São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1978


"ESTOU ME SENTINDO UMA MISS UNIVERSO"



RIO (Sucursal) - Chico Buarque tem novo parceiro: Gabriel Garcia Marquez. A novidade, contada pelo próprio Garcia Marquez, deverá causar polêmica, pois a reação de uma repórter carioca, ao saber da notícia, não deverá ser isolada: "Como é que um escritor do terceiro mundo, que escreve livro de protesto, passa a escrever canções de amor?", perguntou ela, meio intrigada.

O escritor não gostou da pergunta, e como já não andava de muito bom humor - ele destesta ser caçado por jornalistas, como foi no Rio - não fez por menos:

"A senhora já leu meus livros? São todos canções de amor. Eu não escrevo só sobre a miséria da América Latina, mas principalmente sobre a beleza e a grandeza da América Latina. E como se pode pensar em protesto sem amor? Uma revolução não se faz por ódio, mas por amor".

A resposta, embora dita num tom meio enviesado - ele estava furioso com uma entrevista publicada num jornal carioca, porque "não diz absolutamente nada" - mostrou, pela primeira vez em uns quinze minutos, o homem Garcia Marquez. O que tinha sido mostrado antes era um homem mal-educado, mal-humorado, que só consentiu em receber os repórteres depois da interferência de sua agente literária, Carmem Balcels.

No início, uma ducha fria: quando viu que eram três, e não apenas um como ele esperava, grunhiu um "que es eso?" para sua agente, que criou logo um mal-estar. Explicado que eram os representantes de dois jornais paulistas que, coincidentemente, estavam há horas de plantão no "hall" do hotel, grunhiu uma espécie de assentimento e sentou-se. Mal abriu a boca para dizer o mais secamente possivel: "As perguntas". Constrangimento total, com todo mundo querendo estar o mais longe possivel dali. A colega de "O Estado", mais corajosa, tentou quebrar o gelo e pediu: "Sorria". Resultado catastrófico: nenhuma resposta, mão no queixo, o homem continuava firme, olhando para frente, sem encarar ninguém. Ela, conhecida como profissional competente e insistente, não desistiu: "O que tem a dizer um intelectual do Terceiro Mundo, em 1978"?

Resposta mal-criada: "Mudemos os papéis. Responda você a pergunta". Como ela insistisse veio a gozação: "Estou me sentindo Miss Universo. Quer saber minha cor favorita? É o amarelo".

Nessa altura, decidimos, por unanimidade, começar a entrevista com a mais banal das pergunta: "O que o senhor veio fazer no Brasil?". Antes de responder, mais uma malcriação: "Nada de Gravador". Desligado o gravador da repórter de "O Estado", Garcia Marquez virou-se para o meu lado, certificando-se de que eu dispunha apenas de uma inofensiva caneta e algumas laudas para anotações. Certo de que não havia nenhum gravador escondido, largou a bomba:

"Em primeiro lugar, vim porque tenho interesse em fazer canções de amor com Chico Buarque. Já fiz quatro letras para ele colocar a música. Em segundo lugar, sempre tive muita vontade conhecer o Brasil. Não vim antes porque não tinha dinheiro. Seu país e muito caro".

Entrou aí a discussão sobre a "validade" de um escritor do Terceiro Mundo escrever canções de amor, que surpreendentemente, serviu para deixá-lo mais a vontade. Começou a falar sobre a América Latina, embora tivesse dito, desde que chegou que não falaria em política.

"A miséria é a maior desgraça da América Latina, porque é produzida, importada. A grandeza da América Latina é a sua força popular. No momento, a força do imperialismo é maior, mas não o será por muito tempo. A força popular vencerá. A história já provou isso, inúmeras vezes".

"A imagem que eu tinha do Brasil era de um pais que canta e dança o que sempre me agradou. Alguns acham que um país com essas preocupações é um pais frivolo. Não concordo. A música e a dança são estupendas, fazem parte dessa força popular tão importante. Sempre achei, também, que o Brasil é um país muito criativo, baseado na sua música e no seu cinema, que conheço. A música do Brasil é forte. Não falo apenas de Chico, Tom, Vinicios, mas de todos os músicos brasileiros, que produzem uma música completamente diferente das outras".

Outro fator que levou Garcia Marquez a ter certeza da criatividade dos brasileiros são os seus amigos daqui, "todos mais loucos do que eu". Não gosta de citar nomes, repete que esse negócio de preferência é pergunta a ser feita a alguma "miss". Mas é só sorrisos, quando se refere ao cinema brasileiro, aparentemente, uma de suas paixões.

