São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 1980


UM COMBATE DESIGUAL


Clóvis Rossi

Os acontecimentos do ABC deixam definitivamente claros dois limites que, antes, eram apenas intuídos ou denunciados principalmente pelas lideranças sindicais mais combativas: de um lado, o limite da ação efetiva que a chamada sociedade civil pode desenvolver para frear o autoritarismo e, de outro, o limite da abertura política patrocinada pela autoridades federais. E, infelizmente, um e outro são bastante estreitos.

Do lado da sociedade civil, percebe-se que ela está fazendo o máximo, mas o máximo, no caso, é pouco. As centenas de manisfestos e moções de apoio aos metalúrgicos não mudam rigorosamente um milímetro a situação no ABC. E a generosa contribuição ao Fundo de Greve, se dá um oxigênio a mais aos grevistas, não muda o isolamento da categoria na arena de luta. O único apoio efetivo à greve, que quebraria o isolamento, seria responder com greves de solidariedade à força empregada pelo governo para pôr fim à greve. E não se diga que pregar essa medida é subversão: em todas as democracias avançadas do Ocidente, greves de solidariedade são rotina - e não abalam o quadro institucional. Acontece que todas as lideranças sindicais responsáveis reconhecem, francamente, que suas categorias não estão preparadas para uma ação eminentemente política como o é a greve de solidariedade.

De parte da classe política, é tão patética a impotência que os parlamentares simplesmente abandonam o Parlamento, conscientes de que a tribuna se esvazia nos momentos realmente graves, e se transformam em guardas de segurança dos grevistas. Uma função certamente útil, mas tão inócua quanto os discursos no Senado ou na Câmara, como o demonstra o fato de que o deputado Gilberto Siqueira Filho sequer conseguiu acompanhar Lula ao Deops no momento em que o líder sindical era preso na presença do parlamentar.

Quanto à abertura política, os fatos do ABC mostram, na prática, que tinham razão os líderes sindicais quando denunciavam que ela não chegava à classe trabalhadora, atada, juridicamente, a uma legislação de inspiração facista e, economicamente, a uma política que privilegia nitidamente o capital em detrimento do trabalho.

É verdade que o governo se escuda na lei para justificar toda a sua atuação no episódio, mas fica evidente que falece de autoridade moral para pedir cumprimento da lei a quem a violou em pelo menos três momentos: primeiro, ao sequestrar um cidadão inteiramente alheio aos acontecimentos (o motorista do deputado Geraldo Siqueira Filho), no instante em que ele deixava a casa de Lula, mantendo-o preso durante cinco horas em uma viatura policial, até que se consumasse a prisão do próprio Lula; segundo, ao prender Dalmo Dallari e José Carlos Dias, "por equívoco". Pedir desculpas, depois, pela violentação da lei, de nada adianta, até porque equívocos semelhantes podem gerar vítimas às quais já não é possível pedir desculpas, como o jornalista Vladimir Herzog. E, finalmente, o governo viola a própria Constituição, que permite a utilização das praças públicas para reuniões, desde que os manifestantes não portem armas (e, sabidamente, os metalúrgicos não têm usado armas).

O governo usa, no caso, o espírito famoso de Benedito Valadares, incorporado ao folclore político; aos amigos, tudo; aos inimigos, apenas o rigor da lei, quando possível. E, com a lei, acima da lei e à margem da lei, afasta a horda de metalúrgicos do bem protegido jardim da abertura. Quebrar a greve, exemplar os metalúrgicos - que ousam invadir esse jardim pela força de sua mobilização e não por concessão do bom Príncipe - é esse o claro objetivo do governo. E, raciocinando friamente, é muito provável que ele seja alcançado hoje, amanhã ou depois, pouco importa: afinal, desprovidos de apoio efetivo, de suas lideranças, de seus locais de reunião, armados apenas de algumas pedras contra um aparatoso esquema de policiamento, parece impossível que esses modernos davis de sotaque carregado repitam a façanha bíblica. A volta ao trabalho parece inexorável. Mas - e esse é um dado fundamental a levar em conta para o futuro - é também inexorável que, algum dia, os metalúrgicos voltem à cena, como voltaram o ano passado, cantando, uma vez devolvido o seu sindicato: "Oceis pensaru que nóis tinha ido embora; ói nóis aqui 'tra vêiz."
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