|
|
|
|
|
São
Paulo, domingo, 20 de setembro de 1992
|
|
|
|
|
|
|
|
|
UM XEQUE-MATE NO CAPITALISMO
|
|
|
|
|
|
|
|
|
O filósofo
alemão Robert Kurz vê na crise do Leste sinais de
um colapso do sistema econômico mundial
|
|
|
Da Redação |
|
|
Embora muitos intelectuais venham tentando responder em ensaios
e livros, ao que George Bush qualificou de "Nova Ordem Mundial",
é indisfarçável a perplexidade que se apoderou
de todos - políticos, economistas, cientistas sociais - diante
das dimensões e da velocidade com que vêm se modificando
a política e a economia internacionais.
Se no campo dito "neoliberal" e nas áreas conservadoras
o problema da crise do socialismo foi "resolvido" com
uma euforia triunfalista (tão cínica quanto inútil
do ponto de vista do esclarecimento do que se passa), no terreno
do pensamento de tradição marxista, ou de "esquerda",
os efeitos do esfacelamento das experiências socialistas têm
sido devastadores. Se o que era para ser feito deu errado, o que
pensar?
Em seu livro "O Colapso da Modernização",
que ainda este ano deverá chegar ao leitor brasileiro pela
editoria Paz e Terra, o alemão Robert Kurz talvez tenha conseguido
dar um passo à frente de seus pares - e fornecer pistas para
um entendimento mais consistente da dinâmica do mundo neste
conturbado fim de século.
O primeiro a descobrí-lo e comentá-lo no Brasil foi
o professor e crítico de filiação marxista
Roberto Schwarz. Num texto publicado pela Folha, em maio último,
qualificando o livro de "inteligente e incisivo", o professor
da Unicamp saudava a voz destoante do alemão que ousou quebrar
a "unanimidade" das análises que vêem na
crise socialista o triunfo do mercado sobre o estatismo, a superioridade
do capitalismo sobre o socialismo e a refutação indiscutível
dos prognósticos de Marx.
Para surpresa de Schwarz - e certamente de quem venha a ler o livro
-, Kurz sustenta algo substancialmente diferente. Como escreveu
o crítico brasileiro, para o filósofo alemão
"a mencionada débâcle representaria, nada menos
e pelo contrário, o início da crise do próprio
sistema capitalista, bem como a confirmação do argumento
básico de 'O Capital'".
Para esboçar tal ousadia, Kurz, 50 anos, um alemão
que até a semana passada, quando chegou ao Brasil, nunca
havia ultrapassado as barreiras da Europa em suas poucas viagens,
parte de algumas premissas. Antes de mais nada, não contrapõe
modelos abstratos de sociedade. Não trabalha com oposições
simples do tipo capitalismo versus socialismo ou democracia versus
autoritarismo. Procura perceber, ao contrário, um sistema
mundial de produção de mercadorias, articulado e em
movimento.
Considerados desta forma, capitalismo e socialismo reais deixam
de se erigir em simples modelos "puros", estanques, um
em oposição ao outro. O que se tem é um sistema
mundial de produção de mercadorias do qual as economias
socialistas fazem parte, tanto quanto as capitalistas.
Vista nesta perspectiva, a quebra das economias socialistas explicitaria,
na realidade, os impasses do sistema global - cuja crise caminharia
da perifeira para o centro, partindo do Terceiro Mundo, passando
pelos países socialistas para, enfim, atingir os países
ricos.
Na última semana, Kurz participou de um seminário
sobre a "Nova Ordem Mundial", promovido pela Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo. Na terça-feira,
ele recebeu a Folha para a entrevista que se segue, na qual comenta
suas teses e a crise internacional.
(Fernando de Barros e Silva e Alcino Leite Neto)
|
|
|
*
|
|
|
Folha
- Uma das conclusões centrais de seu livro "O Colapso
da Modernização" é a de que o capitalismo,
e não o socialismo, está em xeque-mate. De forma original,
o senhor diz que, depois de lutar contra a exploração
capitalista, os trabalhadores têm que lutar agora contra a
falta dela. Do sistema de exploração, se passa para
uma situação de exclusão porque os grandes
centros capitalistas passam cada vez mais a prescindir da exploração
do trabalho tal como foi pensada por Karl Marx. O senhor não
acha que o Terceiro Mundo não serve mais para nada, nem mesmo
para ser explorado?
Kurz - De fato, esse é um dos pontos centrais do meu
livro. Este processo de exclusão é mais evidente nos
países do Terceiro Mundo ou nos países do antigo bloco
soviético, mas indícios desse fenômeno podem
ser notados nos próprios países do Primeiro Mundo.
