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Um ano inteiro passou, depois de dez que passaram, e eu demorei
as lembranças. Fiz pequenos cortes longitudinais, usando
uma faca especial, de lâmina longa, de forma que penetrassem
os temperos de noz-moscada, manjerona, alecrim, baunilha e canela.
Ficaram descansando depois, num fio de vinagre e vinho, no acre-doce
de sal, passas e maçãs, numa imitação
óbvia de Isadora. E de Isaura também, pois que peguei
no refrigerador as mesmas pequenas lagostas róseas servidas
por ela, preparei, distendi tudo com um garfo, para que a caçarola
ficasse tomada dessa mistura de Isadora mais Isaura. Não
satisfeita, ouso um toque pessoal: dissolver no molho uma gema fresca,
para dar uma cor marfínea. Enquanto isso, enquanto tudo descansa
numa vasilha hermeticamente tampada - para leve agonia minha -,
aproxima-se a hora de levar ao fogo brando e ir mexendo sempre,
para não engrossar (e para duplo desespero meu, esse de aceitar
o apenas brando do fogo e acertar na delicadeza que produza a consistência
final). Adio ainda esse momento de fogo, pego cebolas e alhos que
preciso picar e deitar na manteiga até que alourem.
Enganei-me redondamente, a cebola sendo em si o instante sensível,
o bulbo grande e solitário exalando num único talho
o sumo e a essência da hora adiada. Congelei nos olhos irritados
qualquer vazante mais precipitada, aguentei até o fim talho
após talho, esmaguei o alho. Respingou manteiga no fogo:
labaredas maiores danaram-se a lamber a panela inocente. Saí
de perto, quase atingida, mas sentido-me também seca e boa
como necessitava naquele exato instante. É com profundo lamento
que abrando esse fogo onde alourem cebola e alho. Em poucos minutos
estará pronto o caldo loiro onde eu despeje todo um ano de
lembranças cortadas em fatias finíssimas, acalentadas
à base de ervas também finas, pedaços de tempo
que agora destampo.
Ponho-me então a mexer lentamente, em sentido anti-horário,
lembranças assim que refluem e marejam meus olhos refratários.
Embebidas nessa água que (não eu) a cebola soltou,
elas dançam e formam desenhos que me comovem. A partir dos
raios anti-horários em que minha mão se move, formam
primeiro a roda da bicicleta que usamos Isadora e eu num fim de
tarde, num fim de mundo entre Piripiri e Piracuruca, naquela estrada
barrenta que levava ao começo do mundo, ao começo
do tempo de Sete Cidades. (Não satisfeita, há pouco
juntei à gema a cor do "curry", a cor do barro).
Para onde ia aquele atalho de cascalho e barro senão para
o fim da tarde? Para o fim da tarde, sim, porque Sete Cidades não
era um lugar, era um pedaço de tempo. Lá onde terminava
a estrada, chovera e choveria ainda, as próprias nuvens armavam-se
em cavernas escuras, tudo era distante e perto ao mesmo tempo, como
as ruínas sinistras e mudas das rochas que formavam Sete
Cidades - que se erguiam ali em esculturas de arenito, palpáveis,
visíveis, mas que há milhões de anos desmoronavam
também, desapareciam nos pedaços que faltavam, nas
falhas que exibiam quase cruéis. (Mesma inconsistência
da fumaça que já ensaia sair da panela agora, cinzenta
como horizonte daquele dia, como Isadora parecia e reaparece aqui).
A bicicleta rangia nos seixos e pedregulhos do cascalho, esmagando
os fragmentos da rocha falhada, triturando a escumalha que o vento
trazia. As rodas iam e vinham num range-range, os raios girando
bonito, girando, os mesmos raios delgados que se desenham agora
e decalcam num quadriculado o rosto de Isaura, a voz toda partida
de Isaura. (Salpico uma pitada de sal no cozido das lembranças,
o mínimo que faltava.) Eu já estava pronta, minha
vez na bicicleta, magrela ela e magra eu, formando um conjunto assim
esbelto, liberto ao vento, do qual eu me orgulhava. Muito embora
não tivesse conseguido carregar Isadora no bagageiro.
- Onde estão os rapazes? - perguntei a ela, à distância,
dando voltas, fazendo ousados ziguezagues na bicicleta. - Onde estão
os rapazes? - repeti, que ela não tinha ouvido. - Assim,
vamos chegar atrasados.
Não ouviu nada. Irritou-me aquilo. Às vezes era difícil
qualquer comunicação com Isadora, como se ela fosse
feita de fumaça de nuvens. Certas pessoas são assim,
quase impalpáveis. Pois afastei-me ainda mais, indo à
toda nos pedais rumo ao horizonte, tão cinzento enfim, os
pneus esmagando pedra sob pedra. De mais longe ainda, gritei:
- Isadora, vamos chegar atrasados! Os rapazes não estão
prontos? E você? Não vai se aprontar?
