São Paulo, quarta-feira, 4 de janeiro de 1978


O FINADO COMUNISMO INTERNACIONAL

J.B. Natali

PARIS - Dogmatismo é o nome do combustivel que alimenta as grandes estruturas burocráticas. O "movimento comunista internacional" deixou de existir na medida que enfraqueceu o dogma de um modelo unificado de partido ou de estratégia para a construção do socialismo. A cisão titoísta e a originalidade de Mao, o euro-comunismo e as críticas contra a repressão aos dissidentes soviéticos são alguns dos pululantes fenômenos históricos que tornam hoje pueril a velha imagem da Guerra Fria, que atribuía ao comunismo a dimensão de um aparelho multinacional capaz de fomentar os mais sórdidos "complôs contra a democracia". Não é mais nada disso.

Comecemos pelo início. O primeiro embrião de internacionalismo germinou bem antes do nascimento de Marx. Basta ver a maneira com que os republicanos suíços, belgas ou alemães se identificaram à Revolução Francesa. E foi também em nome da república que em 1831 a derrota dos revolucionários poloneses gerou violentas passeatas nos grandes centros urbanos da Europa. Ainda não havia sindicatos: temia-se que essa forma de organização dos assalariados recriasse as corporações e falseasse as leis do mercado pelas quais se desenvolvia o capitalismo. Mesmo assim, surgia a idéia de contrapor com uma "internacional" as alianças familiares que unificavam monarcas com o aval dos banqueiros.

O século XIX assistiu ao nascimento das duas primeiras organizações. Dos socialistas "utópicos" aos anarquistas, dos sociais-democratas aos marxistas, prevalecia como denominador comum a idéia de que as guerras entre as nações só terminariam no momento em que a linha de demarcação entre os Estados se transformasse em fronteira interna, definindo os antagonismos entre dominantes e dominados.

Ora, essa plataforma fracassou. A eclosão da Primeira Guerra Mundial comprovou a predominância dos nacionalismos. Lenin baseou-se nessa constatação ao considerar falida a II Internacional á qual os bolcheviques haviam pertencido.

Vem a Revolução de Outubro e, cinco meses depois, o primeiro congresso do PC no poder. "A vitória de nossa revolução será provisória se permanecermos isolados e sem o paralelo desencadeamento de movimentos semelhantes em outros países". Era duplo o objetivo leninista: permitir com uma nova organização que o internacionalismo das lideranças bolchevistas permanecesse atuante, e impedir que, sem outras revoluções, a Rússia se isolasse. Iniciou imediatamente os contatos que permitiram reunir em março de 1919 um "Congresso dos Partidos Revolucionários Proletários". Os 51 participantes de 30 países criaram, assim, a III Internacional, que durou até maio de 1943.

Lenin desejava que o Komintern - designação corrente do movimento - se estruturasse segundo a mais rígida dependência entre seus partidos. Apenas a disciplina permitiria evitar que os revolucionários caíssem na arapuca do belicismo que havia vitimado a unidade interna da Internacional anterior.

Em julho de 1920, o Segundo Congresso do Komintern aprova um documento definindo as 21 condições de admissão dos partidos comunistas. Digamos, para simplificar, que o excessivo centralismo programático, existente já em sua origem, gerou uma satelitização dos demais partidos porque, com a ascensão de Stalin, Moscou se transformou em centro do movimento internacional, em guardião da "ortodoxia proletária" e, de lambuja, em pólo pontifical das excomunhões (que começaram vitimando os trotskistas).

Os estatutos da Internacional estipulavam que "o trabalho principal e as maiores responsabilidades pertencem ao PC do país em que o Congresso Mundial fixar a sede do Comitê Executivo". Mas não se desconfiava, na época, que até 1944 só a URSS e a Mongólia teriam efetuado suas respectivas revoluções. Acreditava-se, ao contrário, que era iminente a vitória em outras nações européias, sobretudo na Alemanha. Assim, Lenin esperava que os sucessivos congressos da III Internacional deslocassem geograficamente o Comitê Executivo para que as nações hóspedes exercessem, cada uma por sua vez, a função organizadora predominante.

