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SOBRE O PRECONCEITO DE RAÇAS MUITOS PAISES TEEM A APRENDER COM O BRASIL

O PRECONCEITO DE CLASSES SOBRE PUJA O DE CASTAS EM NOSSO POVO
 
O problema racial invadiu atualmente todos os domínios da atividade humana - O negro grupo biológico diferente do branco, nos Estados Unidos e no Brasil - A distribuição espacial das raças na Baía

Pela sua alta significação, a data de hoje assinala uma das etapas mais eloquentes na evolução da sociedade brasileira. Tira o negro da miseravel posição de submisso, equiparando-lhe os direitos civis aos dos brancos, isto precisamente há 53 anos passados, quando a escravatura marcava nossa terra com o ferrete do preconceito racial. Com o 13 de maio, dá-se o início a uma era para o Brasil, tanto mais importante, tanto mais sugestiva, se se leva em conta a transformação ocasionada na política do segundo império pela libertação dos escravos, em cujos braços, agora livres, repousava a nossa economia. Por isso nunca será demais, relembrar alguns aspectos da vida brasileira do século passado, em tempos ainda tão próximos de nós, dos senhores de engenho e dos negros escravizados exatamente no dia que transcorre o aniversário da redenção dos pobres cativos. Mas queremos fazer esse passeio ao préterito à luz de postulados científicos, isto é, analisando principalmente o problema da raça negra em nossa terra, se não de um modo integral, pelo menos quasi na multiplicidade de seus ângulos de visão.

Nesse sentido, estivemos com o prof. Donald Pierson, assistente de pesquisas da Universidade de Chicago, há vários anos no Brasil, onde tem estudado com senso e inteligência, o interessante e delicado assunto. O ilustre professor, que tambem leciona na Escola Livre de Sociologia e Política, iniciando suas considerações em torno do problema da raça negra no Brasil, declarou-nos:

- O problema racial, no sentido amplo da palavra, constitue atualmente assunto dos mais importantes de todo o mundo. Já não se limita a certas e determinadas fronteiras, invadiu muitos domínios onde a atividade humana se exerce, inclusive a política. Teorias modernas substituiram velhas concepções no campo da ciência racial. O problema se tornou vivo, palpitante, aumentado muito de interesse. É umas das razões porque os pesquisadores não se contentam mais com as simples teorias primitivas do problema. É muito pouco em face da grandiosidade do assunto.

- Agora eles querem é conhecer a realidade dos fatos. Ademais, um problema, na condição em que se acha a ciência, não pode ser encarado regionalmente, ou por outras palavras, analisado unicamente num só ponto. Para conhecê-lo com suficiente precisão, necessário se torna estudá-lo mundialmente, em várias partes, comparando condições e situações de cada caso. Assim, podemos dizer que um dos mais importantes e profícuos métodos dos cientistas sociais é o da comparação dos casos. Não precisamos andar muito. Comparemos, por exemplo, os contactos raciais e culturais de diversos núcleos étnicos na Índia, na África do Sul, no Havaí, nos Estados Unidos, nas Índias Ocidentais e no Brasil. Estudemos esses contactos. Finalmente, por uma espécie de máximo divisor comum, determinaremos o que acontece, relativamente ao conjunto. Chegaríamos à conclusão de ser possivel obter generalizações cientificas sobre a maneira pela qual esses processos sociais e culturais atuam. Por conseguinte, o estudo do problema da raça negra no Brasil, voltando ao nosso caso, se torna muito mais importante, se encarado do ponto de vista mundial.

O problema do preconceito racial

O prof. Donald Pierson, a seguir, expressando-se com muita facilidade em português, focaliza o debatido, problema do preconceito racial.

- Esse problema - comenta - especialmente no que concerne ao judeu e ao negro, em muitos lugares do mundo, é de grande atualidade. Fala-se bastante do preconceito de raças. Penetrou os bastidores políticos internacionais. Briga-se por ele, trucidam-se povos, somente para justificar a idéia de Gobbineau e outros pensadores, sobre a suposta existência de raças superiores. No fundo, isso tudo não passa de falsas concepções alevantadas no tocante ao problema.

