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EDGAR ALLAN POE, escritor e poeta, nasceu em Boston, Mass.,
Estados Unidos, a 19 de janeiro de 1809. Seus pais trabalhavam
em teatros ambulantes e faleceram deixando Edgar com apenas dois
anos de idade. Foi, então, morar com John Allan, que o
levou para a Inglaterra, onde fez estudos, nas cercanias de Londres.
Cinco anos mais tarde, regressou aos Estados Unidos, prosseguindo
os estudos. Em 1826, ingressou na Universidade de Virginia, cujo
curso, todavia, não completou. Havendo querelado com seu
pai adotivo, rumou para Boston, onde publicou, em 1827, "Tamerlane",
seu primeiro livro. Ingressou por aquela epoca, na carreira militar.
Mudou-se para Baltimore e matriculou-se na Academia Militar de
West Point, dali se retirando no ano imediato. Colaborou em diversas
revistas americanas, principalmente em "Southern Literary
Messenger". Casou-se em 1836, transferindo-se para nova York,
onde residiu durante dois anos, quando se retirou para Filadelfia,
retornou a Nova York e foi para Fordham. Em 1847, perdeu a esposa,
vitimada por tuberculose aos 24 anos de idade. Suas novelas, seus
contos e suas poesias tinham consideravel influencia em toda a
literatura da epoca e foram vertidas para numerosos idiomas. Poe
faleceu pobre e abandonado no dia 7 de outubro de 1849 em Baltimore.
O conto que hoje apresentamos a nossos leitores é de sua
autoria.
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É verdade. Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente
nervoso. Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me
aguçou os sentidos, não os destruiu, não
os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição.
Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas
do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção.
E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso
contar toda a historia.
É impossivel dizer como a idéia me penetrou primeiro
no cerebro; uma vez concebida, porem, ela me perseguiu dia e noite.
Não havia motivo. Não havia colera. Eu gostava do
velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não
desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele. Sim, era isso. Um
de seus olhos se parecia com o de um abutre.... um olho de cor azul
palida, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava, sempre
que ele caía sobre mim; e assim, a pouco e pouco, bem lentamente,
fui-me decidindo a tirar a vida do velho e desse modo libertar-me
daquele olho para sempre.
Ora, aí é que está o problema. Imaginais que
sou louco. Os loucos nada sabem. Deverieis, porem, ter-me visto.
Deverieis ter visto como precedi cautamente, com que prudencia,
com que previsão, com que dissimulação, lancei
mãos à obra.
Eu nunca fora mais bondoso para com o velho que durante a semana
inteira, antes de matá-lo. E todas as noites, por volta da
meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria...
oh! bem devagarinho. E depois, quando a abertura era suficiente
para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com
tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse
para fora, e, em seguida, enfiava a cabeça. Oh! terieis rido
ao ver como a enfiava habilmente. Movia-a lentamente, muito, muito
lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava
uma hora para colocar a cabeça inteira alem da abertura,
até poder vê-lo deitado na cama. Ah! um louco seria
precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem
dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente...
oh! bem cautelosamente!... cautelosamente... porque a dobradiça
rangia... abria-a só até permitir que apenas um debil
raio de luz caisse sobre o olho de abutre. E isto eu fiz durante
sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite...
e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossivel fazer a
minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas
o seu olho diabolico. E todas as manhãs, quando o dia raiava,
eu penetrava atrevidamente no quarto e falava-lhe sem temor, chamando-o
pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite.
Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz,
para suspeitar que todas noites, justamente à meia-noite,
eu o espreitava, enquanto dormia.
Na oitava noite, fui mais cauteloso que de habito, ao abrir a porta.
O ponteiro dos minutos de um relogio mover-se-ia mais rapidamente
que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a
extensão de meus proprios poderes, de minha sagacidade. Mal
conseguuia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava
eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava
com os meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre
os dentes, a essa idéia... e talvez ele me tivesse ouvido,
porque se moveu de subito na cama, como se assustado. Pensai talvez
que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche,
espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechados,
por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não
podia ver a abertura da porta. Continuei a avançar. Cada
vez mais. Cada vez mais.
Já estava com a cabeça dentro do quarto a ponto de
abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho de lata
e o velho saltou da cama, gritando: "Quem está ai?"
Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira,
não movi um musculo. E, por todo esse tempo, não o
ouvi deitar-se de novo. Ele ainda estava sentado na cama à
escuta. Justamente como eu fizera, noite após noite, ouvindo
a ronda da morte próxima.
Depois, ouvi um leve gemido e notei que era o gemido do terror mortal.
Não era um gemido de dor ou de pesar, oh, não. Era
o som grave e sufocado que se ergue do fundo da alma, quando sobrecarregada
de medo. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite,
quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia do meu proprio peito,
aguçando com seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam.
Disse que bem o conhecia. Conheci tambem o que o velho sentia e
tive pena dele, embora abafasse um riso no coração.
Eu sabia que ele ficara acordado desde o primeiro leve rumor, quando
se voltara para a cama. Daí por diante, seus temores foram
crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo, mas não
fora possivel. Dissera a si mesmo: "é só o vento
na chaminé", ou "é só um rato andando
pelo chão", ouvi apenas um grito que trilou um instante
só. Sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições,
mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a morte,
ao aproximar-se dele, projetara sua sombra negra para a frente,
envolvendo nela a vitima. E era a influencia tetrica dessa sombra
não percebida que o levava a sentir - embora não visse
nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça,
dentro do quarto.
