São Paulo, sábado, 19 de agosto de 1989


O ESPELHO DA FALHA

Marilene Felinto
Da equipe de articulistas

"Nosso valor real está com o sexo oposto".
Karen Blixen

Um ano inteiro passou, depois de dez que passaram, e eu demorei as lembranças. Fiz pequenos cortes longitudinais, usando uma faca especial, de lâmina longa, de forma que penetrassem os temperos de noz-moscada, manjerona, alecrim, baunilha e canela. Ficaram descansando depois, num fio de vinagre e vinho, no acre-doce de sal, passas e maçãs, numa imitação óbvia de Isadora. E de Isaura também, pois que peguei no refrigerador as mesmas pequenas lagostas róseas servidas por ela, preparei, distendi tudo com um garfo, para que a caçarola ficasse tomada dessa mistura de Isadora mais Isaura. Não satisfeita, ouso um toque pessoal: dissolver no molho uma gema fresca, para dar uma cor marfínea. Enquanto isso, enquanto tudo descansa numa vasilha hermeticamente tampada - para leve agonia minha -, aproxima-se a hora de levar ao fogo brando e ir mexendo sempre, para não engrossar (e para duplo desespero meu, esse de aceitar o apenas brando do fogo e acertar na delicadeza que produza a consistência final). Adio ainda esse momento de fogo, pego cebolas e alhos que preciso picar e deitar na manteiga até que alourem.

Enganei-me redondamente, a cebola sendo em si o instante sensível, o bulbo grande e solitário exalando num único talho o sumo e a essência da hora adiada. Congelei nos olhos irritados qualquer vazante mais precipitada, aguentei até o fim talho após talho, esmaguei o alho. Respingou manteiga no fogo: labaredas maiores danaram-se a lamber a panela inocente. Saí de perto, quase atingida, mas sentido-me também seca e boa como necessitava naquele exato instante. É com profundo lamento que abrando esse fogo onde alourem cebola e alho. Em poucos minutos estará pronto o caldo loiro onde eu despeje todo um ano de lembranças cortadas em fatias finíssimas, acalentadas à base de ervas também finas, pedaços de tempo que agora destampo.

Ponho-me então a mexer lentamente, em sentido anti-horário, lembranças assim que refluem e marejam meus olhos refratários. Embebidas nessa água que (não eu) a cebola soltou, elas dançam e formam desenhos que me comovem. A partir dos raios anti-horários em que minha mão se move, formam primeiro a roda da bicicleta que usamos Isadora e eu num fim de tarde, num fim de mundo entre Piripiri e Piracuruca, naquela estrada barrenta que levava ao começo do mundo, ao começo do tempo de Sete Cidades. (Não satisfeita, há pouco juntei à gema a cor do "curry", a cor do barro).

Para onde ia aquele atalho de cascalho e barro senão para o fim da tarde? Para o fim da tarde, sim, porque Sete Cidades não era um lugar, era um pedaço de tempo. Lá onde terminava a estrada, chovera e choveria ainda, as próprias nuvens armavam-se em cavernas escuras, tudo era distante e perto ao mesmo tempo, como as ruínas sinistras e mudas das rochas que formavam Sete Cidades - que se erguiam ali em esculturas de arenito, palpáveis, visíveis, mas que há milhões de anos desmoronavam também, desapareciam nos pedaços que faltavam, nas falhas que exibiam quase cruéis. (Mesma inconsistência da fumaça que já ensaia sair da panela agora, cinzenta como horizonte daquele dia, como Isadora parecia e reaparece aqui).

A bicicleta rangia nos seixos e pedregulhos do cascalho, esmagando os fragmentos da rocha falhada, triturando a escumalha que o vento trazia. As rodas iam e vinham num range-range, os raios girando bonito, girando, os mesmos raios delgados que se desenham agora e decalcam num quadriculado o rosto de Isaura, a voz toda partida de Isaura. (Salpico uma pitada de sal no cozido das lembranças, o mínimo que faltava.) Eu já estava pronta, minha vez na bicicleta, magrela ela e magra eu, formando um conjunto assim esbelto, liberto ao vento, do qual eu me orgulhava. Muito embora não tivesse conseguido carregar Isadora no bagageiro.

- Onde estão os rapazes? - perguntei a ela, à distância, dando voltas, fazendo ousados ziguezagues na bicicleta. - Onde estão os rapazes? - repeti, que ela não tinha ouvido. - Assim, vamos chegar atrasados.

Não ouviu nada. Irritou-me aquilo. Às vezes era difícil qualquer comunicação com Isadora, como se ela fosse feita de fumaça de nuvens. Certas pessoas são assim, quase impalpáveis. Pois afastei-me ainda mais, indo à toda nos pedais rumo ao horizonte, tão cinzento enfim, os pneus esmagando pedra sob pedra. De mais longe ainda, gritei:

- Isadora, vamos chegar atrasados! Os rapazes não estão prontos? E você? Não vai se aprontar?