- Eu mesmo posso esclarecer certos fatos a respeito do problema de raças em geral - prosseguiu - por meio de estudos levados a efeito na América do Norte, onde há muito preconceito contra o negro, e no Brasil, onde o assunto se apresenta num plano diferente. Aqui, inversamente, há, sobretudo, o preconceito de classe e talvez não de raça. Mas de tal sorte o problema se apresenta, que esse preconceito de classe está intimamente ligado ao de raça, pois que os pretos foram, por muitos séculos, considerados como indivíduos de posição social inferior. Quanto ao número exato deles que para cá vieram, ninguem sabe ao certo. Todos os documentos pertinentes à importação de africanos, existentes nos arquivos baianos, foram destruidos em 1889.

- Mas quem conhece perfeitamente os Estados da Baía, o de Pernambuco, o do Maranhão, o do Rio, o de Minas Gerais, os cinco centros de concentração de negros no Brasil, está convencido de que o número foi maior que o importado pelos Estado Unidos ou Índias Ocidentais. Mas apesar de tudo, o negro nos Estados Unidos, como grupo biológico diferente do branco, está aumentado gradativamente, enquanto no Brasil o mesmo caso vai se processando num sentido inverso, tendendo a confundir-se num sub-tipo comum. Especialmente no norte do território brasileiro, onde os pretos estão sendo absorvidos biologicamente pelos mulatos e os mulatos pelos brancos. Essa particularidade não se observa, entretanto, nos Estados Unidos da América do Norte. Alí, toda pessoa descendente de africano é considerada negra, mesmo quando sua aparência não revela caracteres originais africanos. No Brasil, milhares de pessoas com sangue de africanos, mas com aparência mais ou menos de branco, estão sendo incorporadas biológica e socialmente às fileiras brancas. O paralelo, no entanto, não deve ficar nesta altura. Vamos um pouco alem. Atualmente, ainda na terra do Tio Sam, está se desenvolvendo um forte sentimento de raça entre os negros, cuja expressão mais fiel e lídima aparece na literatura e no drama, em livros como, por exemplo, "Native Son", de autoria do escritor negro Richard Wright que está sendo apresentado agora, na Broadway, por ele próprio e pelo dramaturgo Paul Green. Aqui, esse sentimento de raça entre os negros é mínimo, a não ser que talvez esteja aumentado em São Paulo, em virtude de fatores diversos, aparecidos recentemente. Entretanto, nos últimos cinquenta anos, pelo fato de terem entrado por estas bandas levas e levas de emigrantes, que quebraram, por assim dizer, a estrutura consuetudinária original, não se pode negar, o sentimento em foco já não apresenta as mesmas características.

- Enfim, bem considerado o problema do preconceito, os Estados Unidos teem muito que aprender do Brasil, pois enquanto ele está se tornando cada vez peor naquele país, neste não há, estritamente falando, o mesmo caso. Não são só os Estados Unidos que teem muito a aprender com os brasileiros, mas todos os paises que lutam com as mesmas dificuldades, primordialmente no futuro, em que o problema de raça se tornará bem mais sério, em virtude do desenvolvimento dos meios de transporte.

Os negros da Baía

- Para o estudo do caso brasileiro - adiantou depois o prof. Donald Pierson - do contacto de negros e brancos, um dos centros mais interessantes e que poderá fornecer ao pesquisador material incalculavel, - é a Baía. Primeiramente, ela foi o centro do governo colonial. Os primeiros cargueiros de assucar para a Europa, que nesse tempo mal conhecia o produto, partiram dali e de Pernambuco. Os grandes canaviais se alongavam pelo Recôncavo, verdes, ondulantes, desdobrando ao vento as lâminas afiadas de suas folhas. Para o trato, porem, da grande monocultura, exigiam-se braços, muitos braços. Os primeiros contingentes de africanos são importados. Outros veem mais tarde. A África passa a ser o grande mercado fornecedor de escravos para os engenhos da Baía e de Pernambuco. Da Baía, para outras partes do Brasil, são, por sua vez, exportados milhares de africanos. Houve então, pelo espaço de três séculos, contacto estreito e continuo entre brancos descendentes de portugueses e africanos de varias tribus. Nestes últimos anos, como a entrada de negros tem sido praticamente nula, a estrutura da sociedade baiana não sofreu modificação marcante. Ela apresenta ainda certos traços, culturais africanos, muito especialmente os ligados às atividades religiosas, que se processam com seriedade, de acordo com um grande número do dogmas e regras tradicionais.