Nem é preciso dizer que o stalinismo acabou com o pluricentrismo entre os partidos unificados debaixo de uma ideologia comum. Lembrem-se da tese historicamente absurda de "socialismo num só país" (a União Soviética). Em lugar de auxiliar os revolucionários dos demais países, Moscou definiu-lhe como tarefa a defesa de seu próprio regime. Um regime que, a bem da verdade, estava ameaçado pela ascensão do fascismo na Europa. Na prática, a ortodoxia se traduzia por uma mística em que os soviéticos viravam uma espécie de vitrina de uma sociedade nova e inacessível para os outros.

Foi por isso que o "movimento comunista internacional" acabou correspondendo às mais apimentadas caricaturas desenhadas por seus adversários. Como estrutura burocrática, ele trazia em seu bojo o vírus da centralização que Stalin soube utilizar em nome da fidelidade aos princípios que Lenin definiu em 1920.

Vejamos. Entre as condições que os partidos filiados deviam reconhecer para integrar o Komintern havia o dispositivo segundo o qual "a agitação e a propaganda quotidianas devem possuir um caráter efetivamente comunista, conformando-se ao programa e aos documentos da III Internacional".

Com o perdão das citações enfadonhas, vejamos dois outros dispositivos, traduzidos literalmente da versão francesa:

- "Os Partidos comunistas devem proceder a periódicas depurações de seus quadros para afastar os elementos pequeno-burgueses e interesseiros".

- "Os programas dos partidos filiados à Internacional Comunista devem ser aprovados pelo Congresso da Internacional ou pelo Comitê Executivo".

Para manter a ortodoxia doutrinária que faltou à II Internacional, o Komintern impunha aos revolucionários um conjunto uniforme de regras para disputarem disciplinadamente a partida da revolução. Mas essa faca de dois gumes passou a cortar do lado que Lenin certamente não cogitava, na medida que os expurgos do PC soviético eram acompanhados por expurgos em que dissidentes nos demais partidos caíam fora da organização.

Em termos de mecanismo interno, o Komintern se enquadra nas observações que um dos mais lúcidos intelectuais franceses, Pierre Legendre, fez em seu livro "L'Amour Eu Censeur" sobre a ortodoxia eclesiástica e a linguagem dogmática da Igreja, nos velhos tempos da Inquisição. Em resumo, a hierarquia é essencialmente paranóica, porque funciona com base em delírios interpretativos capazes de proteger a fé contra as artimanhas de seus eventuais transgressores. A interpretação (instância policial por excelência) identifica o que é conforme e o que é dissidente, o que é ortodoxo e o que é heterodoxo. E tudo isso sob a cobertura de uma cúpula centralizadora e encabeçada pelo Papa. Stalin ocupou, sem dúvida alguma, o trono papal do Komintern.

A comparação não é nem um pouco abusiva. Basta ver os recentes estudos que os comunistas efetuam hoje sobre o fenômeno stalinista. Traçam um paralelo entre a normatividade imposta pelo Kremlin e essa mistura de fé e mística que atrapalhava qualquer racionalismo necessário para uma providencial autocrítica. Impossível contestar os crimes efetuados em nome da "ideologia proletária" no momento em que a autoridade suprema do Komintern é dogmatizada por um homem de dimensões pontificiais. Sua palavra é lei. A obediência define o revolucionário enquanto a desobediência define o rebelde-pecador.

O problema é enorme. Sem levar em conta a paixão que Stalin inspirava - como encarnação da própria revolução - como justificar a aceitação, pelos demais partidos, da eliminação de antigos membros do Estado Maior de Lenin, como Zinoviev, Kamenev, Bukarin ou Rikov? Como justificar os expurgos sucessivos, que recheavam as covas coletivas e superpovoavam os campos de trabalho forçado?

Como apêndice do PC soviético - que era, por sua vez, o prolongamento de Stalin - a Internacional deixou de ser uma organização colegiada. Seu VII e último Congresso (Moscou, julho de 1935) colocou-a definitivamente sob a tutela de burocratas soviéticos.

A década define-se por uma lista inesgotável de erros de análise. A organização entrou numa canoa furada e definiu os sociais-democratas (e não os fascistas) como alvo historicamente privilegiado. Com isto, os comunistas alemães evitaram uma aliança eleitoral que teria impedido a vitória do Partido Nacional Socialista (nazista).

Durante a Guerra Civil Espanhola, os trotskistas mereceram um tratamento idêntico ao que o Komintern reservava aos rebeldes anti-republicanos chefiados por Franco.

