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PARIS - Dogmatismo é o nome do combustivel que alimenta as
grandes estruturas burocráticas. O "movimento comunista
internacional" deixou de existir na medida que enfraqueceu
o dogma de um modelo unificado de partido ou de estratégia
para a construção do socialismo. A cisão titoísta
e a originalidade de Mao, o euro-comunismo e as críticas
contra a repressão aos dissidentes soviéticos são
alguns dos pululantes fenômenos históricos que tornam
hoje pueril a velha imagem da Guerra Fria, que atribuía ao
comunismo a dimensão de um aparelho multinacional capaz de
fomentar os mais sórdidos "complôs contra a democracia".
Não é mais nada disso.
Comecemos pelo início. O primeiro embrião de internacionalismo
germinou bem antes do nascimento de Marx. Basta ver a maneira com
que os republicanos suíços, belgas ou alemães
se identificaram à Revolução Francesa. E foi
também em nome da república que em 1831 a derrota
dos revolucionários poloneses gerou violentas passeatas nos
grandes centros urbanos da Europa. Ainda não havia sindicatos:
temia-se que essa forma de organização dos assalariados
recriasse as corporações e falseasse as leis do mercado
pelas quais se desenvolvia o capitalismo. Mesmo assim, surgia a
idéia de contrapor com uma "internacional" as alianças
familiares que unificavam monarcas com o aval dos banqueiros.
O século XIX assistiu ao nascimento das duas primeiras organizações.
Dos socialistas "utópicos" aos anarquistas, dos
sociais-democratas aos marxistas, prevalecia como denominador comum
a idéia de que as guerras entre as nações só
terminariam no momento em que a linha de demarcação
entre os Estados se transformasse em fronteira interna, definindo
os antagonismos entre dominantes e dominados.
Ora, essa plataforma fracassou. A eclosão da Primeira Guerra
Mundial comprovou a predominância dos nacionalismos. Lenin
baseou-se nessa constatação ao considerar falida a
II Internacional á qual os bolcheviques haviam pertencido.
Vem a Revolução de Outubro e, cinco meses depois,
o primeiro congresso do PC no poder. "A vitória de nossa
revolução será provisória se permanecermos
isolados e sem o paralelo desencadeamento de movimentos semelhantes
em outros países". Era duplo o objetivo leninista: permitir
com uma nova organização que o internacionalismo das
lideranças bolchevistas permanecesse atuante, e impedir que,
sem outras revoluções, a Rússia se isolasse.
Iniciou imediatamente os contatos que permitiram reunir em março
de 1919 um "Congresso dos Partidos Revolucionários Proletários".
Os 51 participantes de 30 países criaram, assim, a III Internacional,
que durou até maio de 1943.
Lenin desejava que o Komintern - designação corrente
do movimento - se estruturasse segundo a mais rígida dependência
entre seus partidos. Apenas a disciplina permitiria evitar que os
revolucionários caíssem na arapuca do belicismo que
havia vitimado a unidade interna da Internacional anterior.
Em julho de 1920, o Segundo Congresso do Komintern aprova um documento
definindo as 21 condições de admissão dos partidos
comunistas. Digamos, para simplificar, que o excessivo centralismo
programático, existente já em sua origem, gerou uma
satelitização dos demais partidos porque, com a ascensão
de Stalin, Moscou se transformou em centro do movimento internacional,
em guardião da "ortodoxia proletária" e,
de lambuja, em pólo pontifical das excomunhões (que
começaram vitimando os trotskistas).
Os estatutos da Internacional estipulavam que "o trabalho principal
e as maiores responsabilidades pertencem ao PC do país em
que o Congresso Mundial fixar a sede do Comitê Executivo".
Mas não se desconfiava, na época, que até 1944
só a URSS e a Mongólia teriam efetuado suas respectivas
revoluções. Acreditava-se, ao contrário, que
era iminente a vitória em outras nações européias,
sobretudo na Alemanha. Assim, Lenin esperava que os sucessivos congressos
da III Internacional deslocassem geograficamente o Comitê
Executivo para que as nações hóspedes exercessem,
cada uma por sua vez, a função organizadora predominante.
Nem é preciso dizer que o stalinismo acabou com o pluricentrismo
entre os partidos unificados debaixo de uma ideologia comum. Lembrem-se
da tese historicamente absurda de "socialismo num só
país" (a União Soviética). Em lugar de
auxiliar os revolucionários dos demais países, Moscou
definiu-lhe como tarefa a defesa de seu próprio regime. Um
regime que, a bem da verdade, estava ameaçado pela ascensão
do fascismo na Europa. Na prática, a ortodoxia se traduzia
por uma mística em que os soviéticos viravam uma espécie
de vitrina de uma sociedade nova e inacessível para os outros.
