São Paulo, domingo, 7 de junho de 1970
Neste texto foi mantida a grafia original

"NÓS SOMOS MAIS MAGICOS QUE LOGICOS"

Esta é uma insolita entrevista com Érico Verissimo, autor de "O Continente" e escritor que tem o seu lugar neste panorama da nova literatura latino-americana. A entrevista, apesar de não ter sido pensada nem realizada por um jornalista profissional, é publicada pelo ineditismo de que se reveste: foi realizada por três estudantes do Colegio e Escola Normal "Antonio Raposo Tavares", de Osasco. São elas: Vera Lucia Bastos, Maria Isabel Baldo e Sueli Aparecida Ribeiro de Carvalho.
Eivadas de simplicidade, as perguntas são às vezes surpreendentes para o proprio escritor, certamente homem acostumado a este tipo de experiencia. Talvez por isso ele confesse: "Muitas vezes sou desviado de meu trabalho, por horas, como no caso desta entrevista. É um crime".

P - Onde estudou (quais escolas) e que cursos fêz?
R - Fiz o curso primario na minha cidade natal, Cruz Alta, e metade do secundario em Porto Alegre, no Ginasio Cruzeiro do Sul (1920-1922). Daí por diante fui auto didata.

P - Que tipo de estudante o senhor foi?
R - Diziam os professores que eu era um bom estudante e as notas que tirava parecem confirmar essa ideia. No entanto desconfio que uma dose muito grande de imaginação me desviava dos textos didaticos e me levava em prolongados passeios por mundos fantasticos. Eu tinha e ainda tenho a atenção voluvel.

P - Há alguma diferença entre os estudantes de hoje e os de seu tempo?
R - Nunca estudei esse assunto minuciosamente. Sei isso sim, que há diferenças enormes no ensino e nas condições de vida dos estudantes. Os de hoje gozam de muito mais privilegios que os de meu tempo. Nos nossos dias os elementos audio-visuais (com os quais os de minha geração não contavam) fazem toda a diferença. Há hoje mais intimidade, mais camaradagem entre professores e alunos do que antigamente.

P - Como, quando e por que começou sua carreira de escritor?
R - A carreira só comecei depois do primeiro livro, Fantoches (1932), mas escrevia e publicava esparsamente desde 1929. Por que? Necessitaria de escrever um ensaio enorme para responder a este por que. Talvez possa dizer, numa resposta incompleta, que me sentia inclinado à literatura - desejo de comunicar-me com os meus semelhantes e comigo mesmo; ansia de sair do anonimato, da mediocridade duma vida de cidade pequena; necessidade de emular os escritores famosos que eu lia, pois sempre gostei muito de ler. E é natural que, aos dezoito ou vinte anos, todo o homem tem o desejo muito natural de ver seu nome ligado a algum empreendimento, algum feito. No meu caso esse desejo era o de ver o meu nome na capa dum livro.

P - O que o levou a escrever a sua primeira obra e qual foi?
R - Esta pergunta de certo modo está respondida na anterior. O primeiro livro Fantoches, é uma coleção de contos.

P - Qual o tema que abordou para os seus escritos?
R - Ora, sempre me interessei pelos problemas do homem, preferindo o habitante da cidade ao do campo. Nunca fui regionalista. Os primeiros escritos meus revelavam influencias de Ibsen, Shaw, Anatole France. Mas a maior influencia de todas - a que durou mais - foi a de Eça de Queiroz, o que não exclue a minha enorme admiração por Machado de Assis.

P - Sofreu influencia de algum escritor?
R - Respondida acima. Mas devo acrescentar que um escritor me estimulou muito, direta e indiretamente, com sua vida e a sua obra: Monteiro Lobato.

P - Quando está escrevendo algum livro a idéia vem espontaneamente ou é forçada?
R - Pode acontecer uma coisa ou outra. Mas a espontaneidade prevalece.

P - Em seus livros, baseia-se em experiencias pessoais ou apenas em criatividade?
R - Inclino-me para a criatividade. Mas nenhum escritor pode criar do nada. Mesmo quando ele não sabe, está usando experiencias vividas, lidas ou ouvidas, e até mesmo pressentidas por uma especie de sexto sentido. Estou convencido que de a criação literaria se processa mais no inconciente que no conciente.

P - Entre as suas obras, qual a que mais lhe agrada?
R - Ainda não me fiz esta pergunta. Não saberia responder a ela agora. O mais que lhe posso dizer é que, se tivesse de escolher uma obra para me representar como escritor, seria o primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, intitulado O Continente.

P - Em que se baseia para dar titulos às suas obras?
R - O processo de encontrar os titulos é misterioso. Eu sinceramente não lhe saberia dizer como nascem os titulos. Talvez pudesse dizer que eles tambem se oferecem por obra do inconciente e depois são devidamente "manipulados" pelo conciente.

P - O que é necessário para um bom literato?
R - Pergunte isso aos criticos. Eles sabem tudo. Nós os ficcionistas somos mais magicos do que logicos. E é preciso logica para responder a esta pergunta.

