São Paulo, sábado, 11 de março de 1978
Neste texto foi mantida a grafia original

WITTGENSTEIN E A VONTADE

Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena em 1889 e morreu em Cambridge em 1951. Fez estudos superiores em Berlim e em Londres, onde, por influência de Bertand Russel, foi levado ao estudo da Lógica. Seu primeiro livro, "Tractatus Logico Philophicus", foi escrito em cadernos de campanha, durante a Primeira Guerra Mundial, e apareceu em 1920. Sua obra é particularmente importante pela teoria da analise linguística posta a serviço do pensamento filosófico. Wittgenstein é um filósofo que interroga e propõe enigmas, e seus livros "Caderno Azul" e "Caderno Marrom", são, indiscutivelmente, um dos mais belos ecos da filosofia de Sócrates, especialmente no "Crátilo" e no "Teéteto" de Platão. É do "Caderno Marrom" o texto que hoje publicamos.

Quando um homem se levanta de manhã, as coisas se passam da seguinte maneira: ele se pergunta a si mesmo se é realmente hora de levantar-se, se esforça para tomar uma decisão, e de repente percebe que está se levantando. Este modo de descrição torna clara a ausência de um ato de vontade. Mas, antes de tudo, onde é que podemos encontrar o protótipo deste ato de representação? Ou então, como é que se chegou à conclusão de que as coisas acontecem assim?

Creio que a experiência do esforço muscular constitui o protótipo do ato de vontade. Ora, alguns elementos dessa descrição me incitariam a pensar que não há nada disso. Observe-se bem que uma pessoa não conseguiria perceber que a gente se levanta do mesmo modo que se percebe outra pessoa levantar-se. Não se observa, no primeiro caso, uma série de movimentos sobre os quais não podemos exercer qualquer controle. Não se observa um ato reflexo.

Tomemos um exemplo: eu me coloco, de lado, encostado numa parede, tocando a parede com as costas da mão do braço caído e, deixando esse braço pendente, pela ação do músculo deltóide, empurro fortemente a parede com as costas da mão: se, nesse momento, eu me afastar de repente da parede, sem me preocupar com meu braço, verei, sem minha intervenção, meu braço levantar-se como num movimento próprio.

Só num caso semelhante se poderá dizer com justa razão: _ "Percebo que meu braço está se levantando". É claro, contudo, que as diferenças são marcantes e múltiplas. O caso é que, entregando-me a essa experiência, observo meu braço levantar-se, e o caso em que olho alguém que se levanta, ou o caso em que vejo a mim quando me levanto, especialmente neste último caso, não pode haver elemento de surpresa, e eu, por outro lado, não observo meus próprios movimentos da mesma forma que observava os de uma pessoa que vejo virar-se de um lado para outro em sua cama, dizendo comigo mesmo: _ "Será que ele vai se levantar?" A ação voluntária que eu completo ao levantar-me é muito diferente desse movimento de meu braço que se eleva involuntariamente, mas não se descobre entre esses atos, pretensamente voluntários ou involuntários, uma diferença singular e única, a presença ou a ausência do ato de vontade.

A descrição deste ato de levantar-se, no qual uma pessoa se dá conta de que está se levantando, pareceria indicar que a pessoa se observa a si mesma no momento em que está se levantando. É evidente, porém, que a observação real está ausente. Contudo, não se poderia afirmar que uma atitude de observação supõe obrigatoriamente uma tensão de espírito contínua durante todo o tempo em que dizemos que estamos observando.

Diversas séries de comportamentos e de experiências podem ser qualificadas como uma atitude de observação. Poder-se-ia falar, numa simplificação generalizada, de curiosidade preliminar, de observação atenta do acontecimento, de surpresa; e se pensarmos em toda a variedade de expressões do rosto correspondentes a esses três termos e ao fato de que a observação pode ainda não ser sublinhada por nenhuma expressão particular, a multiplicidade dos fenômenos correspondentes nos parecerá evidente.

Eu declaro: _ "Quando disse, sem querer mentir: "o trem parte às 15h30", não aconteceu nada a não ser a emissão dessas palavras". Poderão objetar _ "Aconteceu outra coisa, pois você pronunciou uma frase sem pensar no que estava dizendo". Posso responder: _ "Eu não quis dizer que não existia diferença entre a palavra significante e a palavra automática ou mentirosa; mas a oposição entre acreditar e não acreditar no que uma pessoa diz refere-se a uma infinidade de casos diferentes, as diferenças acusadas pela diversidade das circunstâncias, não se aplica a uma diferença unica, que consistira na presença ou ausência de um certo estado de espírito."

Examinemos alguns casos característicos de ação voluntária e involuntária. No caso em que uma pessoa levanta uma carga pesada, o fato de a carga ser levantada voluntariamente se caracteriza por diversas sensações de esforço físico. Compare-se isso com o caso da escritura voluntária, na qual, geralmente, não se tem essa impressão de esforço; mesmo se se nota uma certa crispação dos músculos e se a mão não se fatiga, não se tem a impressão de um movimento penoso, característico, pode-se dizer, da ação voluntária... Compare-se, por outro lado, a maneira pela qual a mão se eleva quando uma pessoa sustenta um peso, e a maneira pela qual essa mão se levanta quando, por exemplo, se mostra alguma coisa situada acima dos olhos. Este gesto será considerado como um ato voluntário, embora não seja acompanhado de nenhuma sensação de esforço.
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