Foi por isso que o "movimento comunista internacional"
acabou correspondendo às mais apimentadas caricaturas desenhadas
por seus adversários. Como estrutura burocrática,
ele trazia em seu bojo o vírus da centralização
que Stalin soube utilizar em nome da fidelidade aos princípios
que Lenin definiu em 1920.
Vejamos. Entre as condições que os partidos filiados
deviam reconhecer para integrar o Komintern havia o dispositivo
segundo o qual "a agitação e a propaganda quotidianas
devem possuir um caráter efetivamente comunista, conformando-se
ao programa e aos documentos da III Internacional".
Com o perdão das citações enfadonhas, vejamos
dois outros dispositivos, traduzidos literalmente da versão
francesa:
- "Os Partidos comunistas devem proceder a periódicas
depurações de seus quadros para afastar os elementos
pequeno-burgueses e interesseiros".
- "Os programas dos partidos filiados à Internacional
Comunista devem ser aprovados pelo Congresso da Internacional ou
pelo Comitê Executivo".
Para manter a ortodoxia doutrinária que faltou à II
Internacional, o Komintern impunha aos revolucionários um
conjunto uniforme de regras para disputarem disciplinadamente a
partida da revolução. Mas essa faca de dois gumes
passou a cortar do lado que Lenin certamente não cogitava,
na medida que os expurgos do PC soviético eram acompanhados
por expurgos em que dissidentes nos demais partidos caíam
fora da organização.
Em termos de mecanismo interno, o Komintern se enquadra nas observações
que um dos mais lúcidos intelectuais franceses, Pierre Legendre,
fez em seu livro "L'Amour Eu Censeur" sobre a ortodoxia
eclesiástica e a linguagem dogmática da Igreja, nos
velhos tempos da Inquisição. Em resumo, a hierarquia
é essencialmente paranóica, porque funciona com base
em delírios interpretativos capazes de proteger a fé
contra as artimanhas de seus eventuais transgressores. A interpretação
(instância policial por excelência) identifica o que
é conforme e o que é dissidente, o que é ortodoxo
e o que é heterodoxo. E tudo isso sob a cobertura de uma
cúpula centralizadora e encabeçada pelo Papa. Stalin
ocupou, sem dúvida alguma, o trono papal do Komintern.
A comparação não é nem um pouco abusiva.
Basta ver os recentes estudos que os comunistas efetuam hoje sobre
o fenômeno stalinista. Traçam um paralelo entre a normatividade
imposta pelo Kremlin e essa mistura de fé e mística
que atrapalhava qualquer racionalismo necessário para uma
providencial autocrítica. Impossível contestar os
crimes efetuados em nome da "ideologia proletária"
no momento em que a autoridade suprema do Komintern é dogmatizada
por um homem de dimensões pontificiais. Sua palavra é
lei. A obediência define o revolucionário enquanto
a desobediência define o rebelde-pecador.
O problema é enorme. Sem levar em conta a paixão que
Stalin inspirava - como encarnação da própria
revolução - como justificar a aceitação,
pelos demais partidos, da eliminação de antigos membros
do Estado Maior de Lenin, como Zinoviev, Kamenev, Bukarin ou Rikov?
Como justificar os expurgos sucessivos, que recheavam as covas coletivas
e superpovoavam os campos de trabalho forçado?
Como apêndice do PC soviético - que era, por sua vez,
o prolongamento de Stalin - a Internacional deixou de ser uma organização
colegiada. Seu VII e último Congresso (Moscou, julho de 1935)
colocou-a definitivamente sob a tutela de burocratas soviéticos.
A década define-se por uma lista inesgotável de erros
de análise. A organização entrou numa canoa
furada e definiu os sociais-democratas (e não os fascistas)
como alvo historicamente privilegiado. Com isto, os comunistas alemães
evitaram uma aliança eleitoral que teria impedido a vitória
do Partido Nacional Socialista (nazista).
Durante a Guerra Civil Espanhola, os trotskistas mereceram um tratamento
idêntico ao que o Komintern reservava aos rebeldes anti-republicanos
chefiados por Franco.
