Neste texto foi mantida a grafia original da época
IDÉAS E FACTOS: "Casa Grande & Senzala"
Roquette Pinto
 
Roquette Pinto assim aprecia, no "Boletim de Ariel" o ultimo e substancioso trabalho de Gilberto Freire.
"Casa Grande & Senzala" nasceu obra classica. Ninguem dará mais um passo, em materia sociologica referente a este paiz sem consultar o volume, a menos que deseje andar errado, como quem se exercita em buscar, no escuro, os objectos que um raio de luz facilmente denuncia.
Sem bases biologicas lucidas e firmes é vão intento cuidar alguem de resolver questões sociaes. Sociologia, sem ellas, é "discurseira". Gilberto Freire não se apressou. Só penetrou no andar de cima depois de bem senhor das difficuldades do rez do chão. Eis ahi a origem do brilho desse volume sem par. Tudo quando a biologia da raça tem revelado nos ultimos tempos foi applicado com segurança e critério a interpretações brasileiras. As doutrinas racistas de última hora, não seduziram o autor, que bem sabe como são de facto velhas, disfarçadas em cosmeticos ridiculos.
"Aprendi a considerar fundamental, diz elle, a differença "entre a raça e cultura": a discriminar entre os effeitos de relações puramente geneticas e os de influencias sociais, de herança cultural e de meio".
Esta verdadeira "genetica da cultura" parece-me o traço mais vivo e original do livro.
Não gostei do título. "Casa Grande & Senzala" á primeira vista parece indicar que o autor teve o desejo de contrapôr, no surto historico do Brasil, os dois typos de cultura que no caso do branco e do negro se interpenetraram. A verdade, porém, é que o Brasil de hoje sahiu muito pouco da senzala. Elle está recheiado de coisas negras, o seu cabello não nega , etc.; mas toda a massa enorme de coisas que a escravidão derramou na gente, não veio de facto da senzala. Veio mesmo da propria Casa Grande, para onde os mais bem dotados filhos da senzala eram immediatamente conduzidos, a começar pela "mãe preta". Recusei, certa vez, a minha approvação a um quadro em que se via um filho de senhor no collo de mãe preta, sentada ao lado de um carro de boi onde o filhote negro dormia. O quadro não correspondia ao que era geral. Ao contrario. A mãe negra não levava o filho do senhor para a senzala; trazia, sim, o seu moleque para a Casa Grande, onde era creado com os mimos necessarios, até mesmo para que o leite da ama não "arruinasse", sob a influencia de qualquer desgosto...
No que se refere aos indios, o livro de Gilberto Freire vale por uma bibliotheca.
 
Texto publicado no jornal Folha da Noite
Autor  Roquette Pinto
Data de publicação  22.fev.1934
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