São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1967
Neste texto foi mantida a grafia original

"ANTIMEMORIAS" DE ANDRÉ MALRAUX:
UMA REPORTAGEM DE NOSSO TEMPO


Esperado ansiosamente em todos os paises, apareceu esta semana em Paris, com lançamento de gala pela "Gallimard", o livro de André Malraux, "Antimemoires". Acontecimento ao mesmo tempo politico e literario, o volume tem o seu ponto alto de interesse no relato dos encontros de Malraux com alguns homens do seu tempo, com algumas idéias e com a morte.

Não se esperem confidencias nestas 600 paginas compactas, mas Malraux mesmo adverte: "O homem que vai se encontrar aqui é alguem que se põe de acordo com as questões que a morte coloca à significação do mundo". Com efeito, a palavra "morte" aparece mais de mil vezes no livro com o rumor de suas interrogações. Malraux atingiu o momento da pura reflexão metafisica.

Após "L'Espoir", as "Antimemoires" são o seu primeiro livro. Vinte anos se passaram e o que se teme é não reconhecer no ministro da V Republica o autor dos "Conquérants". Mas todos os que amaram esse livro de juventude lembram-se hoje da interrogação de Garine: "Alem das memorias, que outro livro vale a pena escrever?" Malraux-Garine porém hoje tem quarenta anos mais e se o ministro de de Gaulle ainda toma o caminho da Asia é simplesmente por ordem medica.

O sabio elefante

Na pagina de rosto do volume Malraux escreveu: "O elefante é o mais sabio de todos os animais, o único que se recorda de suas vidas anteriores; por isso ele permanece tranquilo durante tanto tempo: medita". Trata-se de um texto budista. Não se pode deixar de recordar que há dez anos, quando Budapeste gemia sob a revolução frustrada e as chamas crepitavam na Argelia, Malraux publicava o primeiro volume de "La Métamorphose des Dieux". Quando de Gaulle o convidou para participar do governo, imaginou que chegara sua hora de ir para a Argelia. Engano: confiaram-lhe o Louvre. Ele nunca saira dos museus, mas desta vez era chamado a ser guardião.

Nas "Antimémoires" não diz afinal nada sobre si mesmo. "Quase todos os escritores que conheço, afirma, amam sua infancia, eu detesto a minha. Aprendi pouco e mal a me criar a mim mesmo, se criar-se é se acomodar neste albergue sem estradas que se chama a vida. Eu soube agir algumas vezes, mas o interesse da ação, salvo quando ela se eleva à Historia, está naquilo que se faz e não naquilo que se diz. Já nada me interessa".

Algumas paginas alem, a composição, em forma de "fuga" musical, se abre com a morte do pai, que, como se sabe, se suicidou. Causa espanto ver que essas paginas são a transposição romanesca que Malraux fez desse suicidio em "Les Noyers de l''Altenburg", o ultimo de seus romances publicado inacabado em 1948. O texto é identico.

"O que me interessa em qualquer homem, diz Malraux, é a condição humana; em um grande homem interessam-me os meios e a natureza de sua grandeza; em um santo, o caracter de sua santidade. E alguns traços que exprimem menos um carater individual do que uma relação particular com o mundo".

O autor depois que nos leva ao Egito: "Aqui só espero reencontrar a arte e a morte. É raro que um livro de memorias nos relate o encontro do autor com as idéias que vão penetrar e conduzir sua vida... Ora, em seu espirito - no espirito da maior parte dos intelectuais - há idéias cujo encontro é tão presente quanto o encontro de seres... E eu reencontrei no Egito aquelas que, durante anos, ordenaram minha reflexão sobre a arte. A primeira nasceu da Esfinge..."

Longa meditação sobre a Esfinge. De suas patas passa-se a Versalhes, de Versalhes ao quarto em que Hitler dormia em Nuremberg. Desce-se, sobe-se, volta-se, e após todas as dificuldades possiveis, assuntos, respostas, exposições, episodios, o leitor se reencontra no Museu do Cairo, no Mexico, no Senegal, anedotas e lirismo fundidos, reportagem e fabulas intercruzadas, torrente da frase carreando misturados o ouro e a moeda falsa...

A Rainha de Sabá

Chega o momento de fazer escala em um dos raros portos da memoria em que o autor se permite mostrar-se jovem. Há trinta e tantos anos ele pôs na cabeça que iria descobrir o palacio da rainha de Sabá no deserto africano de Aden. Mermoz e Saint-Exupéry quiseram servir-lhe de piloto. A "Aéropostale" vetou e Corniglion-Molinier é que decolou o seu avião de Djibuti.