Tudo isso coroado pela desmobilização dos comunistas ocidentais depois que Stalin assinou em 1939 seu "Pacto de Não-Agressão" com Hitler. Os partidos filiados ao Komintern estavam certos que as tropas nazistas não invadiriam a União Soviética. Invadiram, e como! Tamanha ingenuidade gerou reações paradoxais por parte de partidos cujos países eram por sua vez incorporados ao Reich. Na França, o PCF solicitou ao comandante das tropas alemãs que autorizasse a publicação do "Humanité". O episódio gerou uma desconfiança crônica dos demais movimentos da resistência. O PC precisou provar com muito sangue de militante que combatia pela França e não por Moscou.

Com a dissolução do Komintern já moribundo, em 1943, Stalin manifestava a intenção de não exportar a revolução soviética. O objetivo prioritário na época consistia em derrotar militarmente o Eixo. Tratava-se, porém, de um gesto puramente formal. Se não levarmos em conta a hospedagem de líderes comunistas cuja permanência em seus países colocaria suas vidas em perigo - como Palmiro Togliatti e Maurice Thorez - Moscou não tinha jeito de fornecer aos partidos clandestinos meios estratégicos que lhes auxiliassem a derrotar os ocupantes alemães pela guerrilha. Isso determinou um embrião de autonomia. Na França, na Itália e sobretudo na Iugoslávia, as ações militares dos resistentes efetivavam-se sem a interferência do Komintern. Até 1943, a prioridade soviética consistia, logicamente, em reinverter até o fim a tendência que havia levado o front nazista às portas de Leningrado.

O quadro deveria se modificar com a Conferência de Yalta. Em fevereiro de 1948, oito nações liberadas já haviam se autoproclamado república populares. Se é verdade que a rápida transformação de regimes condicionou-se à presença do Exército Vermelho em seis delas, nas duas restantes a vitória local contra a Alemanha foi obtida por conta própria. Refiro-me à Albânia e à Iugoslávia. E não é coincidência o fato de ambas integrarem, por motivos diferentes, o campo de futuras cisões.

Belgrado e Tirana não aderiram ao socialismo como a Romênia, a Hungria ou a Bulgária - antigas aliadas de Hitler que a URSS derrotou com as armas. E nem como a Polônia ou a Tchecoslováquia, adversárias do nazismo subjugadas pelo Reich e a seguir liberadas pelas tropas russas a caminho de Berlim. Por mais que todos estes países tenham integrado um bloco que os ocidentais designaram pela infeliz expressão de "Cortina de Ferro", sua homogeneidade interna nunca existiu. E o socialismo entre eles foi instaurado às custas da revolução num outro país: a Grécia.

Em 1944, o governo monárquico de Atenas, no exílio, reassume as rédeas do país porque os resistentes do movimento "Elas" (predominantemente comunista) aceitam participar de um governo de coalização. Mas recusam-se a entregar suas armas. Três meses depois, deflagraram uma guerra civil da qual sairiam derrotados. Os corpos expedicionários britânicos intervieram ao lado das tropas reais, materialmente auxiliadas pelos EUA. A União Soviética não mexeu um dedo sequer. Pudera! Em outubro daquele ano, Stalin negociou com Churchill a permanência grega no campo capitalista em troca do reconhecimento da hegemonia da URSS na Bulgária e na Romênia. O acordo também previa uma divisão equitativa de influência, entre Londres e Moscou, na Hungria e na Iugoslávia. Se em Budapest, convocaram-se eleições segundo o modelo das democracias ocidentais, em Belgrado Tito não hesitou desobedecer à "pátria do socialismo".

Essas pequenas jogadas, hoje estudadas com atenção pelos eurocomunistas, comprovavam que debaixo do ideal internacionalista sempre evocado, apesar da dissolução do Kominentern, a URSS se comportava pela primeira vez como superpotência em negociações cujos resultados nem sempre levavam em conta a soberania de comunistas em outros Estados.

Tito foi o primeiro a se rebelar. A independência de sua revolução lhe conferia uma legitimidade que Stalin não podia contestar. Mas contestava. Em setembro de 1947, a Internacional renasce durante um encontro em Varsóvia. Chamava-se "Kominform" (Birô de Informações) e estipulava como objetivo, em plena Guerra Fria, combater o "imperialismo norte-americano". Mas a organização serviu, em verdade, para condenar formalmente o titoísmo no ano seguinte e permitir que os chamados partidos irmãos efetuasse expurgos em seus aparelhos, numa caça às bruxas que lembrava a perseguição aos trotskistas na época do Komintern.