P - Um bom escritor pode se fazer ou nasce feito?
R - Ele em geral nasce - creio - com a vocação para a literatura. O resto, que é muito, dependerá de artesanato, experiencia, paciencia, persistencia, trabalho. Está claro que não estamos falando dos genios, esses bichos raros que aparecem esporadicamente nas literaturas.

P - O que acha de José Mauro de Vasconcelos?
R - Gosto dele como pessoa. De todos os seus livros, só li um dos primeiros, Barro Blanco, que era uma "promessa".

P - Como vê a nova geração de literatos no Brasil?
R - Acho-a de primeira ordem. Nossa poesia é tão boa como a francesa, a inglesa, a italiana, a americana. Temos já prosadores de estatura internacional. E o conto entre nós se tem desenvolvido muito nos ultimos dez anos, revelando-nos um punhado de jovens com muito talento.

P - Acha que a nossa epoca é uma epoca de transformações?
R - Evidentemente. Estamos no ôco de uma grande onda, e isso nos impede de ver as praias do futuro. Mas sou otimista. Principalmente no que diz respeito ao Brasil.

P - Acha que o estudante de humanidades tem boas perspectivas num mundo tão dominado pela tecnologia?
R - Não sei. O que sei é que devemos insistir no estudo das humanidades. Ciencia e tecnica são meios. Quem nos aponta para os fins são os humanistas. Precisamos deles, cada vez mais.

P - Como encara a situação do mundo atual?
R - Eis outra pergunta que exige um ensaio para o qual não tenho tempo nem disposição. É evidente que vivemos num mundo conturbado, num mundo de protestos, preludio de grandes reformas.

P - Considera o homem totalmente racional?
R - Não. E menos racional ainda que o homem é a multidão.

P - Como encara a excessiva preocupação do homem para descobrir o que há alem da Terra? Esta busca é para aprofundar os conhecimentos ou é, mais, para provar de que o homem é capaz.
R - Essa curiosidade do homem para com a sua propria vida e o Universo é o que tem impelido a descobertas e invenções. Sem essa curiosidade - a que se mistura não raro uma saudavel dose de orgulho legitimo - estariamos ainda na idade da pedra lascada. A busca me parece que tem as duas finalidades que sua pergunta menciona.

P - O que acha dos Beatles? O que trouxeram de bom ou de mal para a juventude?
R - Não pensei ainda nos Beatles. Não é possivel ter opinião sobre tudo. Não há tempo. Há muito que ler. Há muito que fazer. Tenho o meu trabalho. Muitas vezes sou desviado dele durante uma, duas horas como, por exemplo, no caso desta longa entrevista. Não imagine que v. é a unica pessoa que me entrevistou esta semana. Houve muitas outras. Eu poderia encher todas as minhas horas atendendo a solicitações do exterior, ficando sem tempo para escrever os meus livros. Considerando que estou já com 64 anos e minha saude não é muito boa, creio que cometo um crime contra mim mesmo e os meus quando me desvio da atividade de escrever livros para dar entrevistas.

P - O que acha da musica popular brasileira? Qual é o compositor que mais aprecia e porque?
R - Tambem não tenho opinião firmada sobre musica popular. Os compositores que mais aprecio - Bach, Beethoven e Mozart - não são populares, infelizmente.

P - O que acha do cinema brasileiro? Qual é a sua situação atualmente.
R - Tenho visto poucos filmes nacionais. Não vi os melhores. Falta de tempo, não de curiosidade, pois gosto muito de cinema.

P - O teatro no Brasil é bem aproveitado?
R - Conheço nosso teatro ainda menos que o nosso cinema. Eu gostaria de ter duas vidas separadas e simultaneas. Dedicaria uma delas ao meu trabalho literario e a outra... ao resto.

P - O senhor já se realizou como escritor?
R - Não, porque não fiz nenhum livro que eu possa considerar grande. Mas não me sinto frustrado. Pude fazer profissão da literatura. Comuniquei-me com dezenas de milhares de leitores, de quem tenho recebido provas de estima que me sensibilizam.

P - Alem de escritor, exerce outra profissão?
R - Já fui tradutor e redator numa revista. Hoje só vivo da minha profissão de escritor.

P - Qual é a obra indicada para fazermos um trabalho? Quando e o que o levou a escrevê-la? Tem algum esclarecimento a fazer sobre ela?
R - Por que não Clarissa? Não a recomendo como estilo, mas sim como estudo da psicologia duma adolescente - note bem! - em 1931 Clarissa é um poeminha em prosa sobre a vida cotidiana. Creio que seus estudantes poderiam fazer um paralelo das Clarissas de 1931 com as de nossos dias.

P - Qual mensagem daria aos estudantes brasileiros?
R - Não sou homem de mensagens. Nenhuma vocação de mestre ou profeta. O mais que eu poderia dizer é: "Estudem, estudem, preparem-se para a vida e depois vivam, não esquecendo jamais que a vida em sociedade exige de cada um de nós um sentido muito profundo de responsabilidade comunal". Mas não gosto desta mensagem. Preferia não dar nenhuma.

_________
Em nome dos alunos do 3.o classico (noturno), do Colegio Raposo Tavares (CENEART) de Osasco, São Paulo.
Obrigado.

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