Distribuição das raças na Baía

- A distribuição espacial das raças na Baía - explicou o nosso entrevistado - poderia ser tomada como um índice, em relação à atual ordem racial. Geralmente, pode-se dizer que os brancos e os mestiços mais claros ocupam, de ordinário, os altos da cidade, que são mais confortaveis, mais agradaveis, mais caros. Os pretos e os mestiços mais escuros, por outro lado, povoam, de um modo geral, as áreas baixas, onde as residências são menos confortaveis, menos saudaveis, menos convenientes, mais baratas. O padrão residencial sugere uma sociedade de livre-competição, e de desenvolvimento gradual, na qual os europeus se fixaram nos altos e os africanos e seus descendentes, como escravos, ou homens livres empobrecidos, foram relegados para o território menos desejado. Embora ou europeus tenham mantido de um modo consideravel a vantagem original, os pretos e os mulatos escuros se elevaram gradualmente de sua localização menos favorecida até conseguirem, nos dias de hoje, em alguns casos, participar da posição favorecida dos europeus. Ocasionalmente, podemos encontrá-los vivendo ao lado dos brancos, simbolizando o fato de ocuparem as posições especiais, que a habilidade pessoal, a eficiência profissional e as circunstâncias favoraveis lhes permitiram conseguir e manter. Os pretos e o mulatos escuros, entretanto, estão ainda concentrados nas fileiras inferiores, o que é natural, considerando que seus pais ou avós ou outros ascendentes começaram, na Baía, como escravos. Relativamente falando, muitos deles só foram libertados há pouco tampo. Os mestiços, especialmente os mulatos mais claros, mostram sua tendência bastante forte par subir na escala social. As camadas superiores da Baía tendem a ser hoje predominantemente brancas. Mas vários mulatos, alguns dos quais são escuros e ocasionalmente um preto, teem alcançado posição de relevo na vida comercial, intelectual, política ou social. Estes indivíduos, que não somente subiram na escala social mas, tambem em diversos casos, entraram para comunidade das famílias brancas, por meio do casamento - são o melhor indício de que a estrutura da sociedade baiana é uma estrutura de classe e não de castas.

O prof. Donald Pierson tece logo depois, ligeiras considerações sobre a estrutura da sociedade, do ponto de vista das raças. Neste ponto, ou a sociedade se expressa pelas castas, ou então pelas minorias raciais ou pelas classes.

- Dentro desde critério, - disse - puramente cientifico, na Baía um ponto importante sobre a situação racial é a ascendência dos pretos e mulatos, em classe, ascendência essa reconhecida não só no mundo negro, mas por todos os membros brancos e pretos da comunidade, como a ascendência similar não é reconhecida nos Estados Unidos. No entanto, parece que o negro na Baía não está se tornando uma "minoria racial" consciente de sua raça, em livre-competição com o branco, como naquele pais, mas não aceito por ele. Igualmente, desde que os pretos, os mestiços e os brancos não constituem grupos de ocupação, os quais são endógomos, a estrutura social não é baseada em casta. A organização da sociedade toma a forma de competição, em que os indivíduos obteem os seus lugares em virtude do valor que por motivo de sua origem racial. Este fato é talvez melhor expresso pelo refrão muito comum na Baía: "Negro rico é branco. Branco pobre é negro".

Na parte final de suas considerações, o prof. Donald Pierson comentou:

- A situação racial da Baía, em suma, é suficientemente diferente da situação racial da India, onde a sociedade é organizada pelo principio de castas, bem como de outras partes do mundo, - os Estados Unidos a respeito dos negros, a Alemanha a respeito dos judeus, - onde uma minoria racial ou nacional está em livre- competição com a maioria dominante, mas não aceito por ela, de modo a constituir um tipo distinto. O problema de raças na Baía, se houver, tende a ser identificado com a resistência que um grupo étnico oferece a absorção. O preconceito existe no Brasil, mas é preconceito de classes - repetimo-lo - nunca de castas. É o mesmo tipo que há nos Estados Unidos dentro das falanges dos próprios negros, onde os de classes altas evitam casar-se com os de classes baixas, procurando ainda, selecionar suas relações sociais.

- E sobre o problema do negro em São Paulo?

- Nada posso dizer. É muito cedo. Na Baía, - finalizou o ilustre sociológico - só depois de dois anos de pesquisas e mais dois de verificação é que falei pela primeira vez sobre o delicado assunto de raças.
 
Entrevista concedida à "Folha da Noite" pelo professor Donald Pierson, assistente de Pesquisas da U. de Chicago e lente da E. L. de Sociologia e Política de São Paulo
Data de publicação 13.mai.1941

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