Se é verdade que Stalin mantinha os demais partidos sob seu comando, ele agora precisava engolir a contestação de um comunista que também era chefe de Estado. Exemplo: como a divisão da Europa pelas potências aliadas impedia que a França e a Itália ingressassem no bloco socialista. Moscou recomendou aos PCs dos dois países que se desarmassem e participassem após a guerra de gabinetes de coalização. Tito interpretou a diretriz com uma capitulação. Numa reunião do Kominform, seu enviado especial esculhambou com os emissários de Thorez e Togliatti. Procurava, é lógico, atingir o próprio Stalin, representado por Malenkov e Jdanov.

O anti-stalinismo do regime de Belgrado assume dimensões que os soviéticos consideram provocadoras. Com a guerra da Coréia, Tito chega mesmo a cogitar do envio de tropas para atuarem sob o comando de McArthur. Nunca tendo aderido ao Pacto de Varsóvia, estuda sua adesão à Comunidade Européia de Defesa, organismo sob hegemonia norte-americana. No plano interno, descentraliza em 1952 seu partido e contrapõe ao modelo soviético de Estado centralizado um regime de autogestão.

Apesar da "dissidência titoísta", o movimento comunista internacional mantinha sua aparente unidade enquanto os partidos a ele integrados mergulhavam num mar de questões ainda latentes. A crise foi detonada em 14 de fevereiro de 1956. A edição do "Pravda", anunciando a abertura do XX Congresso, trazia ao lado de seu logotipo apenas o retrato de Lenin. Joseph Stalin, já falecido, não mais figurava. A luta interna do PCURSS (Kruchev contra a "linha dura": Kaganovitch, Molotov, Malenkov e Vorochilov) deu lugar à redação e leitura do famoso relatório sobre os crimes do ex-dirigente. A absolvição dos médicos implicados no "Complô judeu" - suposta tentativa de assassinato de Stalin - abriria as comportas de uma sucessão de revisões judiciais.

O XX Congresso funcionou como um estopim pelo qual os demais partidos seriam levados, mais dia menos dia, a rever suas posições. E, com isso, a unidade do movimento internacional perdeu sua estrutura autoritária.

Uma mistura de conservantismo, pudor e desonestidade impediu que todos os partidos tirassem imediatamente as lições que hoje atribuem ao episódio. Na França, por exemplo, o PCF já sabia desde a reunião convocada por Moscou em 14 de julho de 1953 que Stalin acabaria caindo na berlinda. Mas Jacques Duclos, representante de Thorez, sonegou essas informações ao Comitê Central. Sua delegação teve um comportamento idêntico três anos depois, com o "Relatório Kruchev". Os militantes do PCF tomaram conhecimento do documento pela leitura do vespertino "Le Monde", que obteve, por sua vez, junto ao Departamento de Estado. O jornal partidário - "L'Humanité" - silenciou sobre as "insinuações da imprensa burguesa". Os italianos foram mais honestos. Togliatti, em entrevista ao "Nuovi Argumenti", mencionava a "degenerescência da democracia socialista na União Soviética". Ele empregou o termo "policentrismo" para designar o movimento comunista internacional. Admitida a pluralidade, a ortodoxia se desfaz e o aparelho que a sustenta deixa de operar segundo seus antigos parâmetros.

Dito e feito. Em 1956, Kruchev dissolve o "Kominform". Matando dois coelhos com uma cajadada só, esboça uma aproximação com a Iugoslávia e subtrai ao "grupo anti-partido" (Molotov e companhia) um apoio externo que lhe evitaria cair em desgraça.

