São Paulo, domingo, 02 de Junho de 1968
Neste texto foi mantida a grafia original

A REBELIÃO DOS JOVENS

Anisio Teixeira


"Ex-diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagogicos; ex-reitor da Universidade de Brasília, atualmente em Paris, contratado pela UNESCO para a elaboração de projetos educacionais".

Só conhecemos o passado lendo os historiadores. O privilegio dos historiadores é o de escreverem os seus livros sabendo já o que aconteceu depois. A imagem do que aconteceu ao longo do tempo os obriga a ver o passado à luz do futuro e daí emprestarem aos acontecimentos um sentido determinista que parece explicar o futuro, que, em rigor, foi imprevisto e inexplicavel, ou, pelo menos, acidental.

Já a observação do contemporaneo é de outra natureza. Estes realmente ignoram o futuro e todo o seu raciocinio se faz à luz do passado. E o passado nem sempre os ajuda a compreender o presente, quanto mais prever o futuro. Daí, para os que lêem historia, o desconcertante e ironico prazer que lhes traz ler os contemporaneos dos periodos historicos, as suas cartas, as suas memorias. Nada sabiam eles do que estava acontecendo. Aristoteles foi tutor de Alexandre e contemporaneo de toda sua carreira. Muito estudou e escreveu durante a fulgurante rajada historica do brilhante discipulo, criador de cidades, unindo o Leste ao Oeste. Não há um sinal, em todos os documentos que deixou, do seu interesse por esses fatos. Durante todo periodo estudou as «constituições» das cidades do passado.

Esta é a nossa situação diante do mundo de hoje. É verdade que temos mais informação do que Aristoteles, mas a informação toma o aspecto de versões e o estudioso deseja fatos objetivos comprovados. Facilmente ignora a confusa informação contemporanea. O contemporaneo não julga o presente estudavel. Só quando o presente se fez passado é que se debruça sobre ele com a sua incansavel paciencia.

São estas reflexões que me ocorrem em nosso mundo de hoje, diante da prosapia, do vitorianismo, da certeza com que tantas cabeças solidas, seguras e até brilhantes falam de baderna, de carnaval, de agitação sem sentido, do não saberem o que querem, da mocidade do nosso tempo. Como contemporaneo, tambem nada sei do futuro. Pelo menos, porem, não sejamos tão peremptorios sobre o que está acontecendo. Deixemos, um pouco, lugar para a duvida e tenhamos o senso de reconhecer que estamos diante do novo realmente novo, não valendo para enfrentá-lo as nossas formulas habituais de pensamento.

Quando o presidente Johnson julga que só existe um problema para a sua aventura no Vietnã: obter uma solução honrosa - para isto destruirá o mundo, se fôr necessario - está o texano, que um acidente levou ao poder da mais poderosa nação do mundo, comportando-se como o «pioneiro» duma luta pessoal infeliz na «fronteira». A sua «honra», na briga pessoal podia justificar a sua morte ou a do seu inimigo, mas o conflito em que hoje interveio como chefe de uma nação, é conflito de natureza totalmente nova, é o conflito entre o «forte» e o «fraco», o qual está a descobrir novas forças. O seu conceito pessoal da «honra» do forte é completamente inadequado. Isto, porem, não pode o contemporaneo ver, só o «historiador» nos irá contar depois.

O mesmo se pode sentir com o atual estado de espirito da juventude. Parece-me que estamos a viver um periodo de descoberta ou redescoberta de novas forças. O profeta dessa descoberta foi Mahatma Gandhi com a idéia da desobediencia civil e da resistencia passiva. Essa idéia sempre foi a idéia revolucionaria do homem, em todos os tempos. Governo pelo consentimento não é novidade mas coisa velhissima. A força, sem consentimento, só governa em emergencias. Essas emergencias sempre foram breves, só passando a serem longas, quando o progresso dos armamentos deu um tal poder aos fortes que eles puderam prolongar indefinidamente a «emergencia», acabando por parecer consentido o seu governo.

Nesse periodo armado, nos tempos modernos, a primeira demonstração de que mesmo com armas o governo devia ser consentido, deram-nos os barões ingleses no seculo XII. Daí em diante mesmo com armas, o governo tinha que ser consentido, porque se verificou que «tudo se pode fazer com baionetas, menos sentar-se em cima delas». Até aí, contudo, governante e governado se entendiam e viviam em sociedades simples e controlaveis. O capitalismo com sua enfase em liberdade individual, nasceu, então, e institucionalizou o que se passou a chamar governo livre, ou seja, consentido e limitado.

