|
Pergunta - Como o sr. escreve? Começa o livro escrevendo
à caneta e passa à máquina de escrever, usa
o computador direto, dita em um gravador?
Saramago - Eu escrevia numa máquina de escrever. Depois
de ter começado numa caneta, há muitos e muitos anos,
quando não havia sequer esferográficas - nunca usei
esferográfica, porque é um tipo de escrita que nunca
me agradou, uma escrita sempre igual - passei a escrever diretamente
à máquina, a partir de uma experiência jornalística
que tive em 72/73. Por circunstâncias alheias à minha
vontade eu estava a trabalhar numa editora e tive de ir trabalhar
para um jornal. Evidentemente eu nunca tive uma formação
jornalística, nem uma vocação jornalística,
digamos; foi alguma coisa que tive de fazer contra vontade. E aí
a regra mandava que se tinha de escrever à máquina.
Devo algumas coisas ao jornalismo. Com certeza, do ponto de vista
tecnológico devo isso. Como estava obrigado a escrever à
máquina, habituei-me de tal forma a isso que depois e até
hoje, seria completamente incapaz de escrever, enfim, com a velha
caneta a tinta permanente, e tampouco com a esferográfica,
porque me dá a idéia de que tudo escreve mais depressa
- ou que tudo escreve mais devagar do que aquilo que eu necessito.
A minha máquina era uma máquina velhíssima,
que tinha pelo menos 30 anos, uma Hermes Média, toda ela
metálica, que já não se fabrica mais, evidentemente.
Chegou a um tal estado de depauperamento físico, que quando
se avariava, o mecânico, por duas ou três vezes, teve
de fabricar peças para que ela pudesse continuar a funcionar.
Essa máquina de escrever deu o último suspiro com
o final da história do cerco de Lisboa.
Pergunta - E agora?
Saramago - Neste momento tenho um processador de texto, atualizei-me
tecnologicamente e estou diante duma inquietante dúvida:
do que serei capaz de escrever com essa figura nova, que já
não tem aquele ar familiar da minha máquina de escrever
e é uma coisa que tem umas luzes que acendem e apagam e tudo
o mais? Enfim, eu já me habituei e penso que vou continuar
com ele. Eu sempre tive a preocupação de folha limpa,
sem correções. Agora com as novas tecnologias isto
já não é assim, porque o texto está
sempre limpo. Eu levava tão longe esta preocupação,
que se me enganava, por exemplo com um erro de digitação
- em vez de pôr um "m" metia o "o", por
exemplo, na primeira, segunda ou terceira linhas -, minha dificuldade
em aguentar o texto sujo ia ao ponto de arrancar a folha e tirá-la
fora. A partir da décima linha ou coisa que o valha, já
admitia que me pudesse enganar, mas normalmente, e isso verificou-se
muito neste último livro. Se ao fim de um dia de trabalho
escrevia três ou quatro páginas, por exemplo, vinha
um segundo tempo, digamos, desse mesmo trabalho: corrigir essas
três ou quatro páginas e limpá-las de forma
que quando fossem juntar-se às outras já estivessem
limpas. Isto significa que quando eu cheguei ao fim do livro tinha
praticamente o livro escrito e revisto, apenas com algumas emendas
que eram necessárias. Tanto assim que nem foi preciso passar
outra vez a limpo para o entregar ao editor. Tenho, de fato, a mania
da página higiênica, embora ache perfeitamente fascinante
olhar para uma prova vista pelo Eça de Queiroz, por exemplo,
ou por Balzac, que são coisas perfeitamente alucinantes.
Há provas do Eça de Queiroz, e são já
as provas tipográficas, em que aquilo que ficou de 20 linhas,
por exemplo, é uma linha e meia, porque o resto foi todo
destruído, modificado. Eram tempos em que a mão-de-obra
era barata e o compositor tipográfico podia fazer e desfazer
e tornar a fazer, que o livro nunca saía caro.
Pergunta - Você precisa ter uma situação
psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em
que é só fazer um "clic" e a musa pinta
de lá de dentro?
Saramago - Eu penso que sofro apenas de um tipo de condicionamento:
sou incapaz de escrever fora de casa. Escrever num hotel ou coisa
assim. Há, realmente, colegas meus que vão acabar
um livro em um hotel. Sou um homem que tem uma rotina, sou muito
rotineiro a trabalhar. Não atuo por impulso, tenho consciência
de que a primeira coisa necessária para escrever é
sentar-se uma pessoa na cadeira e esperar. Eu não vou sentar
porque tenho o impulso de escrever, eu sento-me para que esse impulso
venha. É como quem tem que se pôr a jeito para que
as coisas sucedam. Provavelmente isto desilude, vai decepcionar
aquelas pessoas que têm do ofício do escritor uma visão
romântica, arrebatada, byroniana, se quisermos. Eu não
sou, quer dizer, não me vejo como um funcionário da
escrita.
