São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1968
Neste texto foi mantida a grafia original

QUANDO OS CAVALOS CHORAVAM

Lenita Miranda de Figueiredo

Esta singular historia já foi publicada em alguns livros que falam dos pitorescos tempos de "jazz" em New Orleans. Mas foi o proprio Danny Barker que nos contou quando visitamos o Museu de Jazz em N.O., em 1967:

- "Você já viu alguma vez um cavalo chorar? Não? Pois toda New Orleans viu os dois cavalos de Emile Labat, o empresario funebre mais famoso da cidade, chorarem. Meu avô trabalhava para ele e contou que os cortejos funebres eram conduzidos por um ancião negro vestido com uma farda de brocado doirado e que se chamava Joe "Never Smille" (Joe que jamais sorri).

Com alguns dolares a mais Labat dava ao cortejo um aspecto mais solene e até ornamentava os cavalos com uma cobertura ricamente bordada, contratava varias orquestras de jazz das mais famosas. Até que um dia, no enterro de um negro abastado, os cavalos de Emile Labat choraram.

O acontecimento foi tão comovente que os acompanhantes e até os musicos contratados para tocar no enterro choraram. O acontecimento correu os bairros mais famosos de N.O. e a agencia funeraria de Labat tornou-se a mais disputada na epoca. Dizem que até o proprio Labat, acostumado, por força do seu trabalho, às cenas mais compungentes da morte e de ter resistido a elas como um verdadeiro agenciador funebre, tambem chorou.

Mas a verdade é que eu nunca engoli essa historia de cavalo chorar lagrimas de crocodilo e fui até New Orleans falar com meu avô. Encontrei-o furioso com "Joe Smile":

"Imagine só - disse-me ele - que eu afinal descobri tudo sobre aquela historia do choro dos cavalos. O espertalhão do Joe levava sempre com ele uma garrafa com suco de cebola. Ele amassava as cebolas nas horas de folga e engarrafava o suco. Minutos antes do enterro ele borrifava os cavalos com o preparado e você então pode compreender como aqueles pobres animais choravam para valer. Emile Labat ficou furioso e teria descido umas lenhadas nas costas do velho Joe se o pegasse, pois amava os animais e sobretudo aqueles dois cavalos que eram o seu ganha pão: mas nunca o encontrou. Contam que essa foi a unica ocasião em que durante a fuga, Joe "Never Smile" sorriu.

Tempos bons aqueles em que havia muitos enterros num dia só. Ganhavamos três ou quatro dolares para tocar nos cortejos. Quase todos os habitantes de New Orleans pertenciam a uma porção de associações funerarias como a Masons, Odd Fellows, Taulane-Clube, Zoulous Club, Vidalia, Veterans, Charity etc. Mas a maior parte das vezes era o proprio defunto que deixava encomendado e pago o tipo de enterro de sua predileção. O que todos pediam era muito jazz e muita animação.

Outra coisa importante para o musico de jazz era gastar o seu pagamento chamado "fun money" em memoria do falecido, o que era feito como um ritual sagrado.

Por isso há tantos cemiterios famosos em New Orleans, porque a morte é considerada importante para os seus habitantes. É a salvação, a libertação. Nas grandes enchentes do Mississipi muitos cadaveres boiavam à tona das aguas e era preciso pescá-los para reenterrá-los. Muitos se perdiam e era preciso recompor as ossadas com muita cautela. O tamanho dos ossos ajudava muito a recompor um esqueleto. Uma familia, certa vez, reclamou que o defunto morrera perfeito e não podia ter um femur grande e um pequeno. Mas a verdade é que muitas missas foram rezadas em memoria daqueles que tiveram seus ossos misturados e colocados em uma unica urna a fim de que todos pudessem orar pelos seus mortos em habitação eterna e coletiva.

O velho Bunk Johnson poderia contar muitas historias de arrepiar os cabelos. E as contava logo após tocar nos enterros, quando então se bebia e fazia jazz em homenagem ao morto. Black Benny, Buddy Petit, Kid Rena e, outros, faziam ponto nos bares mais proximos dos cemiterios. E ao toque de reunir da corneta, saiam dos bares e formavam nos cortejos com seus instrumentos.
Os "barrel-houses" (cabarés dos bairros negros pobres) achavam-se sempre cheios de musicos a espera de enterros. E os maiores do jazz eram os seus mais constantes frequentadores.

A historia dos cavalos que choravam e o nome de Emile Labat ficaram famosos na vida de New Orleans. Certa vez, contou Louis Armstrong, tentaram repetir a façanha de Joe "Never Smile". Mas ninguém tinha a classe do negro velho para preparar suco de cebola lacrimogeneo.

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