A expedição deu em nada, mas na volta sucedeu o primeiro encontro de Malraux com as forças cosmicas, quando o aviãozinho foi alcançado por um ciclone. O sopro do furacão, a face livida do medo, a enorme vida fabulosa que se deflagra, a massa plumbea das nuvens ocupam cinco paginas infladas do livro. Acalmam-se todavia e Malraux murmura: "As forças cosmicas abalam em nós todo o passado da humanidade".

Essa experiencia do "retorno à terra", vivida pela primeira vez é pretexto para uma das reflexões mais belas do livro:

"As pessoas continuavam a existir. Viviam enquanto eu descia ao cego reinado. Havia os que pareciam contentes de permanecer juntos na semi-amizade e na semitepidez, e tambem os que com paciencia ou veemencia tentavam extrair de seu interlocutor um pouco mais de consideração; e ao rés do chão todos os pés extenuados, e sob as mesas algumas mãos, com os dedos enlaçados. A vida. O teatro da terra iniciava a grande doçura do começo da noite, as mulheres diante das vitrinas com seu perfume de ociosidade... Não voltarei, em hora semelhante a esta, para ver a vida humana surdir pouco a pouco, como a nevoa e as gotas cobrem os vidros gelados - quando eu fôr realmente morto?"

Como nos contos das "Mil e uma Noites" as historias encadeiam-se e desprendem-se, pululantes de aves, de estatuas, de perfumes e de sonhos... Aparece o Negus sentado num sofá das "Galeries Lafayette"... o ruido das palmeiras do Ceilão após a chuva... os abutres de Lahore... os macacos de Benares, os bramanes ao pé do Ganges, enquanto um asceta hindu dança entre as fogueiras rituais...

De repente aparece de Gaulle. Ele é o terceiro encontro basico de Malraux, após a Esfinge e o cosmos desencadeado.

De Gaulle

Sua primeira entrevista ocorreu em maio de 1945 em Paris, na epoca em que Malraux era membro do comitê diretor do Movimento de Libertação Nacional (M.L.N.), que reunia as organizações de resistencia não-controladas pelos comunistas.

Todavia, no comitê, um terço dos membros pertencia secretamente ao PC, e pretendia forçar um voto que fusione o Movimento com suas organizações de esquerda. Em um discurso no congresso do M.L.N. Malraux se opõe à manobra e a fusão é derrotada por 250 votos contra 119.

"O Partido Comunista não mais iria dispor da Resistencia contra o general de Gaulle, diz Malraux. E continua: "Mas durante minha volta ao "front", através do campo coberto de neve, eu pensava nos meus camaradas comunistas da Espanha, na epopéia da criação sovietica malgrado a GPU, no exercito vermelho, nos camponeses de Corrèze, sempre dispostos a nos acolher apesar do perigo, por causa desse Partido que agora só parecia acreditar nas vitorias ganhas com a camuflagem."

Uma tarde de maio êle está em Paris e um amigo chega num automovel militar. Na soleira da porta pergunta: "O general de Gaulle vos manda perguntar em nome da França se quereis ajudá-lo".

"Fiquei um pouco espantado, diz Malraux. Não muito. Tenho a tendencia a me acreditar util."

Encontram-se os dois homens no Ministerio da Guerra e Malraux registra algumas frases do longo dialogo, ou antes, monologo de de Gaulle:

"Como muitos outros, eu me casei com a França...

"O liberalismo não é uma realidade politica, é um sentimento..."

"No dominio da Historia, o primeiro fato capital dos ultimos vinte anos, a meu ver, é o primado da nação diferente do que foi o nacionalismo..."

De Gaulle fala do fato revolucionario, forma provisoria tomada pela reivindicação da justiça, "resultante sem duvida do enfraquecimento das grandes religiões."

"Não se engane, diz Gaulle, a França não quer mais a Revolução. A hora já passou..."

O que porem o impressionou neste encontro foi "uma distancia interior... distancia singular porque ela não aparecia somente entre de Gaulle e seu interlocutor, mas tambem entre o que êle dizia e o que êle era. Eu já havia encontrado essa presença intensa que as palavras não exprimem. Não porem entre os militares, entre os politicos, ou entre os artistas: entre os grandes espiritos religiosos, cujas palavras afavelmente banais parecem não ter relação com sua vida interior."