Tudo isso coroado pela desmobilização dos comunistas
ocidentais depois que Stalin assinou em 1939 seu "Pacto de
Não-Agressão" com Hitler. Os partidos filiados
ao Komintern estavam certos que as tropas nazistas não invadiriam
a União Soviética. Invadiram, e como! Tamanha ingenuidade
gerou reações paradoxais por parte de partidos cujos
países eram por sua vez incorporados ao Reich. Na França,
o PCF solicitou ao comandante das tropas alemãs que autorizasse
a publicação do "Humanité". O episódio
gerou uma desconfiança crônica dos demais movimentos
da resistência. O PC precisou provar com muito sangue de militante
que combatia pela França e não por Moscou.
Com a dissolução do Komintern já moribundo,
em 1943, Stalin manifestava a intenção de não
exportar a revolução soviética. O objetivo
prioritário na época consistia em derrotar militarmente
o Eixo. Tratava-se, porém, de um gesto puramente formal.
Se não levarmos em conta a hospedagem de líderes comunistas
cuja permanência em seus países colocaria suas vidas
em perigo - como Palmiro Togliatti e Maurice Thorez - Moscou não
tinha jeito de fornecer aos partidos clandestinos meios estratégicos
que lhes auxiliassem a derrotar os ocupantes alemães pela
guerrilha. Isso determinou um embrião de autonomia. Na França,
na Itália e sobretudo na Iugoslávia, as ações
militares dos resistentes efetivavam-se sem a interferência
do Komintern. Até 1943, a prioridade soviética consistia,
logicamente, em reinverter até o fim a tendência que
havia levado o front nazista às portas de Leningrado.
O quadro deveria se modificar com a Conferência de Yalta.
Em fevereiro de 1948, oito nações liberadas já
haviam se autoproclamado república populares. Se é
verdade que a rápida transformação de regimes
condicionou-se à presença do Exército Vermelho
em seis delas, nas duas restantes a vitória local contra
a Alemanha foi obtida por conta própria. Refiro-me à
Albânia e à Iugoslávia. E não é
coincidência o fato de ambas integrarem, por motivos diferentes,
o campo de futuras cisões.
Belgrado e Tirana não aderiram ao socialismo como a Romênia,
a Hungria ou a Bulgária - antigas aliadas de Hitler que a
URSS derrotou com as armas. E nem como a Polônia ou a Tchecoslováquia,
adversárias do nazismo subjugadas pelo Reich e a seguir liberadas
pelas tropas russas a caminho de Berlim. Por mais que todos estes
países tenham integrado um bloco que os ocidentais designaram
pela infeliz expressão de "Cortina de Ferro", sua
homogeneidade interna nunca existiu. E o socialismo entre eles foi
instaurado às custas da revolução num outro
país: a Grécia.
Em 1944, o governo monárquico de Atenas, no exílio,
reassume as rédeas do país porque os resistentes do
movimento "Elas" (predominantemente comunista) aceitam
participar de um governo de coalização. Mas recusam-se
a entregar suas armas. Três meses depois, deflagraram uma
guerra civil da qual sairiam derrotados. Os corpos expedicionários
britânicos intervieram ao lado das tropas reais, materialmente
auxiliadas pelos EUA. A União Soviética não
mexeu um dedo sequer. Pudera! Em outubro daquele ano, Stalin negociou
com Churchill a permanência grega no campo capitalista em
troca do reconhecimento da hegemonia da URSS na Bulgária
e na Romênia. O acordo também previa uma divisão
equitativa de influência, entre Londres e Moscou, na Hungria
e na Iugoslávia. Se em Budapest, convocaram-se eleições
segundo o modelo das democracias ocidentais, em Belgrado Tito não
hesitou desobedecer à "pátria do socialismo".
Essas pequenas jogadas, hoje estudadas com atenção
pelos eurocomunistas, comprovavam que debaixo do ideal internacionalista
sempre evocado, apesar da dissolução do Kominentern,
a URSS se comportava pela primeira vez como superpotência
em negociações cujos resultados nem sempre levavam
em conta a soberania de comunistas em outros Estados.
Tito foi o primeiro a se rebelar. A independência de sua revolução
lhe conferia uma legitimidade que Stalin não podia contestar.
Mas contestava. Em setembro de 1947, a Internacional renasce durante
um encontro em Varsóvia. Chamava-se "Kominform"
(Birô de Informações) e estipulava como objetivo,
em plena Guerra Fria, combater o "imperialismo norte-americano".
