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Anisio
Teixeira
"Ex-diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagogicos; ex-reitor
da Universidade de Brasília, atualmente em Paris, contratado
pela UNESCO para a elaboração de projetos educacionais".
Só conhecemos o passado lendo os historiadores. O privilegio
dos historiadores é o de escreverem os seus livros sabendo
já o que aconteceu depois. A imagem do que aconteceu ao longo
do tempo os obriga a ver o passado à luz do futuro e daí
emprestarem aos acontecimentos um sentido determinista que parece
explicar o futuro, que, em rigor, foi imprevisto e inexplicavel,
ou, pelo menos, acidental.
Já a observação do contemporaneo é de
outra natureza. Estes realmente ignoram o futuro e todo o seu raciocinio
se faz à luz do passado. E o passado nem sempre os ajuda
a compreender o presente, quanto mais prever o futuro. Daí,
para os que lêem historia, o desconcertante e ironico prazer
que lhes traz ler os contemporaneos dos periodos historicos, as
suas cartas, as suas memorias. Nada sabiam eles do que estava acontecendo.
Aristoteles foi tutor de Alexandre e contemporaneo de toda sua carreira.
Muito estudou e escreveu durante a fulgurante rajada historica do
brilhante discipulo, criador de cidades, unindo o Leste ao Oeste.
Não há um sinal, em todos os documentos que deixou,
do seu interesse por esses fatos. Durante todo periodo estudou as
«constituições» das cidades do passado.
Esta é a nossa situação diante do mundo de
hoje. É verdade que temos mais informação do
que Aristoteles, mas a informação toma o aspecto de
versões e o estudioso deseja fatos objetivos comprovados.
Facilmente ignora a confusa informação contemporanea.
O contemporaneo não julga o presente estudavel. Só
quando o presente se fez passado é que se debruça
sobre ele com a sua incansavel paciencia.
São estas reflexões que me ocorrem em nosso mundo
de hoje, diante da prosapia, do vitorianismo, da certeza com que
tantas cabeças solidas, seguras e até brilhantes falam
de baderna, de carnaval, de agitação sem sentido,
do não saberem o que querem, da mocidade do nosso tempo.
Como contemporaneo, tambem nada sei do futuro. Pelo menos, porem,
não sejamos tão peremptorios sobre o que está
acontecendo. Deixemos, um pouco, lugar para a duvida e tenhamos
o senso de reconhecer que estamos diante do novo realmente novo,
não valendo para enfrentá-lo as nossas formulas habituais
de pensamento.
Quando o presidente Johnson julga que só existe um problema
para a sua aventura no Vietnã: obter uma solução
honrosa - para isto destruirá o mundo, se fôr
necessario - está o texano, que um acidente levou ao poder
da mais poderosa nação do mundo, comportando-se como
o «pioneiro» duma luta pessoal infeliz na «fronteira».
A sua «honra», na briga pessoal podia justificar a sua
morte ou a do seu inimigo, mas o conflito em que hoje interveio
como chefe de uma nação, é conflito de natureza
totalmente nova, é o conflito entre o «forte»
e o «fraco», o qual está a descobrir novas forças.
O seu conceito pessoal da «honra» do forte é
completamente inadequado. Isto, porem, não pode o contemporaneo
ver, só o «historiador» nos irá contar
depois.
O mesmo se pode sentir com o atual estado de espirito da juventude.
Parece-me que estamos a viver um periodo de descoberta ou redescoberta
de novas forças. O profeta dessa descoberta foi Mahatma Gandhi
com a idéia da desobediencia civil e da resistencia passiva.
Essa idéia sempre foi a idéia revolucionaria do homem,
em todos os tempos. Governo pelo consentimento não é
novidade mas coisa velhissima. A força, sem consentimento,
só governa em emergencias. Essas emergencias sempre foram
breves, só passando a serem longas, quando o progresso dos
armamentos deu um tal poder aos fortes que eles puderam prolongar
indefinidamente a «emergencia», acabando por parecer
consentido o seu governo.
Nesse periodo armado, nos tempos modernos, a primeira demonstração
de que mesmo com armas o governo devia ser consentido, deram-nos
os barões ingleses no seculo XII. Daí em diante mesmo
com armas, o governo tinha que ser consentido, porque se verificou
que «tudo se pode fazer com baionetas, menos sentar-se em
cima delas». Até aí, contudo, governante e governado
se entendiam e viviam em sociedades simples e controlaveis. O capitalismo
com sua enfase em liberdade individual, nasceu, então, e
institucionalizou o que se passou a chamar governo livre, ou seja,
consentido e limitado.