"Vi todos os filmes do cinema novo. O Brasil tem grandes diretores, cada um mostrando seu mundo, a sua moda. Nesses dias que estou no Rio, vejo um filme por dia. "Vi D. Flor", "Xica da Silva" e vou ver mais alguns. Tive contato com gente nova que faz cinema e da qual nem tinha conhecimento. Gosto disso, de conhecer novos criadores. Sabe por que? Passei vinte anos escrevendo, sem que ninguém tomasse conhecimento. Quando ganhei o primeiro dolar de direito autoral, estava com 40 anos. Quer dizer, durante vinte anos, me ignoraram. E foram anos importantes para mim, criativos. Por isso, queria ver pintores jovens, que ainda não têm nome. Mas me levaram à galeria da "Manchete". É certo que lá há ótimos artistas, mas os que me interessam, os que estão na mesma etapa em que eu estive durante vinte anos, não estão lá. E são esses que quero conhecer".

"A miséria é a maior desgraça da América Latina, porque é produzida, importada."

Garcia Marquez quer conhecer mais gente brasileira, fazer mais amigos, embora os daqui sejam muitos, e o que ele mais gosta é do fato de todos serem amigos desde antes do sucesso de "Cem Anos de Solidão". Que, aliás, não é o livro de que ele mais gosta. Gosta mesmo é de "Ninguém Escreve Ao Coronel", e tem uma paixão não escondida por "A Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada" que, num futuro próximo, vai virar filme, dirigido por Ruy Guerra.

"O livro foi escrito originariamente para o cinema e Ruy Guerra transformá-lo em filme é um projeto antigo. Acho que ele seria o diretor ideal. Não é por acaso que, cada vez que penso em transformar um livro num filme, lembro-me de diretores brasileiros. Eles têm conhecimento cultural e sensibilidade para transpor o que escrevo para a tela. O que acontece é que vivemos em mundos afins, eu e eles. O Glauber uma vez me disse que não queria os direitos dos meus livros, mas que se reservava o direito de roubar idéias de todos eles. Ontem, Cacá Diegues me disse que se a minha agente assistir seu próximo filme, vai querer cobrar direitos autorais. Mas é o que eu disse, nossos mundos são parecidos. Por isso, não me importo que roubem idéias de meus livros, já que roubei tudo que podia dos filmes brasileiros que assisti".

A gargalhada agora é franca, aberta. Comenta-se isso e ele explica que não é estrela nem gosta de fugir da imprensa, mas, confessa cansado de tanto dar entrevistas: "Todo mundo quer sempre uma exclusiva. Não são como vocês, que gostam de uma conversa com mais gente". E diz mais: no inicio, ficou irritado porque achou que a outra repórter estava fazendo perguntas a uma outra pessoa e não a Gabriel Marquez. E exemplifica: "Quem me conhece, sabe que escrevo canções de amor nos meus livros".

Mas, a zanga acabou. E tanto que não deixa que a mulher Mercedes, interrompa a entrevista por causa de um jantar com amigos: "Agora, quero que vocês fiquem para entrevistá-la". E começa por perguntar porque não há crianças nas ruas do Rio, o que lhe causou estranheza. "Será por causa desse trânsito louco?" Explica-se que, além do trânsito, há o problema de não haver muitas áreas de lazer na cidade. Daí que os pais saem para trabalhar e as crianças geralmente ficam em casa, vendo televisão. "E as escolas?" Surpreende-se quando sabe que as crianças ficam apenas quatro horas na escola: "Muito pouco, muito pouco". Mas acredita que esse é um problema restrito a cidade como Rio e São Paulo.

"Quantos milhões de crianças há no Brasil e quantas ficam trancadas? Não sabem? Deveriam saber".

Depois de passar o "pito", interessa-se pela televisão brasileira, "já que, pelo que vocês me dizem, as crianças da cidade grande são impelidas a vê-la". Informamos que, tecnicamente, dizem que é a melhor da América Latina, mas que o conteúdo é, em sua maioria , alienante.

"É alienante? Então, é a pior da América Latina. Mas, felizmente, não creio que toda uma geração possa ser corrompida por uma TV alienante. Na minha opinião, a América Latina já entrou em processo de descolonização. A literatura e o cinema brasileiro são exemplos disso. A TV pode chegar lá. Vários amigos meus, intelectuais, são contra a televisão, mas eu sou contra o mau uso da TV. Não se pode confundir o meio com o conteúdo. A televisão é o melhor meio de comunicação, mas temos que conquistá-la. E, para conquistá-la, temos que apreciá-la".