Mas a organização serviu, em verdade, para condenar
formalmente o titoísmo no ano seguinte e permitir que os
chamados partidos irmãos efetuasse expurgos em seus aparelhos,
numa caça às bruxas que lembrava a perseguição
aos trotskistas na época do Komintern.
Se é verdade que Stalin mantinha os demais partidos sob seu
comando, ele agora precisava engolir a contestação
de um comunista que também era chefe de Estado. Exemplo:
como a divisão da Europa pelas potências aliadas impedia
que a França e a Itália ingressassem no bloco socialista.
Moscou recomendou aos PCs dos dois países que se desarmassem
e participassem após a guerra de gabinetes de coalização.
Tito interpretou a diretriz com uma capitulação. Numa
reunião do Kominform, seu enviado especial esculhambou com
os emissários de Thorez e Togliatti. Procurava, é
lógico, atingir o próprio Stalin, representado por
Malenkov e Jdanov.
O anti-stalinismo do regime de Belgrado assume dimensões
que os soviéticos consideram provocadoras. Com a guerra da
Coréia, Tito chega mesmo a cogitar do envio de tropas para
atuarem sob o comando de McArthur. Nunca tendo aderido ao Pacto
de Varsóvia, estuda sua adesão à Comunidade
Européia de Defesa, organismo sob hegemonia norte-americana.
No plano interno, descentraliza em 1952 seu partido e contrapõe
ao modelo soviético de Estado centralizado um regime de autogestão.
Apesar da "dissidência titoísta", o movimento
comunista internacional mantinha sua aparente unidade enquanto os
partidos a ele integrados mergulhavam num mar de questões
ainda latentes. A crise foi detonada em 14 de fevereiro de 1956.
A edição do "Pravda", anunciando a abertura
do XX Congresso, trazia ao lado de seu logotipo apenas o retrato
de Lenin. Joseph Stalin, já falecido, não mais figurava.
A luta interna do PCURSS (Kruchev contra a "linha dura":
Kaganovitch, Molotov, Malenkov e Vorochilov) deu lugar à
redação e leitura do famoso relatório sobre
os crimes do ex-dirigente. A absolvição dos médicos
implicados no "Complô judeu" - suposta tentativa
de assassinato de Stalin - abriria as comportas de uma sucessão
de revisões judiciais.
O XX Congresso funcionou como um estopim pelo qual os demais partidos
seriam levados, mais dia menos dia, a rever suas posições.
E, com isso, a unidade do movimento internacional perdeu sua estrutura
autoritária.
Uma mistura de conservantismo, pudor e desonestidade impediu que
todos os partidos tirassem imediatamente as lições
que hoje atribuem ao episódio. Na França, por exemplo,
o PCF já sabia desde a reunião convocada por Moscou
em 14 de julho de 1953 que Stalin acabaria caindo na berlinda. Mas
Jacques Duclos, representante de Thorez, sonegou essas informações
ao Comitê Central. Sua delegação teve um comportamento
idêntico três anos depois, com o "Relatório
Kruchev". Os militantes do PCF tomaram conhecimento do documento
pela leitura do vespertino "Le Monde", que obteve, por
sua vez, junto ao Departamento de Estado. O jornal partidário
- "L'Humanité" - silenciou sobre as "insinuações
da imprensa burguesa". Os italianos foram mais honestos. Togliatti,
em entrevista ao "Nuovi Argumenti", mencionava a "degenerescência
da democracia socialista na União Soviética".
Ele empregou o termo "policentrismo" para designar o movimento
comunista internacional. Admitida a pluralidade, a ortodoxia se
desfaz e o aparelho que a sustenta deixa de operar segundo seus
antigos parâmetros.
Dito e feito. Em 1956, Kruchev dissolve o "Kominform".
Matando dois coelhos com uma cajadada só, esboça uma
aproximação com a Iugoslávia e subtrai ao "grupo
anti-partido" (Molotov e companhia) um apoio externo que lhe
evitaria cair em desgraça.
A crise vai engrossando com uma bola de neve. Em 21 de outubro daquele
ano, Wladislaw Gomulka, antiga vítima do stalinismo no partido
polonês, é reconduzido ao cargo de secretário-geral.
No dia seguinte, os estudantes húngaros comemoram o episódio
com uma passeata que desencadeia em Budapeste uma rebelião
que durou sete dias. Erno Gero - um stalinista que dirige o Comitê
Central - é derrubado e substituído por Janos Kadar,
velho militante que acusa o regime de "degenerado e tirânico".