O desenvolvimento do capitalismo entretanto, levou a um processo
organização social cumulativo pelo qual a sociedade
se fez maquina tão complexa e poderosa, que nenhum individuo,
nem grupo social podia controlá-la. O proprio grupo dominante
dela se aproveitava, mas, em rigor, não a controlava. O mecanismo
de defesa dessa "organização" teve que se
fazer extremamente poderoso e, de certo modo, invencivel. A relativa
prosperidade material obtida fêz-se o colchão amortecedor
das resistencias e o estado de superorganização aparentemente
se consolidou, apresentando, sob muitos aspectos, carater semelhante
ao do primeiro exito vitoriano do capitalismo na Inglaterra, país
de origem do nosso sistema. Toda inconformidade faz-se suicidio.
E a conformidade, a garantia de todo exito. Assim estão,
hoje, as nações chamadas desenvolvidas: opulentas,
sem saber o que fazer da opulencia, mas enfatuadas em sua prosperidade!
Se o espirito de conformidade pudesse ser estendido indefinidamente,
o estado social de riqueza e mecanização ao formigueiro
poderia ser tambem indefinidamente mantido. A atrapalhação
estava nos paises não desenvolvidos, pois estes não
haviam chegado à coalescencia homogeneizada e mecanica da
estabilidade opulenta e viviam em desordem e revolução
permanente.
A mais rica e poderosa das nações desenvolvidas resolveu
então organizar um programa de ação policial
planetaria e «proibir» as revoluções e
como este problema tinha vulto, isto a levou a esquecer os seus
problemas internos, os quais, a despeito da opulencia, não
tinham sido resolvidos.
Em rigor, cada nação desenvolvida tem o problema do
subdesenvolvimento dentro de suas fronteiras. Sendo, porem, o programa
de policia anti-revolucionaria junto aos subdesenvolvidos o problema
aparentemente mais importante, os paises ricos julgaram que poderiam
desprezar as suas minorias nacionais subdesenvolvidas e continuarem
em sua euforica prosperidade, desde que contivessem pela aventura
policial os paises pobres e insolentemente teimosos por sua transformação
e nos outros amortecessem a inconformidade com certa dose de auxilios
financeiros sabiamente orientados. Com esse programa, as nações
ricas entraram em uma saudavel emulação de prosperidade,
amorteceram-se as questões politicas, os problemas do mundo
se fizeram problemas monetarios e financeiros e tudo ganhou a satisfeito
e tranquilo ritmo vitoriano que é o de que o tempo tudo resolve.
Os problemas internos desses paises entraram em tranquila penumbra:
que importa se havia pobres e havia erros, se eram ricos e a prosperidade
crescia?
Dentro dessa situação de complacencia interna e policia
internacional contra a revolução (suplementada por
esmolas de auxilio internacional), o mundo se fêz uma tertulia
internacional de reuniões, congressos, conferencias, etc.,
dentro do mais incrivel intermezzo de aparente tranquilidade.
Essa tranquilidade é que a mocidade está a perturbar.
Com efeito a prosperidade - aparentemente contra-revolucionaria
- produziu uma explosão de aspirações. Os velhos
sistemas educacionais limitados e conservadores foram tomados de
assalto e o numero dos que resolveram educar-se ou prolongar sua
educação multiplicou-se por dois, por três,
por quatro, por dez. Nem as suas condições, nem os
seus programas satisfaziam a nova população estudantil.
O ar vitoriano das atmosferas nacionais era irrespiravel para toda
essa população nova e sedenta de cultura e facilidades
identicas às dos grupos satisfeitos e dominantes da sociedade
anterior.
O mal-estar de toda essa mocidade é proverbial não
lhe sendo possivel aceitar o estado de aquiescencia e absurdo em
que passaram a viver as nações ricas, com um unico
problema: o do mercado, o da moeda, e o dos balanços financeiros.
O inconformismo tomou, dentro da atmosfera de complacencia social,
a forma dos hippies, dos beatniks, de uma universal revolta contra
a moda, ou as modas, ou simplesmente, o enfado da vida moderna.
Mas, isto era com os estudantes apenas enfarados. A disponibilidade
de espirito em que os mergulhava um programa de estudos sem imaginação
predispunha-os tambem a outra revolta, a revolta contra a ilusão
de que opulencia nacional resolvera todos os problemas. E
tivemos, então, a forma mais direta de inconformidade, de
que nos deu agora a França a demonstração mais
vigorosa.