A crise vai engrossando com uma bola de neve. Em 21 de outubro daquele ano, Wladislaw Gomulka, antiga vítima do stalinismo no partido polonês, é reconduzido ao cargo de secretário-geral. No dia seguinte, os estudantes húngaros comemoram o episódio com uma passeata que desencadeia em Budapeste uma rebelião que durou sete dias. Erno Gero - um stalinista que dirige o Comitê Central - é derrubado e substituído por Janos Kadar, velho militante que acusa o regime de "degenerado e tirânico". Kadar saúda "a heróica revolta popular", mas as coisas começam a escapar de seu controle. Imre Nagy, uma outra vítima do stalinismo, com ele compartilha um governo provisório e aceita a instituição do pluripartidarismo e o retorno à democracia de modelo ocidental. Kruchev hesita, mas acaba intervindo militarmente na Hungria. Kadar assume o poder com o auxílio soviético e Nagy é sequestrado da Embaixada da Iugoslávia e fuzilado na Romênia depois de um julgamento sumário.

A gravidade extrema do episódio não desperta reações unânimes de apoio à intervenção de Kruchev. Os tchecos, romenos, alemães e búlgaros apoiam a URSS por temerem que rebeliões semelhantes "desestabilizem" seus próprios partidos. A China, a Iugoslávia e a Polônia - mesmo contestando um retorno da Hungria ao capitalismo - apoiam de início o movimento popular. Na Europa Ocidental, o PCF dá provas de total submissão, elogiando a repressão que acabou com os "contra-revolucionários". Quando Jean-Paul Sartre e outros intelectuais protestam, quem defende o partido é um "linha dura" chamado Roger Garaudy.

Mas nem tudo se resume a desestalinizações superficiais, intercâmbio de declarações obedientes ou indisciplinadas ou a uma crise de chancelarias de democracias populares sob o fundo sonoro de tanques e canhões. Na mesma época, um acordo firmado em Genebra põe fim, provisoriamente à guerra da Indochina, onde os guerrilheiros do Viet-Minh (comunistas) fundam em Hanói o primeiro regime socialista do Sudeste Asiático e obtêm a promessa - jamais cumprida - de eleições livres em Saigon, que venceriam com tranquilidade. Em que pese o auxílio material de Moscou e Pequim - incomparavelmente menor que o fornecido pelo Ocidente ao Sul - este terceiro polo revolucionário ingressa no campo socialista ao final de uma longa guerra. Em 1975, os comunistas governam o Vietnã do Sul, o Laos e o Camboja.

A grande cisão ocorreria, porém, com Mao Tsetung. Temendo que, sob pretexto de desestalinizar o PC soviético renunciasse ao socialismo, Mao enfrenta uma poderosa ala direita de seu próprio partido, encabeçada pelo marechal Peng Tehuai - ministro da Defessa que atua com o aval de Kruchev. O conflito eclode em agosto de 1959, durante a reunião do Comitê Central em Lushan. No ano seguinte, chineses e soviéticos opõem-se duramente num encontro das cúpulas comunistas em Moscou. Em 1962, Mao incita o Comitê Central "a preservar permanentemente a luta de classes e a combater o revisionismo". No ano seguinte, a ruptura se consuma com um ataque nominal ao PC soviético (carta em 25 pontos): "Os centros da revolução mundial encontram-se nas regiões do III Mundo submetidas à opressão imperialista".

O conflito sino-soviético é de uma complexidade extrema. Envolve concepções divergentes de sistemas de produção (para Mao, a criação de grandes complexos industriais favoreceu, na URSS, a emergência da nova burguesia burocrática); delimitação fluida de fronteiras e a consequente concentração de tropas que geraram incidentes; diferenças na interpretação da literatura marxista; disputa de áreas de influência geopolítica na África; e outros ingredientes igualmente heterogêneos.

Conclusão inevitável: a dimensão semântica de monolitismo da expressão "movimento comunista internacional" deixou de existir de uma vez por todas. Se em 1957 a URSS já encontrava dificuldades em manter sua tutela sobre os PCs - no poder ou na oposição - as reuniões inter-partidárias de 1960 e 1969 tornaram tal ambição totalmente anacrônica. Isto se evidenciou durante a conferência dos partidos europeus em Berlim (1976).

Um novo fenômeno verificou-se a partir da década de 60: a criação de partidos comunistas "Maoístas", em países onde os marxistas não governam. A bicefalia das bases militantes não ocorria nestas proporções desde que, na década de 30, os trotskistas sofreram expurgos e se organizaram a seguir numa IV Internacional. O titoísmo, entre 1947 e 1956, não chegou a se estruturar como circuito partidário paralelo.

