|
Contrapondo-se
à violência individual, o Estado impõe com violência
seus parâmetros de normalidade. Suas instituições
distinguem o aceitável do inaceitável e descem impunemente
o cacete nos cidadãos que resistem ao enquadramento. Esta
é a grande lição política de "A
Clockwork Orange", (Laranja Mecânica), o filme de Stanley
Kubrick que os europeus assistiram em 1972 porque nenhuma censura
procurou na época infantilizá-los sob o pretexto de
que a história seria um mau exemplo para os que sublimam
uma carga de agressividade.
Anthony Burgess, que publicou há 16 anos o romance do qual
se extraiu o filme, é um inglês intuitivo que beirou
a genialidade a partir de uma premissa banal. Linguista, poliglota
e entusiasta de James Joyce - é o autor de dois ensaios e
de uma edição abreviada de "Finnegans Wake"
- ele procurou forjar para seus personagens uma linguagem bem particular,
recheada de neologismo. Mas o que não passaria de um bom
recurso literário acabou fornecendo à "Laranja
Mecânica" um dos eixos básicos para sua leitura
política. E isso porque os personagens - situados um pouco
antes do ano 2000 - exprimem-se num inglês misturado a sons
e a palavras russas. Sintetiza-se uma aproximação
entre a violência estatal das superpotências. Pouco
importa se apenas uma delas, a União Soviética, possui
seus dissidentes oficiais e seus asilos psiquiátricos. Esse
tipo de repressão, denunciado publicamente bem depois da
publicação do livro de Burgess, é comum a todo
Estado que atua segundo o dogma dos detentores de um saber: o que
é bom e o que é mau.
Alex, o personagem central encontra-se com outros marginais de seu
bando numa cafeteria futurista chamada "Korovo Milkbar",
onde se toma um leite vitaminado chamado Moloko, que jorra pelos
seios de uma enorme e sensual boneca. Para qualificar as coisas
que lhe aprazem, ele usa a palavra "Horroshow", em inglês
quer dizer espetáculo de horror. Mas em russo a palavra "Horosh"
significa excelente, perfeito. São pequenas ambiguidades
semânticas que determinam um enfoque moral meio ambiguo do
banditismo praticado.
Malcon Macdowell, interpretando o papel de Alex, é uma espécie
de trombadinha da "science-fiction". Rouba, é capaz
de linchar suas vitimas pelo prazer de vê-las sofrer, e não
tem nada de um marginal que apela para a violência a fim de
obter dinheiro. A sociedade em que vive se define pela opulência.
Ele próprio dispõe de um fantástico equipamento
de som para se deliciar com a Nona Sinfonia de seu compositor predileto,
Ludwig Van. É de Beethoven que se trata, embora a partitura
tenha sofrido uma adaptação meio cafona, em que vozes
e instrumentos da orquestra foram substituídos pelos sons
de um sintetizador eletrônico.
Pois bem, Alex é traído por seus companheiros de noitada
e cai em mãos da polícia. Transforma-se no detento
6655321 de uma prisão estatal chamada Prita 84-F. Um belo
dia, um psicólogo chamado dr. Branom propõe que, em
troca de uma libertação antecipada, ele se submeta
ao "Método Ludovico", destinado a curá-lo
da violência.
O método seria um recurso narrativo cômico se não
caricaturasse com tanta perfeição teorias cientificas
consagradas. Trata-se do mais puro behaviorismo, que consiste em
"condicionar" o paciente a rejeitar todo comportamento
"anormal". Alex é colocado num palco onde se obrigam
a assistir filminhos com cenas de violência inegável.
Mas antes dessas sessões cinematográficas, injetam-lhe
um medicamento que lhe provoca insuportável náusea.
Associando as cenas ao mal-estar físico, ele neutraliza sua
agressividade natural e se transforma num "cidadão modelo".
Ora, o "Método Ludovico" representa no filme de
Kubrick toda uma teoria pela qual se define a ciência oficial.
Ou seja, a verdade. O ideal do Estado é ter sob seu comando
cidadãos que não contestem uma paz estabelecida. O
marginal Alex é de certa maneira um subversivo. Ao aceitar
o conceito de normalidade que lhe impõem durante o tratamento,
ele não tem apenas aniquilado seu potencial de marginalismo.
E sobretudo, um conformismo social que se manifesta.
A coisa é extremamente sutil. Se o público não
concorda moralmente com a violência gratuita de Alex, o desenrolar
do filme leva o mesmo público a descobrir que o cidadão
pacífico torna-se sinônimo de indivíduo destruído.
É por isso que a dupla Burgess-Kubrick não construiu,
com a Laranja Mecânica, uma simples apologia às violências,
conforme a interpretação dos simplistas e reacionários.
Há nessa postura uma enorme hipocrisia. Do faroeste ao "chefão",
e do policial inglês da década de 40, aos seriados
produzidos para a TV, a violência física já
se incorporou aos ingredientes cinematográficos para que
possa constituir um mau exemplo que o espectador se disporia imediatamente
a imitar.
Não é nada disso. O que Kubrick demonstra é
que os marginais e as instituições do Estado (sobretudo
quando elas empunham o bastão da "ciência")
praticam uma violência idêntica.
Bem após o sucesso comercial de "Laranja Mecânica",
um outro filme levantou genialmente o problema, e chegou inclusive
a ganhar um Oscar. Foi "The Flight Over The Cou-Cou Nest"
("Um Estranho no Ninho", no Brasil), de Milos Forman.
É claro que, desta vez, o paciente de um asilo psiquiátrico
mostrava-se com menor ambiguidade e o público ficava a seu
lado a partir das primeiras cenas. Ele era vítima do sistema,
como se diz, do começo ao fim. Mas entre Forman e Kubrick
há a proposta semelhante de não permitir que os qualificativos
retrógrados e de simplismo moralista sejam aplicados apenas
aos indivíduos que se considera "anormais". É
preciso igualmente, interrogar a ideologia que se esconde por detrás
da definição desses parâmetros de normalidade.
|
|