São Paulo, quinta-feira, 8 de outubro de 1987


VINTE ANOS APÓS A MORTE DO 'CHE' SUAS
PREVISÕES SOAM COMO IRONIA


Clóvis Rossi

da Reportagem Local

Vista da perspectiva do tempo, soa hoje como cruel ironia a frase-slogan com a qual Ernesto Guevara, o "Che", atirou-se à luta guerrilheira na Bolívia: "Vamos criar um, dois, mil Vietnãs". Depois que oito balas tiraram a sua vida nas selvas da Bolívia, há exatos vinte anos, o que se criou, em parte como consequência das aventuras guerrilheiras inspiradas no "Che", não foram os "Vietnãs" por ele esperados, mas justamente o inverso: uma fileira de ditaduras militares, que chegaram, com o golpe na Argentina, em 1976, a tingir de verde-oliva todo o mapa da América do Sul, com as únicas exceções de Colômbia e Venezuela.

A ironia torna-se ainda mais cruel quando se sabe, pelo livro que o pai do guerreiro, Ernesto Guevara Lynch, escreveu sobre o filho ("Meu Filho, Che"), que ele aprendera muito cedo que o potencial de luta revolucionária nos países do subcontinente era, no mínimo, tênue, quando não inexistente.

De fato, o pai conta que o "Che" estava na Guatemala, em 1954, quando foi derrubado o governo "progressista" do coronel Jacobo Arbenz, em uma operação financiada pelo governo norte-americano. "Na Guatemala, era necessário lutar e quase ninguém lutou, era necessário resistir e quase ninguém quis fazê-lo", concluiu Guevara, conforme a narração de seu pai.

Essa frase poderia ser repetida tanto para as duas experiências guerrilheiras do "Che" (Congo Belga, hoje Zaire, e Bolívia) como para os demais movimentos do gênero que se espalharam pela América Latina especialmente a partir dos anos 60. As únicas exceções: a própria Cuba e a Nicarágua, mas, neste último caso, houve circunstâncias muito peculiares para o triunfo revolucionário, entre elas a adesão de importantes setores empresariais à luta contra a ditadura da família Somoza.

Na África, Guevara passou cerca de vinte meses, desde seu desaparecimento de Cuba (15 de março de 1965) até entrar clandestinamente na Bolívia (novembro de 1966). E a luta armada que conduziu no Zaire naufragou da mesma maneira que a guerrilha boliviana e com idêntico resultado: a entronização no poder de Mobutu Sese Seko, até hoje ditador e acusado de presidir um dos governos mais corruptos do continente.

Na Bolívia, Guevara morreria por ordem do presidente de turno, o general René Barrientos, comandante de uma das muitas ditaduras que pontilham toda a história boliviana. E a Barrientos, sucederam-se outros generais-ditadores, em uma sequência que seria interrompida não pela luta armada mas pelas eleições que levaram o centro-esquerdista Hernán Siles Zuazo ao poder.

O exemplo do "Che", entretanto, não morreu com sua morte física. Na Argentina, no Uruguai, no Brasil, no Peru, em vários países da América Central, a aventura guerrilheira ressurgiu, quase sempre com uma característica diferente da original: em vez dos "focos" guerrilheiros plantados na área rural, preferiu-se as cidades como centro preferencial de ação, tática, por exemplo, dos mais ruidosos movimentos guerrilheiros do subcontinente (os "Montoneros" argentinos e os "Tupamaros" uruguaios).

Menos impactantes foram os movimentos que seguiram a lógica da guerrilha rural, como a tentativa do neotrotskista Exército Revolucionário do Povo (ERP), da Argentina, que criou seu foco na pobre Província de Tucumán, e o núcleo do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que levou a luta nas remotas regiões banhadas pelo rio Araguaia, no também pobre norte brasileiro.

Na selva ou na cidade, todos eles terminaram como o "Che": dizimados e destroçados. Só na América Central é que a guerrilha prosperou, a ponto de vencer na Nicarágua e chegar a um virtual empate em El Salvador, que, agora, está sendo discutido na mesa das negociações.

Equívoco

É obviamente impossível saber que análise faria hoje o "Che" das causas de suas muitas mortes, encarnado em guerrilheiros de diferentes sotaques. Uma ponta desse mistério, entretanto, foi levantada por ele próprio, em conversa com o então capitão boliviano Gary Prado, o oficial que o prendeu e, recentemente, editou o livro "A Guerrilha Imolada", no qual conta como foram os últimos momentos do guerreiro.

Segundo Gary Prado, Guevara admitiu que se equivocara ao escolher a Bolívia como foco dos futuros "mil Vietnãs". Gary Prado concorda: o erro principal de Guevara foi a mistificação sobre o potencial revolucionário da Bolívia.

Mais do que mistificação, foi um equívoco total: ao plantar homens e armas nos confins de um país miserável, o "Che" confiava cegamente na lógica: se a grande maioria da população vivia em condições sub-humanas era absolutamente natural que se rebelasse assim que a vanguarda revolucionária se instalasse no país.

A lógica não funcionou: os camponeses miseráveis, em vez de aderir em massa à guerrilha, delataram o "Che" e seu grupo de cerca de cinquenta guerrilheiros, entre cubanos, peruanos e bolivianos, facilitando o cerco do Exército, até a captura do líder.
Guardadas as proporções, a história se repetiria em muitos outros "focos" que outros "Ches" tentaram implantar na América Latina. Mesmo na Nicarágua, a luta armada só ganhou fôlego para a vitória quando o assassinato, em 1978, do jornalista Pedro Joaquim Chamorro, conservador mas adversário da ditadura Somoza, jogou importantes fatias do empresariado e da burguesia na maré montante oposicionista.

Em El Salvador, onde não se repetiu o fenômeno nicaraguense, a guerrilha cresceu, mas não o suficiente para chegar à vitória, até porque o governo norte-americano, ao contrário do que ocorrera na Cuba dos anos 50 e na Nicarágua do final dos 70, reforçou substancialmente o Exército local. Deu o empate que levou os guerrilheiros à mesa de negociação.

Ao morrer, o "Che" não tinha, como é óbvio, esse retrato do subcontinente. Tanto que disse ao capitão Gary Prado: "Você precisa se dar conta de que todos nós, latino-americanos, estamos numa luta continental, onde muitos já morreram e muitos mais morrerão."

É possível, mas boa parte dos que tentaram ser "Ches" trocaram o fuzil pelo paletó e gravata e desfilam suas idéias não nas selvas mas nos parlamentos latino-americanos, como o brasileiro José Genoíno e o venezuelano Pompeyo Marques, entre tantos outros.
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