São Paulo, domingo, 2 de agosto de 1964
Neste texto foi mantida a grafia original

NOEL ROSA

Carlos Heitor Cony

Chamar Noel Rosa de filosofo do samba, é xingar, ao mesmo tempo, a filosofia, o samba, e, sobretudo, o proprio Noel Rosa. Nada tenho contra aqueles que xingam a filosofia, julgo até louvavel que se meta o malho na ciencia que foi a "ancilla theologiae". Mas xingar o samba e o Noel é estupidez e ociosidade.

Noel foi acima de tudo, um poeta, poeta no sentido classico e etimologico da palavra. Aproveito a oportunidade para denunciar os estudiosos e os integrantes do chamado movimento modernista: nenhum deles percebeu a pureza da poetica noelrosiana. Nas antologias sobre o nosso modernismo, onde figuram tantas besteiras, não há uma única referencia a Noel, autor de poemas como TRÊS APITOS, FEITIO DE ORAÇÃO, ULTIMO DESEJO e outros.

Não compreendo como um homem inteligente como Mario de Andrade ou um critico da largueza de Alceu Amoroso Lima não tenham reconhecido no trovador de Vila Isabel um dos poetas mais legitimos do Brasil e vinculado, pela tematica e pelo desleixo formal ao modernismo de 22. Enquanto uma certa parte dos homens ditos serios enaltecia a obra tolinha e artificial de Catulo da Paixão Cearense, havia na Vila um rapazola que fazia o poema puro, em suas raizes mais legitimas, em analogia com os poetas gregos e os trovadores medievais. Quanto ao fato de a citara ou o alaude terem se transformado em violão nas mãos de Noel - é coisa que os tempos explicam.

Faço restrições à música de Noel. Creio que o valor de sua poesia prejudicou a alguns de nossos melhores compositores. Kid Pepe, por exemplo. Ou João de Barro, que das PASTORINHAS a GAROTA SAINT TROPEZ tem feito o fino em materia de musica popular. Prejudicou sobretudo a Vadico, autor dos chamados grandes sambas de Noel: CONVERSA DE BOTEQUIM, FEITIÇO DA VILA e outros. Noel servia-se da musica como coisa secundaria, dela aproveitava a transparencia e a mobilidade. Com ou sem o adjutorio da musica, Noel seria Noel.

A margem de sua poesia, reconheço em Noel - e aí está mais um traço que o identifica com o que há de melhor em nosso modernismo - uma preocupação social. Sociologicamente falando, NR trouxe alguns temas inéditos à nossa poetica; a fabrica por exemplo. Noel criou, principalmente, o carioca. O tipo, o estado de espirito, a linguagem, a bossa e o pato do carioca. O carioquismo já estava esboçado em Manuel Antonio de Almeida. Machado de Assis por pouco seria um carioca legitimo, mas o menino do morro do Livramento deu de ler os ingleses e escreveu o Dom Casmurro. E Lima Barreto pode ser citado como ancestral e precursor de Noel, podendo-se, com certo esforço, admitir que a diferença entre Lima Barreto e Noel Rosa é a mesma que distingue a poesia da prosa. De qualquer forma, o genial mulato de Todos-os-Santos preparou terreno para que surgisse o boemio de Vila Isabel. Basta ler-se os primeiros capitulos de POLICARPO QUARESMA para a confirmação.

Esses três nomes, Almeida, Machado e Lima, justificam o surgimento do tipo. E esse tipo foi Noel e sua obra. Depois dele, o carioca ficou catalogado sociologicamente. Carioca sem a greguice de Olavo Bilac, o qual nasceu no Rio por equivoco: devia ter nascido no Maranhão, onde há uma Atenas brasileira e onde nasceu Coelho Neto.

Menino de Vila Isabel, eu via Noel Rosa no botequim de Sousa Franco quando ia às missas na matriz de Lurdes. Pretendo escrever coisa mais seria sobre ele, um dia. E sobre Ari Barroso tambem.

Ari é melhor compositor que Noel. Os sambas de Vadico são os melhores de Noel - é preciso que se repita mais uma vez. Mas ninguem o superou na legitimidade de sua poesia. Um homem que horas antes de morrer faz um poema e rima urina com hemoglobina é realmente poeta, desses que santificam a vida e a morte. E redimem um povo.
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