A revolta estudantil deflagrou a revolta da força de trabalho
e os tranquilos grupos dominantes acordaram do seu letargico sossego.
Mas há materia a mais para a reflexão. E com isto,
voltamos ao inicio destes comentarios. É a questão
da desobediencia civil.
Toda opressão humana ocorre de uma aprovação
geral dessa opressão. Em outros termos, todo uso da violencia
contra o homem decorre de se aprovar essa violencia. A aprovação
se concretiza por um conceito de desigualdade, mediante o qual estou
oprimindo alguem que não é meu igual, portanto, ou
é meu inimigo, ou me é indiferente. Essa desigualdade
se institucionaliza dentro de cada sociedade pelo conceito de casta,
de classe, ou mesmo de simples posição hierarquica.
Para vencer-se isto há, hoje, o programa dos direitos humanos,
mas ele não passou ainda da fase declaratoria.
Deste modo, a opressão só poderá ser removida
se os oprimidos resolverem se opor à opressão. Este
comportamento é desencorajado pela repressão ou seja
o uso da propria violencia, de cujos instrumentos tem o opressor
o monopolio; mas, geralmente, não se chega a esse confronto,
pois o consenso social é suficiente para deter a inconformidade.
Quando o consenso já não é suficiente, a certas
formas mais sutis de abrandar a inconformidade, ou seja, a tomada
de consciencia. O metodo usual e razoavelmente bem sucedido é
o da "igualdade de oportunidades". Habilmente conduzido
esse processo divide a massa de oprimidos, mantendo o grupo dentro
da esperança de emancipação individual. É
a lei da selva da vitoria do mais capaz elevada à categoria
de ideal inspirador da justiça social.
Quebrar-se esse consenso social que permite a opressão não
é, assim, coisa facil. Torna-se necessario para removê-lo
um grau de educação razoavel e, mais do que isto,
que esta educação ensine a solidariedade humana e
não a competição humana. Sabemos quanto os
sistemas de educação são, fundamentalmente,
sistemas fundados na competição.
Onde, então, a esperança de que o metodo da desobediencia
civil possa vir a generalizar-se? A esperança como a vejo
está nos países desenvolvidos e ricos. Aí,
é que a quantidade de educação já oferecida
pode retirar-lhe o carater competitivo de tipo malefico. E aí,
é que tambem essa quantidade de educação pode
ser suficiente para produzir um estado de lucidez superior. E, terceiro,
aí, é que a segurança da prosperidade pode
chegar a dar ao jovem a tranquilidade de ser inconformado. Porque
é necessario que a inconformidade não seja um suicidio.
Não se pode pedir que cada homem seja um vietnamita.
Outro motivo de esperança é o possivel exito de demonstração
na França. Se a França sair de sua crise para uma
revolução pacifica pode pegar.
Não esqueçamos que nos periodos historicos de opressão
de uma elite sobre todo um povo, o mecanismo de defesa dessa elite
era mercenario. Os exercitos nacionais, não mercenarios,
nasceram com os governos nacionais não só consentidos
mas destinados a assegurar a igualdade social dentro de cada nação.
O exercito defendia os interesses comuns de toda nação.
Esses exercitos são exercitos da juventude de cada nação.
Se se tornar claro que tais exercitos longe de defender interesses
comuns estão defendendo interesses de uma classe, só
haverá um remedio: os exercitos se transformarem nos exercitos
mercenarios da epoca da aristocracia.
Este é outro aspecto que a inconformidade de juventude revela.
A luta nos Estados Unidos contra o recrutamento é, sem duvida,
um sinal de que algo nesse sentido se vem desenvolvendo.
Par concluir, quero lembrar que em todas as nações
a luta contra o perigo, a luta pelos interesses comuns se fez com
a mocidade. Desgraçadamente, até hoje, as nações
desenvolvidas obtiveram sua prosperidade pela guerra. E a guerra
sempre foi feita pelos moços. Não há exercitos
senão de moços. Eles é que pagaram o mais alto
preço pelo famoso "interesse nacional". Se os moços
perdem a sua habitual e proverbial conformidade e resolvem recusar
a guerra injusta, surge para a humanidade, a maior das esperanças:
a discriminação entre o bom ou o mau uso do mais cruel
instrumento da politica entre os homens. Temos, pois, de saudar
a rebelião moderna da juventude de como o maior e o mais
promissor sinal de nosso tempo. |
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