Foi então que ouvimos a voz de Isaura - o primeiro sentimento para o recheio dessas lembranças é a voz dela ecoando, batendo e voltando como o vento nas rochas. Disse que já passava da hora, que os rapazes não estavam prontos. E completou, levemente irritada, referindo-se ao marido que se aprontava no hotel ali perto:

- Ele só sai todo pronto. E leva uma hora, aquela marmota.

Solidária, desci da bicicleta, ofereci-lhe uma volta. Não quis. Já estava pronta, de roupa limpa.

- Mas eu também já estou - emendei, como se dissesse que a culpa não era minha. O máximo que poderia fazer por ela seria dar-lhe uma carona no bagageiro. A ela eu poderia, não pesava tanto quanto Isadora.

Assim voltamos ela e eu esquecidas de Isadora, que ficara na cabeceira da estrada, muda e sinistra, fechada como o horizonte. No hotel, enquanto esperávamos os rapazes aprontarem-se, ficamos Isaura e eu olhando a chuva da janela. Escurecera muito. Já não era possível distinguir a massa preta do céu da massa paleozóica de Sete Cidades. Imaginei-me perdida ali, de noite, naquele território mal-assombrado, onde algum fenômeno desconhecido encarregava-se silencioso dos mistérios da erosão, que transformava em bichos e coisas o que antes era mera pedra; que fazia do próprio Polegar de Deus o resultado de uma falha na rocha, a face polida da falha.

- Você sabia que existe uma coisa chamada "espelho da falha"? - perguntei a Isaura.

Respondeu numa queixa, sobre outra coisa, como quem tivesse ouvido de minha pergunta apenas o tom da interrogação. Respondeu quase chorando, numa entonação toda peculiar. Na voz acidentada, que se quebrava em soluços discretos e sufocados, reclamou novamente da demora dos rapazes, falou preocupada sobre o filho que adoecera em casa, na ausência dela. A voz de Isaura ia e voltava, ecoando nos vãos das rochas, subindo e descendo o relevo ondulado de Sete Cidades, lá onde eu nos imaginava meninas amedrontadas, correndo da Tartaruga de pedra que despertava de milênios de sono, bocejava lenta, arrastava-se monstruosa em nossa direção. Enternecia-me tanto a voz dela, o tom de choro, que me provocava uma ansiedade solidária, uma impotência irritante somente satisfeita se fôssemos de novo meninas, para caminharmos e brincarmos juntas pelas ruelas estreitas de Monsenhor Gil, onde ela vivia sem mãe, sem irmãs. Sem isso, o que fazer por ela? O que fazer por mim?

- Mas o que foi que você disse? Espelho de quê? - Isaura perguntou.

- Espelho da falha. Mas agora eu estava pensando em outra coisa. Se ali, em Sete Cidades, naquelas cavernas cheias de inscrições e rastros, não saem de noite um bando de homenzinhos pré-históricos, fazem fogo e riem de nós, que passeamos por ali durante o dia, encantados com tudo.

Ela riu e reclamou de novo, que era impossível não atrasar nos passeios quando dependíamos dos rapazes, que era absurda aquela espera. Quis saber então sobre o espelho da falha, e eu disse o que lera: que espelho da falha é a face polida da falha, resultado da fricção das faces opostas da rocha que sofreu o falhamento. Ela não entendeu. Talvez também eu não tivesse entendido. Nesse movimento o telefone tocou no quarto. (E neste momento pipoca aqui a primeira bolha no cozido de minhas lembranças, num início de fervura que recomenda cuidados dobrados, o máximo de atenção). O telefone tocou e era Isadora, do outro quarto, toda magoada, perguntando se já estávamos prontas.

O quê? - perguntei, quase indignada - Nós? Isaura e eu? Você não viu que estamos, há muito tempo? Ou você não viu, lá fora?

- Pois eu também estou - respondeu, magoada mesmo. - Ou você acha que eu... O que você acha que estou fazendo aqui? Os rapazes é que não estão prontos, se quer saber...

E desligou o telefone.

- Ela bateu o telefone! - eu disse a Isaura, sinceramente espantada.

- Bateu? Por quê?

- Bateu! Sei lá por quê!

E agora são centenas as bolhas que estouram aqui, a coisa toda borbulha em gotas, lascas e pontas incontroláveis. Inverti o sentido dos movimentos, passei do anti para o horário mesmo, no desespero de quem talvez já tenha perdido o ponto. E talvez eu desista. Talvez passe daqui direto para a sobremesa, que servirei toda em frutas. Uma sobremesa toda em frutas: sou eu querendo ser tão simples quanto a natureza.