Charles e Victor

"Conhecer um homem hoje, afirma, quer sobretudo dizer conhecer o que êle tem de irracional, o que êle não controla, o que destruiria a imagem que êle faz de si. Nesse sentido eu não conheço o general de Gaulle. Um longo comercio com êle todavia me tornou familiares alguns de seus processos mentais e sua relação com o personagem simbolico que se chama de Gaulle em suas "Memorias"; ou mais exatamente, o personagem de quem êle escreveu as "Memorias" nas quais Charles não aparece nunca."

Malraux desenvolve a idéia do desdobramento, que atinge a maior parte dos homens da História e os grandes artistas.

"Charles é modelado pela vida e de Gaulle pelo destino, como Victor é modelado pela vida e Hugo pelo genio. Mas a obra: destino ou genio, é chamada por qualquer coisa que lhe preexiste e, como a vida, encontra a conjuntura: a obra-prima é a garantia do genio, o genio não é a garantia da obra-prima."

Esses jogos de paradoxos são um dos "tics" do grande escritor. Ele escreve igualmente: "Se não existe cultura sem lazeres, há certamente, lazeres sem cultura".

Nehru e Mao

Na pagina 366 Nehru morre. Malraux porém conta seu encontro com ele em 1961: "Para mim, a historia do seculo era, há quarenta anos, a da maré montante comunista e a da substituição da America à Europa. Para ele, era a da descolonização, e, principalmente, a da libertação da Asia". Na longa conversa com o lider indiano, Malraux afirma-lhe que obteve um pequeno sucesso no conselho de ministros declarando que era o único ministro que sabia ignorar o que era a cultura.

Longa meditação sobre o Oriente e o Ocidente, lenta penetração da India: "Há, no pensamento da India, alguma coisa de fascinante e de fascinado que deriva do sentimento que ela nos dá de subirmos uma montanha sagrada, cujo cimo se afasta sempre: avançamos na obscuridade ao clarão da tocha que ela ergue."

Como é seu metodo habitual nas "Antimémoires", Malraux enxerta aqui a historia do tenente-coronel André Malraux, conhecido como coronel Berger, chefe militar da região de Toulouse, ferido, aprisionado, fuzilado em 1940. Não, era um simulacro de execução. Uma vez mais estamos diante de um capitulo de "Les Noyers de l'Altenburg" e ficamos sem saber se o memorialista romantiza ou se o romancista memorializava...

A entrevista com Mao Tse-tung se alonga por trinta dessas paginas. Pela primeira vez alguém "vê" Mao e o faz visto, ouve-o e faz com que o ouçam. Tudo está lá: o ambiente, a figura, o pensamento, a visão historica, a dimensão do homem, sua paixão, sua solitude. E a precisão dos termos tambem, estenografados: "O revisionismo sovietico é uma apostasia" diz Mao. E prossegue: "A humanidade abandonada a si mesma não restabeleceria necessariamente o capitalismo... mas restabeleceria a desigualdade"

E depois: "Lembre-se de Kosygin no 23.o Congresso: "O Comunismo é a elevação do nivel de vida". Muito bem! Nadar então é simplesmente vestir um calção de banho!"

A gloria de ser Malraux

Que alguém se orgulhe de ser ministro após ter sido Malraux é incompreensível. Entretanto, como hoje se diz "Napoleão e Stendhal", no futuro provavelmente se dirá "De Gaulle e Malraux".

Todavia, a observação é de Paul Valéry, quem teria tido coragem de profetizar a Napoleão que a posteridade iria aproximá-lo de Henri Beyle?

Quando Malraux se encontrou com Nehru na India, este, sorrindo, saudou-o: "E você virou ministro..." Malraux respondeu:

"Mallarmé contava que uma noite ouviu os gatos conversando no telhado. Um gato negro, inquisidor, perguntou ao gato do poeta: E você, o que é que faz? Eu, respondeu, tento ser o gato de Mallarmé".

Malraux, porém, é preciso que justiça seja feita, não escreveu um livro para endeusar de Gaulle. Ele, por outro lado, sabe que o "homem não atinge o fundo do homem" e em um dos livros que mais leu, presente nas paginas de "Antimémoires", o Bhagavad-Gita, livro sagrado da India, deve ter aprendido com o principe Arjuna o sentido da pergunta: "Para que serve o poder, para que serve a alegria - para que serve a vida?"

J. G. N. M.
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