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BELMONTE
A atas da Câmara de S. Paulo, desde os primeiro anos de
sua existência, constituem curioso repositório de
extravagâncias linguísticas, capazes, na sua confusão,
de alvoroçar o mais indiferente filólogo - se é
que existem, na face da terra, filólogos indiferentes.
Para isso contribuem, não só as diferenciações
prosódicas assinaladas através dos séculos,
mas tambem a ignorância dos pitorescos escrivães
dos legislativos municipais de outrora, o que, tudo junto, transformou
êsses preciosos documentos em verdadeiros "quebra-cabeças"
quase indecifráveis.
Mas, se a escrita dêsses preciosos e confusos funcionários
pode interessar a filólogos e gramáticos, não
interessará menos aos humoristas - que, com jeito e paciência,
palmilharem os caminhos tortuosos dêsses "termos de
vereação". E, em verdade, o caso começa
exatamente por aqui, por esta frase simples e facil, que os senhores
escrivães tornam áspera e difícil, pois,
enquanto uns escrevem "termo de verasão" ou "verasam",
outros preferem "termo de vreação" de
"breação" e até mesmo de "vriança".
Percebe-se aquí e justifica-se, a influência da pronúncia
lusitana nessa ortografia mais ou menos fonética. O que
não se percebe bem - pelo menos não a percebo eu
que não sou filólogo - é o motivo que levava
os complicados escrivães seiscentistas a usar o "l"
dobrado, com uma insistência que não estava longe
de parecer uma regra: Manoell, quall, especiall, particullar,
decllarar, eleisão, jullho... Indo mesmo, ao ponto de dobrar
ll iniciais: llhe, llogo, llivro, llugar...
Mas o que mais desesperadamente atrapalha os leitores das atas
quinhentistas e seiscentistas, transformando-os em verdadeiros
decifradores de charadas, são as palavras que os senhores
escrivães, por motivos que só êles sabiam,
grafavam abreviadamente. Neste caso os extraordinários
escreventes não faziam a menor cerimônia para darem
cumprimentos escorreito à deliciosa lei do mínimo
esforço. Assim, tabelião se transformava e em tabelliam
e acabava em tam. Capitão virava capitam e terminava em
capam. "Sómente" era smte. Caminho se escrevia
camº. A "Companhia de Jesus" era simplesmente compª.
"Botas" não era mais que btas. "Vizinho"
era vzo, assim como "direito" não passava de
drtº e "porteiro" ia acabar em prtº. "Quinhentos",
ficava reduzido a qtos, e "cristãos" nada mais
era, pura e simplesmente xpãos - isso sem falarmos nos
nomes próprios, muitos dos quais eram impiedosamente espremidos
e reduzidos ao mínimo, começando por Deus, que era,
pura e simplesmente ds.
Mas, se por outro lado, os excelentes escrivães procuravam,
nas abreviaturas facilitar a tremenda tarefa de escrever, por
outro lado, em outras palavras, acumulavam letras sobre letras
e tornavam a sua tarefa, assim, cada vez mais dificil. Neste sentido,
as atas da Câmara de Santo André, nos fins do quinhentismo,
são o que há de mais perfeito em complicação,
começando na caligrafia - que parece escritura cuneiforme
- e acabando na ortografia, onde a letra "i" raramente
aparece, apavorada com o domínio tirânico do "y".
Vejamos uma ata ao acaso, a de 21 de Agosto de 1557.
"Aos vynte e hu do mês dagosto da dyta era em esta
vylla de sãoto ãodré da borda do cãopo
em ho paço do cõselho se ajutarão os ofysiais
pª fazerem camara e couzas que cõpre a bem do povo
a requereu o percurador aos dytus cõselho e llogo na dyta
camara requereu o percurador aos dytos ofyciais pr quãoto
se hyão todos a suas rocas e fycava esta vylla sem jemte"...
Êsse fabuloso escriturário de Santo André,
que se chamava Diogo Fernandes e se assinava "Djº frz",
tinha um modo tão complicado de escrevinhar que, para êle,
o "público judicial" era isto: "pruvyquo
judysiall". Não se espante o leitor vendo a sílaba
"co" substituida por "quo". Era uma forma
corrente de escrever, não só nesse século
como tambem no século seguinte. Os verbos, terminados em
"car" eram constantemente escritos com a terminação
em "quar" - notifiquar, pratiquar, espliquar - o que
tambem acontecia com os terminados em "gar": obriguar,
paguar, esfreguar. Mas isso não era só com os verbos,
porque é constante o encontro de outras palavras, com a
mesma grafia atrapalhada: "guado" por gado, "sinquo"
por cinco, "nunqua" por nunca... mas a palavra "quanto"
e suas derivadas, que deviam ser escritas da mesma forma, essas
não o são, porque as encontramos vezes sem conta
assim: coanto, encoanto, porcoanto... Regra gramatical do tempo
ou espírito de contradição?
A pergunta não é ociosa porque nós sabemos
que, com o correr dos tempos, até os vocábulos ficam
diferentes, se não na ortografia, pelo menos no significado.
Não falemos na ortografia - pobre vítima que tem
sofrido as maiores desfigurações ante os acessos
de reformomania dos homens incumbidos de zelar por ela - e vejamos
o caso da palavra "indecente" que, como ninguém
ignora, é sinónimo de obsceno e de indecoroso. É
hoje, porque antigamente não era assim, sendo mesmo de
supor que seu uso tivesse uma amplitude que atualmente está
longe de possuir. Vejamos três casos que o comprovam - três
casos entre muitos outros.
Em 1817, devendo sair à rua, como de costume, a procissão
de S. Jorge, na qual a imagem do santo vinha no cortejo escarranchada
sobre um cavalo, tratavam os senhores vereadores das providências
necessárias ao êxito da cerimônia religiosa.
Como a religião ainda fazia parte integrante do Estado,
os legisladores municipais eram grandes entendedores das coisas
da liturgia católica e de assuntos adjacentes. Tanto assim
que, dessa feita, não estando os arreios do rocim em boas
e reverentes condições, pediu ao procurador da Câmara
aos seus pares: "...que se faça uma nova clineira
e rabicheira com asseio para o cavalo da montaria de S. Jorge
visto o que se acha é muito velho e indecente".
Outra vez foi o caso de uma capelinha. O senhor procurador, com
o devido respeito e a maior unção, solicitou providências
imediatas: "que se mande caiar e rebocar a capelinha desta
cadeia, por se achar indecente".
E um outro zeloso edil, em outubro de 1821, também resolveu
dar mostra do seu desejo de estar sempre atento aos interesses
públicos. E, placidamente, solicitou: "...que se mandasse
incarnar a imagem do Senhor Crucificado e imagem, de S. Vicente
Ferreira (que santo será este?) do oratório da cadeia,
bem assim como mandasse pintar os castiçais de pau e mandar
fazer palmas de flores e estantes do missal visto que tudo se
acha indecente".
Não se pense que este vereador fosse um herege, capaz de
fazer irreverências desse náipe. Não. O terrivel
adjetivo é que era, naqueles bons tempos, menos terrivel
do que hoje, pois somente neste século XX é que
a palavra "indecência" deixou de primar pela decência.
Por que?
Sei lá! Isso já é assunto para os filólogos
e eu, prudentemente, prefiro não ir além dos sapatos...
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