O desenvolvimento do capitalismo entretanto, levou a um processo organização social cumulativo pelo qual a sociedade se fez maquina tão complexa e poderosa, que nenhum individuo, nem grupo social podia controlá-la. O proprio grupo dominante dela se aproveitava, mas, em rigor, não a controlava. O mecanismo de defesa dessa "organização" teve que se fazer extremamente poderoso e, de certo modo, invencivel. A relativa prosperidade material obtida fêz-se o colchão amortecedor das resistencias e o estado de superorganização aparentemente se consolidou, apresentando, sob muitos aspectos, carater semelhante ao do primeiro exito vitoriano do capitalismo na Inglaterra, país de origem do nosso sistema. Toda inconformidade faz-se suicidio. E a conformidade, a garantia de todo exito. Assim estão, hoje, as nações chamadas desenvolvidas: opulentas, sem saber o que fazer da opulencia, mas enfatuadas em sua prosperidade!

Se o espirito de conformidade pudesse ser estendido indefinidamente, o estado social de riqueza e mecanização ao formigueiro poderia ser tambem indefinidamente mantido. A atrapalhação estava nos paises não desenvolvidos, pois estes não haviam chegado à coalescencia homogeneizada e mecanica da estabilidade opulenta e viviam em desordem e revolução permanente.

A mais rica e poderosa das nações desenvolvidas resolveu então organizar um programa de ação policial planetaria e «proibir» as revoluções e como este problema tinha vulto, isto a levou a esquecer os seus problemas internos, os quais, a despeito da opulencia, não tinham sido resolvidos.

Em rigor, cada nação desenvolvida tem o problema do subdesenvolvimento dentro de suas fronteiras. Sendo, porem, o programa de policia anti-revolucionaria junto aos subdesenvolvidos o problema aparentemente mais importante, os paises ricos julgaram que poderiam desprezar as suas minorias nacionais subdesenvolvidas e continuarem em sua euforica prosperidade, desde que contivessem pela aventura policial os paises pobres e insolentemente teimosos por sua transformação e nos outros amortecessem a inconformidade com certa dose de auxilios financeiros sabiamente orientados. Com esse programa, as nações ricas entraram em uma saudavel emulação de prosperidade, amorteceram-se as questões politicas, os problemas do mundo se fizeram problemas monetarios e financeiros e tudo ganhou a satisfeito e tranquilo ritmo vitoriano que é o de que o tempo tudo resolve. Os problemas internos desses paises entraram em tranquila penumbra: que importa se havia pobres e havia erros, se eram ricos e a prosperidade crescia?

Dentro dessa situação de complacencia interna e policia internacional contra a revolução (suplementada por esmolas de auxilio internacional), o mundo se fêz uma tertulia internacional de reuniões, congressos, conferencias, etc., dentro do mais incrivel intermezzo de aparente tranquilidade.

Essa tranquilidade é que a mocidade está a perturbar. Com efeito a prosperidade - aparentemente contra-revolucionaria - produziu uma explosão de aspirações. Os velhos sistemas educacionais limitados e conservadores foram tomados de assalto e o numero dos que resolveram educar-se ou prolongar sua educação multiplicou-se por dois, por três, por quatro, por dez. Nem as suas condições, nem os seus programas satisfaziam a nova população estudantil. O ar vitoriano das atmosferas nacionais era irrespiravel para toda essa população nova e sedenta de cultura e facilidades identicas às dos grupos satisfeitos e dominantes da sociedade anterior.

O mal-estar de toda essa mocidade é proverbial não lhe sendo possivel aceitar o estado de aquiescencia e absurdo em que passaram a viver as nações ricas, com um unico problema: o do mercado, o da moeda, e o dos balanços financeiros.

O inconformismo tomou, dentro da atmosfera de complacencia social, a forma dos hippies, dos beatniks, de uma universal revolta contra a moda, ou as modas, ou simplesmente, o enfado da vida moderna. Mas, isto era com os estudantes apenas enfarados. A disponibilidade de espirito em que os mergulhava um programa de estudos sem imaginação predispunha-os tambem a outra revolta, a revolta contra a ilusão de que opulencia nacional resolvera todos os problemas. E tivemos, então, a forma mais direta de inconformidade, de que nos deu agora a França a demonstração mais vigorosa.