Foi então que ouvimos a voz de Isaura - o primeiro sentimento
para o recheio dessas lembranças é a voz dela ecoando,
batendo e voltando como o vento nas rochas. Disse que já
passava da hora, que os rapazes não estavam prontos. E completou,
levemente irritada, referindo-se ao marido que se aprontava no hotel
ali perto:
- Ele só sai todo pronto. E leva uma hora, aquela marmota.
Solidária, desci da bicicleta, ofereci-lhe uma volta. Não
quis. Já estava pronta, de roupa limpa.
- Mas eu também já estou - emendei, como se dissesse
que a culpa não era minha. O máximo que poderia fazer
por ela seria dar-lhe uma carona no bagageiro. A ela eu poderia,
não pesava tanto quanto Isadora.
Assim voltamos ela e eu esquecidas de Isadora, que ficara na cabeceira
da estrada, muda e sinistra, fechada como o horizonte. No hotel,
enquanto esperávamos os rapazes aprontarem-se, ficamos Isaura
e eu olhando a chuva da janela. Escurecera muito. Já não
era possível distinguir a massa preta do céu da massa
paleozóica de Sete Cidades. Imaginei-me perdida ali, de noite,
naquele território mal-assombrado, onde algum fenômeno
desconhecido encarregava-se silencioso dos mistérios da erosão,
que transformava em bichos e coisas o que antes era mera pedra;
que fazia do próprio Polegar de Deus o resultado de uma falha
na rocha, a face polida da falha.
- Você sabia que existe uma coisa chamada "espelho da
falha"? - perguntei a Isaura.
Respondeu numa queixa, sobre outra coisa, como quem tivesse ouvido
de minha pergunta apenas o tom da interrogação. Respondeu
quase chorando, numa entonação toda peculiar. Na voz
acidentada, que se quebrava em soluços discretos e sufocados,
reclamou novamente da demora dos rapazes, falou preocupada sobre
o filho que adoecera em casa, na ausência dela. A voz de Isaura
ia e voltava, ecoando nos vãos das rochas, subindo e descendo
o relevo ondulado de Sete Cidades, lá onde eu nos imaginava
meninas amedrontadas, correndo da Tartaruga de pedra que despertava
de milênios de sono, bocejava lenta, arrastava-se monstruosa
em nossa direção. Enternecia-me tanto a voz dela,
o tom de choro, que me provocava uma ansiedade solidária,
uma impotência irritante somente satisfeita se fôssemos
de novo meninas, para caminharmos e brincarmos juntas pelas ruelas
estreitas de Monsenhor Gil, onde ela vivia sem mãe, sem irmãs.
Sem isso, o que fazer por ela? O que fazer por mim?
- Mas o que foi que você disse? Espelho de quê? - Isaura
perguntou.
- Espelho da falha. Mas agora eu estava pensando em outra coisa.
Se ali, em Sete Cidades, naquelas cavernas cheias de inscrições
e rastros, não saem de noite um bando de homenzinhos pré-históricos,
fazem fogo e riem de nós, que passeamos por ali durante o
dia, encantados com tudo.
Ela riu e reclamou de novo, que era impossível não
atrasar nos passeios quando dependíamos dos rapazes, que
era absurda aquela espera. Quis saber então sobre o espelho
da falha, e eu disse o que lera: que espelho da falha é a
face polida da falha, resultado da fricção das faces
opostas da rocha que sofreu o falhamento. Ela não entendeu.
Talvez também eu não tivesse entendido. Nesse movimento
o telefone tocou no quarto. (E neste momento pipoca aqui a primeira
bolha no cozido de minhas lembranças, num início de
fervura que recomenda cuidados dobrados, o máximo de atenção).
O telefone tocou e era Isadora, do outro quarto, toda magoada, perguntando
se já estávamos prontas.
O quê? - perguntei, quase indignada - Nós? Isaura e
eu? Você não viu que estamos, há muito tempo?
Ou você não viu, lá fora?
- Pois eu também estou - respondeu, magoada mesmo. - Ou você
acha que eu... O que você acha que estou fazendo aqui? Os
rapazes é que não estão prontos, se quer saber...
E desligou o telefone.
- Ela bateu o telefone! - eu disse a Isaura, sinceramente espantada.
- Bateu? Por quê?
- Bateu! Sei lá por quê!
E agora são centenas as bolhas que estouram aqui, a coisa
toda borbulha em gotas, lascas e pontas incontroláveis. Inverti
o sentido dos movimentos, passei do anti para o horário mesmo,
no desespero de quem talvez já tenha perdido o ponto. E talvez
eu desista. Talvez passe daqui direto para a sobremesa, que servirei
toda em frutas. Uma sobremesa toda em frutas: sou eu querendo ser
tão simples quanto a natureza.
Mas alguma coisa ali complicara-se, ou era naturalmente complicada.