Mas alguma coisa ali complicara-se, ou era naturalmente complicada. Sem entender, fomos ao outro quarto. Lá, para completo espanto meu, Isadora chorava. Chorava! Assim, simplesmente: chorava! Parei, sufocando um engasgo, um soluço involuntário. Por que aquela mulher chorava? Num instante transfigurava-se o rosto dela - de hermético e plácido, contraíra-se em riscas finas, em camadas de falhas suaves como na Pedra da Biblioteca em Sete Cidades. As lágrimas escorriam longas e paralelas como as fissuras na textura dos quadros que ela fazia. Enternecida, eu me atrapalhava, ficava sem norte e procurava a natureza das coisas. De onde vinha aquele choro, se fazia o favor de me dizer? Era choro por causa de mim, para mim? Choro de quê, enfim? Perguntava a mim mesma, engasgada, o que era que eu fizera. "O que foi que eu fiz?", perguntei num olhar a Isaura. Mas ela continuava lentamente irritada, chorosa, e não cedeu, e se comoveu também. Enquanto Isadora chorava, as lágrimas correndo pelo rosto - pelo dela, pelo de Isaura, pelo meu. Chorava por nós três. Enquanto os rapazes riam de nós às gargalhadas, como se entendessem alguma coisa que a nós passava despercebida.

Aos poucos Isadora foi parando, dizendo que nós a excluíramos, Isaura e eu, aliadas naquela espera irritante pelos rapazes, que ela não tinha culpa, que ela mesma levava cinco minutos para se vestir, que há horas vinha pedindo ao marido que se aprontasse.

- Mas eu não fiz nada! A gente nem tocou no seu nome, não é, Isaura? Você é que bateu o telefone! A gente estava falando sobre outra coisa... sobre o espelho da falha.

Os homens redobraram as gargalhadas, na posição confortável de quem vê de fora e, portanto, melhor. E Isadora, o rosto ainda rubro, um rubro antigo, rupestre... Isadora não pôde evitar uma ligeira expressão de sorriso também, que lhe marcou o rosto de inscrições tão enigmáticas quanto os vestígios nas ruínas da caverna - uma mão aberta, de seis dedos, um entrecruzado de riscos lembrando um inseto. Depois retraiu-se de novo, ferida. Onde eu construíra diques de pedra que detivessem as minhas, as lágrimas de Isadora corriam numa maré vazante que me inundava, fazendo oscilar meu barco entre o lamento e a indignação. Lamento por não ter conseguido carregá-la na bicicleta. Nós que, havia poucos minutos, corríamos de bicicleta na estrada que ia dar num pedaço de tempo. Ali, na boca mesmo daquele universo de falhas onde ela, maior e mais forte, carregou-me no bagageiro. Lamento por isto: pela constatação de que já não éramos meninas, de força e tamanho parecidos. Não éramos. Já ganháramos a forma mais definitiva de mulheres, com destinos específicos e limites distintos, a forma falhada, esculpida em acidentes diversos, pelos vários ventos da erosão da vida.

Assim eu oscilava, procurando a natureza das coisas, do lamento à indignação. Indignada de que os homens rissem, gargalhassem numa esculhambação tão disparatada. Como se naquela trapalhada de humores, dores, espantos e choros, faltasse uma ordem que só eles conheciam, faltasse um pedaço, houvesse mesmo uma falha gritante. Que havia, reconheci cabisbaixa, admirada de que sem a lucidez deles perdêssemos facilmente o norte. Eles, os rapazes, os homens que já não faziam a menor questão de ser os valentes e ligeiros vikings ou fenícios que talvez tivessem desembarcado ali um dia e construído suas sete cidades de pedra. Não. Os ecos das risadas deles formavam um Arco do Triunfo, cruzavam o Mapa do Brasil muito azul, perfeitamente desenhado, vazado na rocha, e ganhavam o vale vazio lá embaixo.

Apago o fogo agora, duvidando da consistência adquirida nesse meu sincero esforço de consolar Isadora e Isaura. Em temperos e molhos elas são melhores. Mas não duvido das lembranças, das vontades de minha memória. Quando elas choram, Isadora e Isaura, meu desejo mais sincero e solidário é dar a mão às duas, passear um pouco por estradas estreitas, perdidas no tempo, e confessar uma dor qualquer minha, que seja bem secreta, bem dor, e possa consolá-las. Assim, por exemplo: "Era uma vez eu tive um dia... Um dia que começou e terminou com dor. De manhã, uma cólica forte, vinda do nada, que minutos depois se expressou no resultado do nada que é a menstruação. No fim da tarde, uma carta ruim, que expressava também uma rejeição, só que de outro caráter. Agora é de noite. As dores, unidas, vão dormir".


MARLENE FELINTO é escritora, autora de "As Mulheres de Tijucopapo" (Paz e Terra), "Outros Heróis e esse Graciliano" (Brasiliense) e "O Lago Encantado de Grongonzo".

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