Kadar saúda "a heróica revolta popular",
mas as coisas começam a escapar de seu controle. Imre Nagy,
uma outra vítima do stalinismo, com ele compartilha um governo
provisório e aceita a instituição do pluripartidarismo
e o retorno à democracia de modelo ocidental. Kruchev hesita,
mas acaba intervindo militarmente na Hungria. Kadar assume o poder
com o auxílio soviético e Nagy é sequestrado
da Embaixada da Iugoslávia e fuzilado na Romênia depois
de um julgamento sumário.
A gravidade extrema do episódio não desperta reações
unânimes de apoio à intervenção de Kruchev.
Os tchecos, romenos, alemães e búlgaros apoiam a URSS
por temerem que rebeliões semelhantes "desestabilizem"
seus próprios partidos. A China, a Iugoslávia e a
Polônia - mesmo contestando um retorno da Hungria ao capitalismo
- apoiam de início o movimento popular. Na Europa Ocidental,
o PCF dá provas de total submissão, elogiando a repressão
que acabou com os "contra-revolucionários". Quando
Jean-Paul Sartre e outros intelectuais protestam, quem defende o
partido é um "linha dura" chamado Roger Garaudy.
Mas nem tudo se resume a desestalinizações superficiais,
intercâmbio de declarações obedientes ou indisciplinadas
ou a uma crise de chancelarias de democracias populares sob o fundo
sonoro de tanques e canhões. Na mesma época, um acordo
firmado em Genebra põe fim, provisoriamente à guerra
da Indochina, onde os guerrilheiros do Viet-Minh (comunistas) fundam
em Hanói o primeiro regime socialista do Sudeste Asiático
e obtêm a promessa - jamais cumprida - de eleições
livres em Saigon, que venceriam com tranquilidade. Em que pese o
auxílio material de Moscou e Pequim - incomparavelmente menor
que o fornecido pelo Ocidente ao Sul - este terceiro polo revolucionário
ingressa no campo socialista ao final de uma longa guerra. Em 1975,
os comunistas governam o Vietnã do Sul, o Laos e o Camboja.
A grande cisão ocorreria, porém, com Mao Tsetung.
Temendo que, sob pretexto de desestalinizar o PC soviético
renunciasse ao socialismo, Mao enfrenta uma poderosa ala direita
de seu próprio partido, encabeçada pelo marechal Peng
Tehuai - ministro da Defessa que atua com o aval de Kruchev. O conflito
eclode em agosto de 1959, durante a reunião do Comitê
Central em Lushan. No ano seguinte, chineses e soviéticos
opõem-se duramente num encontro das cúpulas comunistas
em Moscou. Em 1962, Mao incita o Comitê Central "a preservar
permanentemente a luta de classes e a combater o revisionismo".
No ano seguinte, a ruptura se consuma com um ataque nominal ao PC
soviético (carta em 25 pontos): "Os centros da revolução
mundial encontram-se nas regiões do III Mundo submetidas
à opressão imperialista".
O conflito sino-soviético é de uma complexidade extrema.
Envolve concepções divergentes de sistemas de produção
(para Mao, a criação de grandes complexos industriais
favoreceu, na URSS, a emergência da nova burguesia burocrática);
delimitação fluida de fronteiras e a consequente concentração
de tropas que geraram incidentes; diferenças na interpretação
da literatura marxista; disputa de áreas de influência
geopolítica na África; e outros ingredientes igualmente
heterogêneos.
Conclusão inevitável: a dimensão semântica
de monolitismo da expressão "movimento comunista internacional"
deixou de existir de uma vez por todas. Se em 1957 a URSS já
encontrava dificuldades em manter sua tutela sobre os PCs - no poder
ou na oposição - as reuniões inter-partidárias
de 1960 e 1969 tornaram tal ambição totalmente anacrônica.
Isto se evidenciou durante a conferência dos partidos europeus
em Berlim (1976).
Um novo fenômeno verificou-se a partir da década de
60: a criação de partidos comunistas "Maoístas",
em países onde os marxistas não governam. A bicefalia
das bases militantes não ocorria nestas proporções
desde que, na década de 30, os trotskistas sofreram expurgos
e se organizaram a seguir numa IV Internacional. O titoísmo,
entre 1947 e 1956, não chegou a se estruturar como circuito
partidário paralelo.
Outro fenômeno também contemporâneo: o eurocomunismo.
