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Meus
senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre
para o nosso país, acudistes ao meu chamado. Sei que um interesse
superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também -
e fora ingratidão ignorá-lo - que um pouco de simpatia
pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica.
Oxalá possa eu corresponder a ambas. (...)
Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado o Aristóteles,
se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às
aranhas? (...)
Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores,
cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente
porque não a conheceis. (...) A aranha, senhores, não
nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia,
tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de
ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos
seus talentos, não há duas opiniões. Desde
Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro
formam um só coro de admiração em torno desse
bichinho cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso
criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora
esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém,
excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. (...)
Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe
do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados,
e organizei-os socialmente. (...)
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês
seguinte cincoenta e cinco; em Março de 1877 contava quatrocentas
e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa
de as congregar; - o emprego da língua delas, desde que pude
discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi.
A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma fizeram-lhes
crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me.
E vede o benefício dessa ilusão. Como as acompanhasse
com muita atenção e miudeza, lançando em um
livro as observações que fazia, cuidaram que o livro
era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se ainda mais na
prática das virtudes. A flauta também foi um grade
auxiliar, como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por
música.
Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo
idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me
bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem.
Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações
que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma
forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei
o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república,
à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo
epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições
gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem
de um mecanismo complicado - o que era meter à prova as aptidões
políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos
eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação
dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as
bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente
um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para
as carreiras públicas. Esse sistema fará rir aos doutores
do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da
paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção
e da cobiça. Mas não foi só por isso que o
aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação
de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação,
quase uma planta indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhe
um título magnífico, roçagante, expansivo,
próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição,
nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não
são os solários de Campanella ou os utopistas de Morus;
formam um povo recente que não pode trepar de um salto ao
cume das nações seculares. Nem o tempo é operário
que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais
e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas
na prática. O que posso afirmar-vos é que, não
obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas
virtudes, que presumo essenciais à duração
de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança,
uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava
a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior
atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional.
Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura,
tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para
compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam
o título de mães da república, além
de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo.
O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes
dos candidatos, que provarem certas condições, e são
escritas por um oficial público, denominado "das inscrições".
No dia da eleição, as bolas são metidas no
saco e tiradas pelo oficial das extrações, até
perfazer o número dos elegendos. Isso que era um simples
processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos
os cargos.
E eleição fez-se a princípio com muita regularidade;
mas logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada,
por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato.
A assembléia verificou a exatidão da denúncia,
e decretou que o saco, até ali de três polegadas de
largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco,
restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la.
Aconteceu, porém, que na eleição seguinte,
um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não
se sabe se por descuido ou intenção do oficial público.
Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre
candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível
que ele lhe tivesse dado o nome; nesse caso não houve exclusão,
mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno
psicológico inelutável, como é a distração,
não pôde castigar o oficial; mas, considerando que
a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões, revogou
a lei anterior e restaurou as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e
três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto,
mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios
chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo.
Devo explicar-vos essas denominações. Como eles são
principalmente geômetras, é a geometria que os divide
em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias
com fios retos, é o partido retilíneo; - outros pensam,
ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios
curvos -, é o partido curvilíneo. Há ainda
um terceiro partido, misto e central, com esse postulado: as teias
devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido
reto-curvilíneo; e finalmente uma quarta divisão política,
o partido anti-reto-curvilíneo que fez tábua rasa
de todos os princípios litigantes, e propõe o uso
de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não
há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas
poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma
simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos,
a justiça, a probidade, a inteireza, a constância,
etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação,
a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente
curvos. Os adversários respondem que não, que a linha
curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão
da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância,
a presunção, a toleima, a parlapatice, são
retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos
exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros,
combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas
como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto
limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram
do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro
por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar
a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário
ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona
ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos não
se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram
uma devassa. A devassa mostrou que o oficial da inscrições
intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou
o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que
se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário.
Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos
de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever
a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de
um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem
ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos,
que assim teriam tempo de corrigir as inscrições.
Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna
malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à
astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial
das extrações, para haver um lugar na assembléia.
A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas
com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar
negativamente a cabeça quando a bola pegada foi a sua. Não
era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A assembléia,
com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime
anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação
das bolas cuja inscrição estivesse incorreta uma vez
que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio
nome do candidato.
Esse novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides
ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário
encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de
espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros,
um certo Caneca e um certo Nebraska. Estava errada, é certo,
por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram,
nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único
Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato
Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia
o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário.
Veio então um grande filólogo, - talvez o primeiro
da república, além de bom metafísico, e não
vulgar matemático -, o qual provou a coisa nesses termos:
- Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é
fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska.
Por que motivo foi ele escrito incompletamente? Não se pode
dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta
a última letra, um simples a. Carência de espaço?
Também não; vede; há ainda espaço para
duas ou três sílabas. Logo, a falta é a intenção,
não pode ser outra, senão chamar a atenção
do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira,
sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu,
a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica,
e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito,
chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro
essa primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural
do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio,
à inicial ne, do nome Nebraska, - Cané. - Resta a
sílaba do meio, bras, cuja redução a essa outra
sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa
mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei,
visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da
significação espiritual ou filosófica da sílaba,
suas origens e efeitos, fases, modificações, consequências
lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas
e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica
a última prova, evidente, clara, da minha afirmação
primeira pela anexação da sílaba ca às
duas Cane, dando esse nome Caneca.
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova
testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação,
o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia
na largura do saco. Essa emenda não evitou um pequeno abuso
na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído
às dimensões primitivas, dando-se-lhe todavia, a forma
triangular. Compreendeis que essa forma trazia consigo uma consequência:
ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para
a forma cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma
ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo,
e então adotou-se a forma de um crescente, etc. Muitos abusos,
descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá
igual destino, não inteiramente, de certo, pois a perfeição
não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho
de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república,
Erasmus, cujo último discurso sinto não poder dar-vos
integralmente. Encarregado de notificar a última resolução
legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral,
Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia
e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulysses.
- Vós sois a Penélope da nossa república, disse
ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos.
Refazei o saco, amigas, refazei o saco, até que Ulysses,
cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o
lugar que lhe cabe. Ulysses é a Sapiência. |
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