Na tentativa de conquistar o meio de comunicação, Garcia Marquez adaptou uma de suas novelas "A Mala Hora", para a TV colombiana. Deu uma audiência de seis milhões de espectadores e foi um escândalo, que o governo não pode proibir porque era época de plebiscito, de "abertura".

"Foi uma experiência boa. Pode-se fazer boas coisas na televisão, mas, como já disse, temos que conquistá-la. O poder econômico não nos vai dá-la de presente. Mas, de todas maneiras, e em qualquer circunstância, creio que a fórmula estatal é melhor do que a iniciativa privada, mesmo num país capitalista. Sei que é difícil dividir o poder econômico do poder político, mas se estamos constrangidos a escolher entre as duas, a TV estatal oferece mais possibilidades. É claro que falo, partindo da base de que o capitalismo não vai prevalecer, senão, estaria dizendo disparates".

É isso mesmo: Gabriel Garcia Marquez é um otimista, confesso. Para ele, o otimismo é uma força. "E as forças do bem prevalecerão sempre". E quanto ao Brasil? "Estou conversando com gente bem informada, de todas as tendências. E tenho esperanças de que os mais otimistas tenham razão". O que os mais otimistas lhe disseram? "Vocês sabem".

Garcia Marquez ainda não sabe se vai escrever sobre o Brasil, como fez sobre a Nicarágua. Até agora, já foi a Manaus, veio ao Rio e irá na próxima semana, para a Bahia. Mas não sabe nunca se vai ou não escrever sobre determinado assunto, "até que acenda uma luz na minha cabeça". Mas, de qualquer maneira, está muito contente de estar aqui. Encontrou-se um pouco no pais, o que já esperava, depois da experiência que teve em Angola, há um ano e meio. Uma experiência que foi um marco na sua vida.

"Quantos milhões de crianças há no país e quantas ficam vendo TV? Deveriam saber."

"Quando fui a Angola, as pessoas me perguntavam sempre se, nos meus livros, eu me referia à África. Na verdade, em nenhum dos meus livros digo que a história se passa na América Latina. As pessoas é que se reconhecem e os situam na América Latina. Mas já houve o caso de uma senhora alemã, que me escreveu dizendo que "Cem Anos de Solidão" era a história de sua família.

"Bem, mas quando cheguei a Angola, aquilo começou a me intrigar. Todo mundo achava que eu escrevia sobre a África. No começo, não entendi, mas com o passar dos dias, fui me identificando com a terra, com o povo. E foi um choque para mim porque, nos países de língua espanhola, somos criados com o preconceito de que nossas raízes são exclusivamente espanholas. Pois, em Angola, tomei conhecimento de que essa era uma idéia falsa, incompleta. Tinham escamoteado, durante minha vida toda, o elemento negro na minha formação. Mas, inconscientemente, eu sabia desse elemento, tanto que está nos meus livros. Mas, conscientemente, desconhecia. Por isso, essa viagem me marcou muito. Tanto que, depois dela, voltei a ter pesadelos que não tinha, desde a minha infância. Creio que isso é bastante significativo".

Em momentos como esse, todo a sensibilidade de Gabriel Garcia Marquez vem à tona. É evidente sua emoção ao falar no assunto. Como também é evidente o sentimento, quando fala na reportagem que mais gostou de escrever, quando repórter, e que não obteve muito sucesso.

"Chamava-se "O Cemitério das Cartas Perdidas". Descobri-a quando ia passando de ônibus, por uma rua de Bogotá. Viu uma casa velha, com uma placa; "Refugios do Correio". Desci, fui até lá e descobri que ali guardavam as cartas extraviadas. Eram quartos e quartos de cartas que não chegaram nunca. Quem cuidava da casa era um senhor, bem velho. Deixou que eu mexesse por ali, durante meses. Me lembro de uma carta que me emocionou particularmente. Era simplesmente dirigida "á senhora que vai à missa das cinco, todos os dias, na paróquia de Nossa Senhora das Aguas". A carta vinha de uma colônia de leprosos. Levei meses indo à igreja até descobrir a senhora e conseguimos que ela recebesse oficialmente a carta. Foi uma bela reportagem, mas ninguém falou nela. Geralmente, nunca dão valor às melhores coisas que faço. Meu melhor livro é "Ninguém Escreve ao Coronel" e endeusam "Cem Anos de Solidão".

Na despedida, repete seu prazer em estar no Brasil, país em que seus livros mais vendem, depois dos países de língua espanhola. Beijos, abraços e palavras carinhosas.

"Passamos a nos querer muito. Então, estamos no caminho da felicidade. Porque, sem amor, não se faz nada".

Isa Cambará

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