Iniciado com a reflexão do PC italiano sobre a "consubstancialidade
entre socialismo e democracia", ele refletiu a necessidade
dos partidos da Europa Ocidental de reverem seus programas no momento
em que, terminada a Guerra Fria, novas alianças lhes permitiriam
participar do poder. E essas alianças impunham excluir de
suas plataformas a ditadura do proletariado, para que os aliados
em potencial (sobretudo os socialistas) não temessem ser
engolidos como sobremesa numa refeição revolucionária
idêntica à da Bulgária em 1947, ou da Hungria
e Tchecoslováquia no ano seguinte.
Este correspondente já abordou a questão eurocomunista
na edição da Folha de 6 de novembro. Para não
me repetir, sublinho apenas a existência de uma contradição
enorme entre a política soviética baseada no equilíbrio
dos blocos na Europa (détente) e a intenção
dos comunistas franceses, espanhóis e italianos em romper
com este mesmo equilíbrio ao procurarem governar com seus
aliados da esquerda. Isso faz com que as embaixadas de Moscou apoiem
desavergonhadamente os partidos da direita em Madri e Paris. Quanto
a Roma, a dimensão própria ao "compromisso histórico"
(aliança do PC com a Democracia Cristã) se traduz
por um comportamento mais sutil. Afinal, a URSS não desaprova
a vontade de Berlinguer em manter a Itália na OTAN, em nome
do sacrossanto equilíbrio permitido pela Conferência
de Helsinque.
Com o eurocomunismo, esvaziou-se irremediavelmente a expressão
"linha russa", aplicada a certos partidos em posição
à "linha chinesa". E por pura burrice que muita
gente ainda joga com essa dicotomia lexical.
Basta lembrar a crítica ferrenha que a maior parte dos partidos
do Ocidente endereçou a Moscou quando, em agosto de 1968,
as tropas do Pacto de Varsóvia penetraram em Praga. Doze
anos após a intervenção soviética na
Hungria, repetia-se na Europa uma tragédia cuja dramaticidade
só se compara à farsa jurídica com que "Theodore
Roosevelt aplicou na América Latina sua política do
"Big Stick". Mas isso é outra história.
O fim da Primavera de Praga e a deposição do Dubcek
subtraíram o que restava de respeito entre os comunistas
franceses ou italianos, espanhóis ou japoneses, ingleses
ou holandeses pelos atuais dirigentes da URSS. Tratava-se de uma
experiência que não se afastava um polegada sequer
do socialismo. Contrariamente à rebelião de Budapeste
em 1956, inexistia como reivindicação o retorno ao
regime de iniciativa privada.
As repercussões traumáticas que a crise tcheca provocou
entre os comunistas não alinhados permitiram o surgimento
de uma consciência tardia sobre um problema até então
classificado por comodismo, como "liberdades formais e burguesas".
Trata-se dos direitos humanos. A direita não possui mais
o monopólio da renúncia de Gulag, dos internamentos
psiquiátricos abusivos, da censura literária ou cinematográfica,
da contenção da liberdade acadêmica ou da centralização
excessiva dos mecanismos administrativos. Brejnev e seu partido
são hoje atacados tão abertamente que Santiago Carrillo,
o líder do PC espanhol, os considerou há algumas semanas
como algo que não se assemelha sequer ao socialismo. Convenhamos
que há 23 anos - nas vésperas do XX Congresso - tal
avaliação na boca de um comunista seria inimaginável.
A crítica do stalinismo - num processo cuja aparato teórico
ultrapassa de longe o materialismo histórico - também
permitiu que os comunistas da Europa Ocidental levantassem dúvidas
quanto à viabilidade da própria concepção
de Lenin sobre o Estado (que deveria perecer numa sociedade em que
estivessem abolidas as classes sociais). O historiador militante
francês Jean Ellenstein assume hoje, dentro do PCF, posições
inaceitáveis na época de Maurice Thorez, por contradizerem
frontalmente a literatura leninista. Por sua vez, os comunistas
italianos - sobretudo um atuante grupo milanês - ousam interrogar-se
sobre a dimensão materialista da teoria freudiana e a maneira
com que o centralismo democrático acaba gerando uma dependência
neurótica entre as bases e a cúpula de uma organização
partidária, fenômeno que bloqueia o racionalismo e
neutraliza o raciocínio dialético.
Digamos que esta e outras posições são bem
embrionárias. Mas o fato de serem discutidas no interior
de um PC comprova inexistir o temor da heterodoxia. Não tem
mais nada a ver com o ortodoxo e monolítico "movimento
comunista internacional", hoje finado. |
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