E a maior contradição está justamente aí.
Sempre que o capitalismo chega no limite de sua lógica interna,
quando parece que vai se esgotar, surgem novas formas de tecnologia
e de desenvolvimento científico que o recolocam em funcionamento.
Isso está empurrando o mundo numa direção em
que o trabalho é substituído por mecanismos artificiais
de produção de riqueza. A grande contradição
é que a idéia de acúmulo de capital só
funciona com a exploração do trabalho. Se não
há trabalho, não há acúmulo de capital.
Na verdade, o sistema algum dia vai se esgotar. Por mais que se
vá automatizando todo o processo, o capitalismo chegará
a um momento em que não conseguirá mais funcionar
assim. Isso vale para o Primeiro, Segundo ou Terceiro Mundo.
Folha - O sr. conhece a teoria de Dependência que foi desenvolvida
por Fernando Henrique Cardoso, um dos intelectuais brasileiros que
mais marcaram a sociologia na América Latina durante os anos
60 e 70? Essa situação que o sr. expõe parece
uma espécie de releitura desta teoria, já que apresenta
uma nova forma de "dependência".
Kurz - Não, não conheço a obra de Fernando
Henrique, mas é bastante possível que minha teoria
seja de alguma forma um prosseguimento dela. É muito razoável
imaginar que, em diversas partes do mundo, as pessoas cheguem às
mesmas conclusões, pois o sistema é um só e
a realidade que vivemos é uma só. É possível
que certas tendências do pensamento se manifestem aqui, como
na Europa ou qualquer outro lugar. Como vemos este sistema de maneira
global, e também a crise como global, a discussão
e as soluções para esta encruzilhada também
são discussões que vão ser travadas em nível
global.
O que aconteceu é que há 15, 20 anos atrás,
havia economias nacionais autônomas e que funcionam de maneira
autônoma. Nos últimos anos, os limites desta economia
nacional foram destruídos e está se criando uma grande
economia que está por cima da compreensão da nacionalidade,
de que um país deva ter um mercado interno. Esta explosão
vem diretamente associada com a miséria crescente em alguns
pontos do mundo. Então, esta grande explosão do mercado
é ao mesmo tempo o próprio colapso do sistema.
Folha - No seu novo livro, que deve ser publicado no próximo
mês na Alemanha, "O Retorno de Potemkim", o senhor
aprofunda certos aspectos que estão tratados em "O Colapso
da Modernização". Poderia falar deste livro,
começando pelo título inusitado?
Kurz - O título é claramente irônico. Tanto
neste livro quanto no outro ("O Colapso da Modernização"),
procuro ver esse sistema global de produção de mercadorias
com os olhos voltados para a realidade da unificação
alemã. Isto é, como a Alemanha hoje está se
inserindo neste sistema global. Havia uma ilusão neoliberal
de que a anexação da Alemanha Oriental iria dar início
a um grande impulso no rumo do capitalismo, o que não está
acontecendo. A idéia da unificação era a de
que, com o aumento do mercado consumidor, você poderia além
de vender muito mais, investir na parte oriental do país
e assim provocar um novo milagre econômico na Alemanha. Isso
não ocorre. A Alemanha Ocidental era já tão
desenvolvida que ela prescindia da própria Alemanha Oriental.
Também não se confirmou a previsão de que a
Alemanha Oriental receberia investimentos. O que ocorreu é
que os ocidentais estão usando os orientais para vender os
seus produtos, e só. Mas as pessoas na Alemanha Oriental
estão desempregadas, têm cada vez menos dinheiro e,
em consequência disso, não têm condições
de comprar nada. Criou-se uma grande farsa financeira, esta é
a verdade.
Não há nenhum capitalismo produtivo, que é
o capitalismo potemkiano. Nesse quadro, o Estado alemão,
todos os anos, destina uma verba de cerca de 200 bilhões
de marcos para a Alemanha Oriental, não para investir num
parque industrial, mas para que os alemães orientais comprem
os produtos que são feitos na Alemanha ocidental. É
uma grande farsa que vai funcionar talvez alguns anos, mas que em
algum momento próximo vai se esgotar.
Folha - A partir desta reflexão sobre a Alemanha, seria
interessante saber o diagnóstico que o sr. faz do ressurgimento
dos nacionalismos, do neonazismo, e também das ondas de imigração
de uma Alemanha à outra e do Leste em geral para a Europa
Ocidental.
Kurz - Eu não vejo este novo movimento nacionalista da
mesma forma como aquele que aconteceu no início do século.