Pergunta - Você projeta os seus romances? Ou seja,
você projeta a ação, você projeta o esquema
narrativo antes? Como é que você concebe os romances?
Eu sei, por exemplo, que essa história do cerco de Lisboa
já vem de alguns anos.
Saramago - A idéia inicial da "História
do Cerco de Lisboa" é de 72 ou 73. Já é
uma idéia, mas não é mais que uma idéia,
um cerco de Lisboa. Naquela altura nem sequer tinha algo a ver com
um cerco histórico. Era uma situação de cerco
um pouco fantástica. Depois deste tempo todo nem sou capaz
de ter uma idéia já muito definida disso. Essa idéia
foi de 72 ou 73. Desde então eu escrevi sete ou oito livros
com esse tema sempre vivendo cá dentro. Já se vê
que há um tempo para ter as idéias e há um
tempo para que elas possam ser realizadas. Mas como é que
as idéias surgem? É um bocado difícil. Eu não
tenho um plano, eu não fiz como, digamos, o grande mestre
Balzac, que fez um plano, numa certa altura de sua vida e depois
resolveu arregaçar as mangas e dizer agora vou fazer isto,
realizar este plano. Um livro nasce-me porque tem que nascer e não
porque eu tenha decidido antes.
Pergunta - Na entrevista que o sr. deu à Folha há
quinze dias, o sr. comentou a questão da força de
dois livros, a Bíblia e o Alcorão. Como escritor,
essa força que os livros têm sempre esteve na sua consciência
ou de repente foi uma surpresa?
Saramago - Eu acho que os livros não têm essa
força. Os livros não têm força alguma.
O que acontece é que um ou dois ou três tenham uma
força, que não lhes vêm do fato de ser um livro,
mas do fato de serem códigos. De serem códigos, de
serem leis, porque no fundo o Alcorão não é
outra coisa se não isso, a Bíblia não é
outra coisa se não isso e a Torá não é
outra coisa se não isso. Representa uma lei que tem duas
faces, uma lei que é lei humana, porque a Bíblia sabemos
muito bem que no Antigo Testamento é feita por uma sociedade
concreta, de homens concretos, que estão ali e que vão
ser regidos por aquelas leis. E há o lado que é o
da suposta revelação, a face divina. Dois livros ou
três tomaram realmente uma força exorbitante. Não
há nenhuma razão para que esses livros tenham mais
força do que qualquer outro livro. Objetivamente não
há, porque foram escritos pelas mãos de homens, não
com processadores de textos, nem com máquinas de escrever,
mas foram as mesmas mãos de homens que os escreveram. O que
pode ser assustador - porque o é de fato - é como
é que em nome dum livro se faz o que se faz. Se nós
pensarmos, tudo isto é assustador. É evidente que
esta súbita revelação, esta revelação
do escândalo, eu a chamo assim, é muito recente.
Pergunta - Você considera escrever um ato de que? Você
classificaria como o quê esse gesto extremo, coragem?
Saramago - Eu diria assim, desta maneira muito simples, um
ato de escrever é só um ato. Não é nada
mais do que isto. Não lhe chamo ato de coragem. Eu sou provavelmente,
escandalosamente, prosaico. Não acredito em vocação.
Só se pode ter - imaginando que a vocação exista
- vocação para as profissões que já
existem. Na verdade é a própria necessidade social
que vai criando as atividades e as profissões e depois nós
vamos para elas. Às vezes, dizemos que fomos para elas porque
não tivemos outra solução. Mas, também
podemos, somos capazes de dizer, ah, eu fui para isto pela minha
vocação. Mas qual vocação? Ninguém
pode ter a vocação para a informática antes
de a informática existir. Eu vou dizer uma coisa terrível.
A transverberação de santa Teresa de Jesus, santa
Teresa D´Ávila, o êxtase dela, e peço
desculpas se ofendo os crentes, acho que ela teve simplesmente um
enfarte do miocárdio. Quer dizer, a agudíssima dor
no coração que ela atribuía a Jesus, que a
estava transpassando com o raio fulminante do seu amor, não
era mais que um enfarte do miocárdio, porque eu presumo que
naquele século já havia enfartes de miocárdio.
