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texto foi mantida a grafia original
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IDÉAS
E FACTOS
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A
NEGRADA
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Mario
de Andrade revela mais uma vez os seus magnificos dotes de "conteur",
de analysta subtil, nesta pagina do romance: "Café".
As sociedades de negros sempre deram entre nós o exemplo
do desperdicio moral e do chinfrim. Uma das mais curiosas foi a
mantida muitos mezes em uma rua escusa da Barra Funda. Fazia de
presidente perpetuo um mulato da maior mulataria, bahiano emigrado,
com mais carnes gordura que os quarenta annos da mulher argentina.
Os "cavalheiros" que o ajudavam eram uma sucia espertalhões
criminosos. A sociedade parecia um baile, mas se mantinha á
custa do roubo. Ao contrario de todas as congeneres, as damas é
que pagavam tendo por compensação o direito de escolher
o cavalheiro para dansa e para depois das dansas. Não havia
mensalidade estipulada, nem acceitavam socia que não fosse
criada. Nos dias de baile, ellas estravam, e iam sentando. Procedia-se
então á collecta. O presidente acompanhado pelo segundo
thesoureiro (os primeiros apenas escripturavam de uma maneira policiavel
os movimentos sociaes), na frente de uma mesinha coberta com um
panno de chá muito fino, tocava num gongo de prata. A zoada
parava e o orador official saudava o bello sexo. Depois é
que pricipiava o que elles chamavam a "dispensa" para
dansar. As damas vinham, uma por uma, e deixavam sobre as rendas
da toalha, anneis, estatuetas, colheres de prata, gravatas, combinações,
guarda-chuvas, broches, tudo. O dispenseiro vinha, arrebanhava os
objectos, para em seguida o presidente encerrar a dispensa com um
discurso de congratulações em que salientava o procedimento
da "senhorinha" Rosalia, que trouxera um annel cabochão,
a senhorinha Eloisa que se "dispensava" sempre com facas
e garfos de prata, assim sim! "mdemoiselles" que haviam
de "se illustrar pela dedicação a nossa sociedade
e haviam de elevar apesar de tantos precalços da nossa vida
contemporanea. Tenho dito".
Aliás, estava dando uma manifestação notável
entre a gente de raça negra no Estado, e especialmente na
capital: uma especie de sequestração meia inconsciente
das outras raças. Iam rareando cada vez mais as uniões
legaes entre pretos e individuos de qualquer côr. Apesar da
vastissima proporção de letões, arabes, esthonianos,
allemães, russos, polacos, sempre o italiano inda predominava
aqui. Ora, o italiano, jámais demonstrára, mesmo vindo
viver em terra americana, o mesmo alvoroço amoroso que portuguezes
e francezes diante do corpo negro. Uma simples questão de
tendência physiologica, parece pois que apesar de raros os
casamentos entre pretas e italianos (o contrario inda era mais raro),
não se criara nenhum preconceito de côr, capaz de preparar
uma futura questão negra. Porém a sequestração
vaga, obscura não determinada mas real, occassionara nos
individuos de côr um por assim dizer isolamento sexual, que
os fez de novo se voltarem para si mesmos e se reunirem em tribus,
sociedades, companheirices que, embora sem a mais minima intenção
de classe, de raça ou reivindicação social,
se compunham exclusivamente de pretos. Um ou outro branco raro que
se aventurava nessas rodas, a não ser que tivesse mesmo uma
constancia prodigiosa de audacia, não conseguia sustentar-se
nellas, principalmente porque a negrada brasilica, bem acceita em
qualquer meio e não sofrendo de nenhuma humilhação
de côr não alimentava o desejo de clarear a pigmentação.
Elles mesmos blagueavam sobre a côr que tinham, desinteressados,
sem amargura nenhuma se chamando de "jaboticabas". O branco
não tinha nesses clans negros nenhum prestigio especial.
Antes se via espesinhado como individualidade porque a belleza e
elasticidade physica dos parceiros negros, a natural loquacidade
viva destes, deixavam o branco aventurado nessas rodas, numa subalternidade
enorme de humilhação. |
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Trecho
do livro "Café", de Mário de Andrade, publicado
na Folha da Noite |
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Data
de publicação |
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22.jan.1934
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