Outro fenômeno também contemporâneo: o eurocomunismo. Iniciado com a reflexão do PC italiano sobre a "consubstancialidade entre socialismo e democracia", ele refletiu a necessidade dos partidos da Europa Ocidental de reverem seus programas no momento em que, terminada a Guerra Fria, novas alianças lhes permitiriam participar do poder. E essas alianças impunham excluir de suas plataformas a ditadura do proletariado, para que os aliados em potencial (sobretudo os socialistas) não temessem ser engolidos como sobremesa numa refeição revolucionária idêntica à da Bulgária em 1947, ou da Hungria e Tchecoslováquia no ano seguinte.

Este correspondente já abordou a questão eurocomunista na edição da Folha de 6 de novembro. Para não me repetir, sublinho apenas a existência de uma contradição enorme entre a política soviética baseada no equilíbrio dos blocos na Europa (détente) e a intenção dos comunistas franceses, espanhóis e italianos em romper com este mesmo equilíbrio ao procurarem governar com seus aliados da esquerda. Isso faz com que as embaixadas de Moscou apoiem desavergonhadamente os partidos da direita em Madri e Paris. Quanto a Roma, a dimensão própria ao "compromisso histórico" (aliança do PC com a Democracia Cristã) se traduz por um comportamento mais sutil. Afinal, a URSS não desaprova a vontade de Berlinguer em manter a Itália na OTAN, em nome do sacrossanto equilíbrio permitido pela Conferência de Helsinque.

Com o eurocomunismo, esvaziou-se irremediavelmente a expressão "linha russa", aplicada a certos partidos em posição à "linha chinesa". E por pura burrice que muita gente ainda joga com essa dicotomia lexical.

Basta lembrar a crítica ferrenha que a maior parte dos partidos do Ocidente endereçou a Moscou quando, em agosto de 1968, as tropas do Pacto de Varsóvia penetraram em Praga. Doze anos após a intervenção soviética na Hungria, repetia-se na Europa uma tragédia cuja dramaticidade só se compara à farsa jurídica com que "Theodore Roosevelt aplicou na América Latina sua política do "Big Stick". Mas isso é outra história.

O fim da Primavera de Praga e a deposição do Dubcek subtraíram o que restava de respeito entre os comunistas franceses ou italianos, espanhóis ou japoneses, ingleses ou holandeses pelos atuais dirigentes da URSS. Tratava-se de uma experiência que não se afastava um polegada sequer do socialismo. Contrariamente à rebelião de Budapeste em 1956, inexistia como reivindicação o retorno ao regime de iniciativa privada.

As repercussões traumáticas que a crise tcheca provocou entre os comunistas não alinhados permitiram o surgimento de uma consciência tardia sobre um problema até então classificado por comodismo, como "liberdades formais e burguesas". Trata-se dos direitos humanos. A direita não possui mais o monopólio da renúncia de Gulag, dos internamentos psiquiátricos abusivos, da censura literária ou cinematográfica, da contenção da liberdade acadêmica ou da centralização excessiva dos mecanismos administrativos. Brejnev e seu partido são hoje atacados tão abertamente que Santiago Carrillo, o líder do PC espanhol, os considerou há algumas semanas como algo que não se assemelha sequer ao socialismo. Convenhamos que há 23 anos - nas vésperas do XX Congresso - tal avaliação na boca de um comunista seria inimaginável.

A crítica do stalinismo - num processo cuja aparato teórico ultrapassa de longe o materialismo histórico - também permitiu que os comunistas da Europa Ocidental levantassem dúvidas quanto à viabilidade da própria concepção de Lenin sobre o Estado (que deveria perecer numa sociedade em que estivessem abolidas as classes sociais). O historiador militante francês Jean Ellenstein assume hoje, dentro do PCF, posições inaceitáveis na época de Maurice Thorez, por contradizerem frontalmente a literatura leninista. Por sua vez, os comunistas italianos - sobretudo um atuante grupo milanês - ousam interrogar-se sobre a dimensão materialista da teoria freudiana e a maneira com que o centralismo democrático acaba gerando uma dependência neurótica entre as bases e a cúpula de uma organização partidária, fenômeno que bloqueia o racionalismo e neutraliza o raciocínio dialético.

Digamos que esta e outras posições são bem embrionárias. Mas o fato de serem discutidas no interior de um PC comprova inexistir o temor da heterodoxia. Não tem mais nada a ver com o ortodoxo e monolítico "movimento comunista internacional", hoje finado.
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