Sem entender, fomos ao outro quarto. Lá, para completo espanto
meu, Isadora chorava. Chorava! Assim, simplesmente: chorava! Parei,
sufocando um engasgo, um soluço involuntário. Por
que aquela mulher chorava? Num instante transfigurava-se o rosto
dela - de hermético e plácido, contraíra-se
em riscas finas, em camadas de falhas suaves como na Pedra da Biblioteca
em Sete Cidades. As lágrimas escorriam longas e paralelas
como as fissuras na textura dos quadros que ela fazia. Enternecida,
eu me atrapalhava, ficava sem norte e procurava a natureza das coisas.
De onde vinha aquele choro, se fazia o favor de me dizer? Era choro
por causa de mim, para mim? Choro de quê, enfim? Perguntava
a mim mesma, engasgada, o que era que eu fizera. "O que foi
que eu fiz?", perguntei num olhar a Isaura. Mas ela continuava
lentamente irritada, chorosa, e não cedeu, e se comoveu também.
Enquanto Isadora chorava, as lágrimas correndo pelo rosto
- pelo dela, pelo de Isaura, pelo meu. Chorava por nós três.
Enquanto os rapazes riam de nós às gargalhadas, como
se entendessem alguma coisa que a nós passava despercebida.
Aos poucos Isadora foi parando, dizendo que nós a excluíramos,
Isaura e eu, aliadas naquela espera irritante pelos rapazes, que
ela não tinha culpa, que ela mesma levava cinco minutos para
se vestir, que há horas vinha pedindo ao marido que se aprontasse.
- Mas eu não fiz nada! A gente nem tocou no seu nome, não
é, Isaura? Você é que bateu o telefone! A gente
estava falando sobre outra coisa... sobre o espelho da falha.
Os homens redobraram as gargalhadas, na posição confortável
de quem vê de fora e, portanto, melhor. E Isadora, o rosto
ainda rubro, um rubro antigo, rupestre... Isadora não pôde
evitar uma ligeira expressão de sorriso também, que
lhe marcou o rosto de inscrições tão enigmáticas
quanto os vestígios nas ruínas da caverna - uma mão
aberta, de seis dedos, um entrecruzado de riscos lembrando um inseto.
Depois retraiu-se de novo, ferida. Onde eu construíra diques
de pedra que detivessem as minhas, as lágrimas de Isadora
corriam numa maré vazante que me inundava, fazendo oscilar
meu barco entre o lamento e a indignação. Lamento
por não ter conseguido carregá-la na bicicleta. Nós
que, havia poucos minutos, corríamos de bicicleta na estrada
que ia dar num pedaço de tempo. Ali, na boca mesmo daquele
universo de falhas onde ela, maior e mais forte, carregou-me no
bagageiro. Lamento por isto: pela constatação de que
já não éramos meninas, de força e tamanho
parecidos. Não éramos. Já ganháramos
a forma mais definitiva de mulheres, com destinos específicos
e limites distintos, a forma falhada, esculpida em acidentes diversos,
pelos vários ventos da erosão da vida.
Assim eu oscilava, procurando a natureza das coisas, do lamento
à indignação. Indignada de que os homens rissem,
gargalhassem numa esculhambação tão disparatada.
Como se naquela trapalhada de humores, dores, espantos e choros,
faltasse uma ordem que só eles conheciam, faltasse um pedaço,
houvesse mesmo uma falha gritante. Que havia, reconheci cabisbaixa,
admirada de que sem a lucidez deles perdêssemos facilmente
o norte. Eles, os rapazes, os homens que já não faziam
a menor questão de ser os valentes e ligeiros vikings ou
fenícios que talvez tivessem desembarcado ali um dia e construído
suas sete cidades de pedra. Não. Os ecos das risadas deles
formavam um Arco do Triunfo, cruzavam o Mapa do Brasil muito azul,
perfeitamente desenhado, vazado na rocha, e ganhavam o vale vazio
lá embaixo.
Apago o fogo agora, duvidando da consistência adquirida nesse
meu sincero esforço de consolar Isadora e Isaura. Em temperos
e molhos elas são melhores. Mas não duvido das lembranças,
das vontades de minha memória. Quando elas choram, Isadora
e Isaura, meu desejo mais sincero e solidário é dar
a mão às duas, passear um pouco por estradas estreitas,
perdidas no tempo, e confessar uma dor qualquer minha, que seja
bem secreta, bem dor, e possa consolá-las. Assim, por exemplo:
"Era uma vez eu tive um dia... Um dia que começou e
terminou com dor. De manhã, uma cólica forte, vinda
do nada, que minutos depois se expressou no resultado do nada que
é a menstruação. No fim da tarde, uma carta
ruim, que expressava também uma rejeição, só
que de outro caráter. Agora é de noite. As dores,
unidas, vão dormir".
MARLENE
FELINTO é escritora, autora de "As Mulheres de
Tijucopapo" (Paz e Terra), "Outros Heróis e esse
Graciliano" (Brasiliense) e "O Lago Encantado de Grongonzo".
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