Depois de esperar longo tempo, com muita paciencia, sem ouvi-lo
deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco a tampa da
lanterna. Abri-a, podeis imaginar quão furtivamente, até
que, por fim, um raio de luz apenas, tenue como o fio de uma teia
de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.
Ele estava aberto. Todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo,
minha furia cresceu-o. Vi-o com perfeita clareza. Todo de azul desbotado,
com uma horrivel pelicula a cobri-lo, o que me enregelava até
a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face,
ou do corpo do velho, pois dirigira a luz, como por instinto, sobre
o maldito lugar.
Ora, não vos disse que apenas é super-acuidade dos
sentidos, aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois,
que chegou a meus ouvidos, um som baixo, monotono, rapido como o
de um relogio, quando abafado em algodão. Igualmente eu bem
sabia que som era aquele. Era o bater do coração do
velho. Ele me aumentava a furia, como o bater de um tambor estimula
a coragem do soldado.
Ainda aí, porem, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter
tão fixamente quanto pude a restea de luz sobre o olho do
velho. Entretanto, o infernal tan-tan do coração aumentava.
A cada instante ficava mais alto, mais rapido, mais alto, mais rapido.
O terror do velho deve ter sido extremo. Cada vez mais alto, repito,
a cada momento. Prestai-me bem atenção? Disse-vos
que sou nervoso: sou-o. E então, àquela hora morta
da noite, tão estranho ruido excitou em mim um terror incontrolavel.
Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas
o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração
ia rebentar. E, depois, nova angustia me aferrou: o rumor poderia
ser ouvido por um vizinho. A hora do velho tinha chegado. Com um
alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto.
Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante, arrastei-o
para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri
alegremente, por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos
minutos, o coração continuou a bater, com som cavo
e surdo. Isto, porem, não me vexava. Não seria ouvido
através da parede. Afinal, cessou. O velho estava morto.
Removi a cama e examinei o cadaver. Sim, era uma pedra, uma pedra
morta. Coloquei minha mão sobre o coração e
ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação.
Estava petrificado. Seu olho não mais me perturbaria.
Se ainda pensais que sou louco, não mais o pensareis, quando
eu descrever as sabias precauções que tomei, para
ocultar o cadaver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente,
porem, em silencio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe
a cabeça, os braços e as pernas.
Arranquei depois três pranchas do soalho do quarto e coloquei
tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tabuas, com tamanha
habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem
mesmo o DELE, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia
a lavar, nem mancha de especie alguma, nem marca de sangue. Fora
demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido
tudo... ah! ah! ah!
Terminadas todas estas tarefas, eram já quatro horas. Mas
ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou
a hora, bateram à porta da rua. Desci a abri-la, de coração
ligeiro... pois que tinha eu AGORA a temer? Entraram três
homens, que se apresentaram, com perfeita mansidão, como
soldados da policia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante
a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado
uma denuncia à policia e eles, soldados, tinham sido mandados
para investigar.
Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros.
O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei,
estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda
a casa. Pedi-lhes que dessem uma busca... COMPLETA. Conduzi-os,
afinal, ao quarto DELE. Mostrei-lhes suas riquezas, em segurança,
intactas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras
para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ALI, para descansar
de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audacia de meu
perfeito triunfo, colocava minha propria cadeira, precisamente sobre
o lugar onde repousava o cadaver da vitima.
Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido.
Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto
eu respondia cordialmente, conversaram coisas familiares. Mas, dentro
em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem.
Minha cabeça doia e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos.
Eles, porem, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido
tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto.
Eu falava com mais desenfreio, para dominar a situação.
Ela, porem, continuava e aumentava sua perceptibilidade, até
que, afinal, descobri que o barulho não era dentro de meus
ouvidos.
É claro que, então, a minha palidez aumentou sobremaneira.
Mas eu falava ainda mais fluentemente e em tom de voz muito elevado.
Não obstante, o som se avolumava... E que podia eu fazer?
Era um SOM GRAVE, MONOTONO, RAPIDO... MUITO SEMELHANTE AO DE UM
RELOGIO ENVOLTO EM ALGODÃO. Respirava com dificuldade...
E, no entanto, os soldados não o ouviam. Falei mais depressa
ainda, com mais veemencia. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me
e fiz perguntas a respeito de ninharias, em tom bastante elevado
e com violenta gesticulação, mas o som constantemente
aumentava. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei. enraiveci-me...
Praguejei. Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e
arrastei-a sobre as tabuas, mas o barulho se elevava acima de tudo
e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto... mais alto... mais
alto. E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos, e sorriam.
Seria possivel que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!...
não, não! Eles suspeitavam!... Eles SABIAM!... Estavam
zombando do meu horror!...
Isto pensava eu e ainda penso.
Outra coisa qualquer porem, era melhor que essa agonia. Qualquer
coisa era mais toleravel que essa irrisão. Sentia que devia
gritar ou morrer!... E agora... de novo!... escutai... mais alto!
MAIS ALTO! MAIS ALTO! MAIS ALTO!...
- Vilões - trovejei - não finjam mais. Confesso o
crime. Arranquem as pranchas!... aqui, aqui!... ouçam o batido
do seu horrendo coração. |
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