A revolta estudantil deflagrou a revolta da força de trabalho e os tranquilos grupos dominantes acordaram do seu letargico sossego.

Mas há materia a mais para a reflexão. E com isto, voltamos ao inicio destes comentarios. É a questão da desobediencia civil.

Toda opressão humana ocorre de uma aprovação geral dessa opressão. Em outros termos, todo uso da violencia contra o homem decorre de se aprovar essa violencia. A aprovação se concretiza por um conceito de desigualdade, mediante o qual estou oprimindo alguem que não é meu igual, portanto, ou é meu inimigo, ou me é indiferente. Essa desigualdade se institucionaliza dentro de cada sociedade pelo conceito de casta, de classe, ou mesmo de simples posição hierarquica. Para vencer-se isto há, hoje, o programa dos direitos humanos, mas ele não passou ainda da fase declaratoria.

Deste modo, a opressão só poderá ser removida se os oprimidos resolverem se opor à opressão. Este comportamento é desencorajado pela repressão ou seja o uso da propria violencia, de cujos instrumentos tem o opressor o monopolio; mas, geralmente, não se chega a esse confronto, pois o consenso social é suficiente para deter a inconformidade. Quando o consenso já não é suficiente, a certas formas mais sutis de abrandar a inconformidade, ou seja, a tomada de consciencia. O metodo usual e razoavelmente bem sucedido é o da "igualdade de oportunidades". Habilmente conduzido esse processo divide a massa de oprimidos, mantendo o grupo dentro da esperança de emancipação individual. É a lei da selva da vitoria do mais capaz elevada à categoria de ideal inspirador da justiça social.

Quebrar-se esse consenso social que permite a opressão não é, assim, coisa facil. Torna-se necessario para removê-lo um grau de educação razoavel e, mais do que isto, que esta educação ensine a solidariedade humana e não a competição humana. Sabemos quanto os sistemas de educação são, fundamentalmente, sistemas fundados na competição.

Onde, então, a esperança de que o metodo da desobediencia civil possa vir a generalizar-se? A esperança como a vejo está nos países desenvolvidos e ricos. Aí, é que a quantidade de educação já oferecida pode retirar-lhe o carater competitivo de tipo malefico. E aí, é que tambem essa quantidade de educação pode ser suficiente para produzir um estado de lucidez superior. E, terceiro, aí, é que a segurança da prosperidade pode chegar a dar ao jovem a tranquilidade de ser inconformado. Porque é necessario que a inconformidade não seja um suicidio. Não se pode pedir que cada homem seja um vietnamita.

Outro motivo de esperança é o possivel exito de demonstração na França. Se a França sair de sua crise para uma revolução pacifica pode pegar.

Não esqueçamos que nos periodos historicos de opressão de uma elite sobre todo um povo, o mecanismo de defesa dessa elite era mercenario. Os exercitos nacionais, não mercenarios, nasceram com os governos nacionais não só consentidos mas destinados a assegurar a igualdade social dentro de cada nação. O exercito defendia os interesses comuns de toda nação. Esses exercitos são exercitos da juventude de cada nação. Se se tornar claro que tais exercitos longe de defender interesses comuns estão defendendo interesses de uma classe, só haverá um remedio: os exercitos se transformarem nos exercitos mercenarios da epoca da aristocracia.

Este é outro aspecto que a inconformidade de juventude revela. A luta nos Estados Unidos contra o recrutamento é, sem duvida, um sinal de que algo nesse sentido se vem desenvolvendo.

Par concluir, quero lembrar que em todas as nações a luta contra o perigo, a luta pelos interesses comuns se fez com a mocidade. Desgraçadamente, até hoje, as nações desenvolvidas obtiveram sua prosperidade pela guerra. E a guerra sempre foi feita pelos moços. Não há exercitos senão de moços. Eles é que pagaram o mais alto preço pelo famoso "interesse nacional". Se os moços perdem a sua habitual e proverbial conformidade e resolvem recusar a guerra injusta, surge para a humanidade, a maior das esperanças: a discriminação entre o bom ou o mau uso do mais cruel instrumento da politica entre os homens. Temos, pois, de saudar a rebelião moderna da juventude de como o maior e o mais promissor sinal de nosso tempo.
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