Este último é um nacionalismo que vem do século
passado, que é o da formação da economia nacional.
A economia nacional é aquela que hoje em dia se rompeu para
se tornar a grande economia. Naquela época os movimentos
nacionalistas eram a idéia nacional de uma economia autônoma.
Os movimentos nacionalistas eram progressistas neste sentido, porque
eles continham o projeto de desenvolver uma economia nacional autônoma.
Hoje o nacionalismo tem uma característica destrutiva, é
reflexo da crise que estamos vivendo e da destruição
do sistema, que é iminente. O novo nacionalismo participa
desta desintegração que está havendo no mundo.
Hoje na Europa se fala de um etno-nacionalismo, porque muitos países,
como a Alemanha, são multirraciais, onde vivem há
muitos anos vários grupos de estrangeiros. O nacionalismo
não é o de alemães contra não-alemães.
É o nacionalismo de pessoas que estão incluídas
no sistema e que vivem bem e pessoas que estão excluídas.
Muitas regiões da ex-Alemanha Oriental são regiões
que estão excluídas, não participam do sistema
e nem vão participar. E essas regiões querem fazer
parte do sistema. O nacionalismo vem daí, do interesse de
querer participar do que resta ainda deste sistema global. O ódio
que se tem na Alemanha contra estrangeiros não é só
contra eles, mas também contra os alemães que estão
vindo da União Soviética ou de regiões que
antes da Primeira Guerra eram habitadas por alemães.
A questão é pertencer ou ser excluído do sistema,
fenômeno que pode ser identificado também nas ligas
separatistas no norte da Itália, onde se fala que a partir
de Roma para o sul não é mais Itália, é
África. Ou então na Iugoslávia, onde antigos
Estados fortes, como a Eslovênia e a Croácia querem
participar da Comunidade Econômica Européia, querem
se integrar à nova ordem, e os pobres, que são os
sérvios e macedônios, estão excluídos.
O que acontece no caso dos iugoslavos é um processo destrutivo
de desintegração. É uma reação
dos grupos que estão excluídos. Eles começam
a ser agressivos, se organizam e promovem a guerra. Estes grupos
normalmente não são hegemônicos, não
existe um grande partido, uma grande idéia. São, no
caso da Alemanha Oriental, grupos pequenos, criminosos mesmo. É
mais uma atmosfera destrutiva que cerca as pessoas e que dá
margem à formação destes grupos - isso não
parte propriamente de uma idéia política ou de um
partido.
Folha - Se caminhamos para o colapso ou já estamos no
colapso, o sr. imagina alguma forma de organização
política que possa, não conter o colapso, mas ultrapassá-lo
ou levá-lo mais rápido para o fim?
Kurz - Temos uma situação em que o socialismo
está morto e o neoliberalismo está morto, apesar do
que pensam seus entusiastas. Qualquer forma de política passa
necessariamente por lutas parciais e conquistas em um âmbito
restrito. O problema é que movimentos como o ecologismo,
a luta feminina, das minorias, etc. têm que enfrentar o problema
do capital, da circulação universal das mercadorias.
Esta é a dificuldade: conciliar lutas pontuais e específicas
com uma crítica à universalidade do atual mercado
capitalista.
Folha - Qual o prazo que o sr. dá para a atual euforia
neoliberal?
Kurz - Eu acho que já vivemos uma espécie de pós-euforia
liberal. O mundo está percebendo muito rápido que
os problemas colocados pelo liberalismo não só não
foram resolvidos, como estão se agravando.
Folha - A sua leitura do "colapso da modernização"
parece inspirada, em muitos aspectos, sobretudo na aposta por um
futuro sombrio para a humanidade, nas idéias da chamada Escola
de Frankfurt, especialmente na "Dialética do Iluminismo"
de Adorno e Hokheimer. Isso é verdade?
Kurz - Sem dúvida nenhuma. Vejo a Escola de Frankfurt
como uma base para todo o meu pensamento. Mas há dois procedimentos
dentro da esquerda na Alemanha, ou na Europa, que seria melhor que
deles nos afastássemos. Um deles é o das pessoas que
aprenderam a idéia, mas estão colodas à idéia
e ficam administrando o legado da Escola de Frankfurt. Outro procedimento
é aquele das pessoas que acabam descartando as idéias
da Escola de Frankfurt como se fossem uma camisa suja que precisa
ser jogada no lixo. Toda idéia morre se ela não for
levada adiante. É preciso conhecer as idéias de Adorno
e Horkheimer, mas é preciso também retrabalhá-las,
para que não morram. |
|
|
| |