Pergunta - Como você concilia o escritor e o comunista?
Como é que a coisa se processa agora no seu cotidiano?
Saramago - Eu acho extremamente interessante essa pergunta,
que é fatal, é uma pergunta que vem sempre: como é
que você sendo comunista e escritor, como é sua relação
com o partido e tudo isso e tal. Mas, é lamento, uma pergunta
feita como se um comunista fosse um caso particular da humanidade.
Essa pergunta nunca é feita a um escritor de direita. Nunca.
Não há memória de que a um escritor de direita,
mesmo que seja um reacionário completo, de alguém
perguntar-lhe que relação você tem, sendo escritor,
com o partido onde você está, que é a coisa
pior que há no mundo, de reacionarismo, fascista e tudo o
mais. A esse nunca se pergunta. Mas ao escritor que caiu em comunista
ou comunista que caiu em escritor, sempre a pergunta vem. Então,
eu direi que, tal como no conjunto dessas coisas já ficou
claro que tenho uma relação pacífica com as
coisas do meu trabalho e na relação que o meu trabalho
tem com os outros, que não há relação
mais pacífica que aquela que eu tenho com as minhas convicções,
em primeiro lugar, com o partido que consubstancia, digamos, assim,
essas mesmas convicções. Sou dentro e fora desse partido
- fora quando não estou em relação direta com
ele, dentro quando há o momento, quando estou em seu nome
-, digamos assim, há uma relação de perfeita
lealdade, de perfeita responsabilidade e de perfeita liberdade.
Quer dizer, eu escrevo exatamente o que quero, exatamente como quero,
sem nenhuma prévia determinação, orientação,
conselho, aviso, prevenção, arranjo todas as palavras
que quiserem, vindas direta ou indiretamente do meu partido. E por
uma razão imediata e simplicissima, é que eu sendo
convictamente aquilo que sou, também convictamente acho que
o meu partido não é competente em matéria literária.
Pergunta - Como é o seu diálogo com a crítica,
se é que existe ou lhe interessa?
Saramago - Há, realmente, uma certa crítica,
que se comporta, digamos, atravessando os passos às escuras,
onde se pode pensar porque não se vê o que lá
está, está vazio. Esse tipo de crítica leva
archote e escolhe um caminho, vai às escuras. Só vê
aquilo que o seu próprio archote vai iluminando. Essa é
a crítica que, no fundo, só vê o que está
no seu caminho, o que significa que só vê o que está
no caminho que escolheu. Se escolheu ignorar o resto, o archote
não chega lá. Não vai usar archote. Só
falará daquilo que o seu próprio archote iluminará.
Bom, isso aplica-se a qualquer país do mundo porque, infelizmente,
há muita crítica que se comporta desta maneira. A
relação com a crítica em Portugal, neste momento,
é bastante boa, provavelmente porque praticamente não
existe crítica. Há um outro jornal que faz recensões.
Quer dizer, algo que não é o que estamos a falar,
da crítica, crítica, crítica. Às vezes,
recensões feitas com inteligência, com sensibilidade,
feitas por pessoas que, enfim, tem alguma capacidade, mas que não
significa, de modo geral uma preparação clara, enfim,
quer acadêmica, quer não, mas que justifique exatamente
essa espécie de missão, de intermediários entre
o autor e o público. Já que, realmente, a grande função
da crítica é essa. Não é dar lições
ao autor, porque o autor não as quer. Não as quer
e ainda que quisesse recebê-las, não pode. Não
pode, o autor tem o seu caminho próprio e ficará muito
aborrecido se lhe disserem que seu livro é mau. Ele, aliás,
vai escrever outro livro mau pelas mesmas suas próprias razões.
Enfim, não há que fugir disto. Agora, para o público
é indispensável. Então, digamos, o que está
a acontecer hoje numa relação, a relação
entre o público e o autor em Portugal está a fazer-se
diretamente. Não passa pela mediação da crítica.
A crítica, enfim, vai falando. Os críticos que há,
que - repito - não são muitos, vão, enfim,
falando dos livros e tudo o mais, mas é realmente uma relação
direta entre público e autor.
Pergunta - Que é o ideal.
Saramago - Eu não diria que é o ideal, porque,
na verdade, embora eu tenha dito aqui algumas palavras, enfim, não
muito lisonjeiras para um certo tipo de crítica, a verdade
é que eu considero a crítica necessária. Eu
considero a crítica indispensável. |
|