasmo. Sabe-se que os judeus, quando
tomam da Bíblia, ficam com os olhos a faiscarem mais do que
nunca e murmuram em êxtase: "Este é o livro!"
Tambem podemos declarar ao percorrer "Os Sertões"
de Euclydes da Cunha: "Este é o livro, o nosso livro,
o grande livro do Brasil!" |
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