|
|
|
|
|
São
Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 1948
|
|
|
|
|
|
Neste
texto foi mantida a grafia original
|
|
|
MONTEIRO LOBATO E "FANTASIA"
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Cedemos
hoje o espaço de nossa seção à publicação
de um original de Monteiro Lobato, esse homem que morreu lamentando
não haver escrito mais para as crianças. O inedito
que se segue conquanto não tenha data, e esteja datilografado,
deve ter sido redigido em setembro de 1941, supomos para o numero
5 da revista "CLIMA", editado em outubro daquele mesmo
ano, e quase inteiramente dedicado ao estudo e à critica
do grande filme de Walt Disney, com trabalhos de Oswald de Andrade,
Sergio Milliet, Rui Coelho, Francisco Luis de Almeida Sales, Flavio
de Carvalho, Paulo Emilio de Sales Gomes e Plinio Sussekind Rocha.
Queremos crer tenha sido Lobato convidado pela direção
de "CLIMA" a externar seu pensamento sobre o filme para
figurar naquele mesmo numero da revista e não chegou a
entregar a Lourival Gomes Machado a lauda e meia que escrevera.
Elas ficaram entre os papéis do autor e, graças
a Edgard Cavalheiro, herdeiro de todo o arquivo de Lobato, podemos,
hoje, apresentá-las a nossos leitores, respeitando ortografia
e redação:
|
|
|
"FANTASIA deixou-me estarrecido. É a expressão.
Estarrecido. E embaraçado para definir. Tudo tão novo,
tudo tão inedito, que o vocabulario critico usual mostra-se
impotente. Disney é um tipo novo de genio e sua arte é
uma arte total e absolutamente nova, jamais prevista nem pelas mais
delirantes imaginações. Até o aparecimento
de Disney, o cinema não passava duma conjugação
do teatro com a fotografia. Era uma representação
teatral fotografada em todos os seus movimentos, côres e sons.
Disney creou a grande coisa nova; a conjugação da
fotografia com a imaginação.
"O desenho genial de Disney permite que todas as creações
da imaginação possam ser fotografadas e projetadas
com a riqueza dos sonhos. Uma arte, pois, absolutamente nova e jamais
prevista.
"Tudo quanto é absolutamente novo desnorteia a rotina
do nosso cerebro. Ficamos sem palavras para julgar. O vocabulario
humano é um conjunto de convenções que refletem
experiencias muito repetidas. Quanto uma experiencia sensorial totalmente
nova nos defronta, o velho vocabulario existente mostra-se necessariamente
inadequado.
"Diante da dansa dos cogumelos chineses, das manobras da fada
do orvalho, da tradução em desenho do pensamento musical
dum Stravinsky ou dum Beethoven, da prodigiosa satira à Dança
das Horas de Ponchielli, do jogo de dois extremos, como a bolha
e o elefante, da disneyzação da familia de Pegaso
e do clan dos centauros, a atitude do espectador torna-se comica.
Temos que abrir a boca e conservar-se mudos. Tudo quanto tentarmos
dizer com as convencionais e velhas palavras da admiração
tornam-se grotescas.
"Um meu visinho de poltrona tentou comentar o anjinho que cerrou
as cortinas quando o casal de centauros amorosos se recolheu para
o amor - o anjinho de costas cujo trazeirinho nu foi virando coração
- e tive de pedir-lhe silencio.
"Não fale.
"Falar as velhas palavras diante de tal mimo de criação
artistica é quebrar grosseiramente algo prodigiosamente lindo,
é furar com ponta de prego enferrujado uma irisada bolha
de sabão.
"Não fale. Não comente. Não conspurque.
Limite-se a extasiar-se. Diante de "disneas" como o do
elefante atrapalhado com a bolha, do anjinho que transforma nadegas
em coração, da peixinha que se mantem de rosto impassivel
de tão conciente da prodigiosa beleza da sua dansa aquatica,
do enlace de caudas quando a mimosa centaura se aninha no peito
do seu centauro amoroso, falar é profanar.
"Walt Disney é a suprema compensação dos
horrores que a guerra está trazendo para a humanidade. Há
a guerra, sim. Há o bombardeio aereo às cegas. Há
o estraçoamento dos inocentes. Há o inferno. Mas a
humanidade salva-se produzindo neste momento tragico a altissima
compensação dum Disney, o Grande Creador.
"Ah, se fosse possivel um novo fiat! Re-crear o mundo! Com
o material que natureza nas fornece produzir um mundo novo, formas
novas de vida - e se fosse Walt Disney o encarregado da transmutação!
Que suprema, que prodigiosamente bela uma nova Creação
Cosmica assinala pela mais alta expressão do genio humano
- Walt Disney!
"Inania verba ... Que impotencia a nossa ao tentar dizer de
Disney com esta coisa grosseira que é a palavra escrita!
"Nós, gente de hoje, somos trogloditas da Pedra Lascada
diante dessa creatura que nos entremostra maravilhas dum ainda remoto
futuro.
"Disney, Disney, os trogloditas te saudam.
MONTEIRO LOBATO" |
|
|
| |