São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1969
Neste texto foi mantida a grafia original

A CASA ONDE ANNE FRANK ESCREVEU SEU DIARIO AGORA É CENTRO MUNDIAL DE JOVENS


Amsterdã - A campainha soa, a mesma campainha que em certa ocasião encheu de terror os corações de oito judeus que viviam escondidos dos nazistas.

Hoje, no entanto, o toque dessa campainha significa um alegre "bom dia" em muitos idiomas, vindo da rua ensolarada. É outro grupo de turistas que visita a casa de Anne Frank.

O edificio, que data do seculo XVII, o de numero 263, da rua Prinsengracht, em um tranquilo canal de Amsterdã.

Dali, há 25 anos, o judeu Otto Frank e sua familia, os judeus Van Daans e o dentista Dussel, foram arrastados para os campos de exterminio, depois de ter sido denunciado o local em que se ocultavam.

Sómente um dos oito participantes dessa tragedia voltou de Auschwitz. Otto Frank, atualmente com 70 anos. Desde então vem procurando realizar, os elevados ideais expressos por sua filha Anne, de 15 anos, em seu diario.

Otto trabalha na fundação "Anne Frank", que tem sua sede central na casa onde a familia se escondeu, durante dois anos, em uma divisão secreta.

Contra a tirania

O local é agora um centro internacional da juventude e atrai pessoas de todas as nações, a cada verão para a celebração de uma grande conferencia (a deste ano realizou-se de 20 a 26 de julho). O lema da fundação é lutar contra os elementos e membros da sociedade que pretendam implantar a opressão, a tirania e os preconceitos.

Otto Frank emigrou de sua cidade natal, Francforton-Main, para a Holanda, em 1933. Quando os alemães invadiram os paises baixos, em 1940, ele preparou um local secreto para esconder sua familia, atrás de sua fabrica. A velha casa em pessimo estado ajustava-se inteiramente a este proposito. Estendia-se profundamente para os fundos, tinha a frente muito estreita e estava completamente cercada por outros edificios.

A familia mudou-se para esse esconderijo quando Margot, a filha mais velha de Frank recebeu aviso de deportação para a Alemanha. Os Van Daans, com seu filho Peter, e Dussel, também ameaçados de deportação, foram levados para o refugio um pouco depois.

Aí viveram uma vida de constante esperança e temor até 4 de agosto de 1944, quando os alemães os retiraram pela força. Perceberam então que haviam sido traidos. No mesmo dia em que Bruxelas foi libertada dos alemães, no mês de setembro, eles partiram no ultimo comboio de "gaiolas" de gado, rumo ao leste.

Embora Anne tenha sido apenas um dos seis milhões de judeus vitimas da segunda guerra mundial, seu destino comoveu os corações de todo o mundo. O diario por ela deixado foi impresso em todos os idiomas civilizados. Quando terminou, Anne Frank tinha apenas 15 anos.

A casa

Os que visitam agora a casa de Anne Frank sobem as estreitas escadas caracteristicamente holandesas, situadas na parte anterior, empurram o fundo falso de uma estante que só pode ser aberta por dentro e entram no esconderijo.

Suas paredes têm a mesma cor escura dos locais onde familias de judeus estiveram ocultas durante anos. As rotulas das janelas eram fechadas para não deixar entrar a luz do diminuto oasis formado pelo jardim situado na parte posterior. As tabuas usadas durante a guerra, para impedir que o menor fio de luz passasse para fora, estão ali empilhadas contra a parede.

Aqui fica o quarto dos pais de ANNE, onde os amigos da familia encontraram, mais tarde, as paginas do diario, escrito em folhas arrancadas de cadernos escolares, espalhadas pelo chão.

Numa das paredes há um mapa tirado de uma revista e preso com alfinetes. Nesse mapa OTTO FRANK assinalava, a cada dia, o avanço dos aliados na EUROPA, junto ao mapa, sinais de lapis com datas marcadas, formam um registro: a altura das crianças em cada aniversario passado no cativeiro.

O quarto que ANNE compartilhava com DUSSEL tem o tempo marcado de forma estranha. Os recortes de uma revista mostram precisamente o momento em que o relogio se deteve para ela: GRETA GARBO, em sua mais recente pelicula, "NINOTCHKA"; DEANNA DURBIN em "FIRST LOVE"; RUDY VALLE com SONJA HENJE, a familia real holandesa, a princesa ELIZABETH DE YORK, de 12 anos, agora rainha da Inglaterra. E junto às fotografias já descoloridas das antigas estrelas do cinema, alegres cartões postais: alguns arbustos, suculentos morangos sobre folhas verdes.

A porta seguinte é a do banheiro, com suas peças enferrujadas e canos arrebentados, usado apenas à noite, quando as oficinas do andar inferior estavam fechadas.

O quarto dos Van Daans fica no pavimento superior, onde todos viviam seguros durante o dia. Uma pequena cozinha escurecida, uma pia e, do outro lado da porta o diminuto quarto onde Peter Van Dans dormia, junto à outra escada que levava à despensa, na parte superior.

Aqui há uma pequena janela quadrada - a unica que se podia abrir sem perigo durante o dia e onde Annie costumava passar suas melhores horas. Dessa janela a menina podia ver o Westerked e ouvir o carrilhão de sua torre. Podia ver tambem as barcaças que subiam e desciam lentamente pelo canal. O carrilhão continua funcionando e as barcaças deslizando lentamente, como há 25 anos.

SS chorou

Que dizem os turistas alemães diante de tudo isso?

"Em geral não dizem nada" - informou um membro da Fundação que serve de guia. "Olham para tudo e se afastam. Alguns dos mais velhos mostram-se um pouco perturbados. Certa ocasião esteve aqui um ex-oficial SS que se pôs a chorar. Mas foi a unica vez em que isto aconteceu."

Os jovens, da mesma forma que os holandeses de quinze anos, encaram tudo como fatos historicos. Na verdade, para eles, tais acontecimentos são apenas estoria. Não se sentem envolvidos neles e, alem de tudo, é impossivel continuar vivendo no passado."

Os responsaveis pela cidade de Amsterdã o pensam da mesma forma. O ultimo quarteirão do bairro judeu está sendo demolido para permitir obras de melhoramentos da cidade.


Folha de S.Paulo - sábado, 4 de maio de 1985

Trechos do diário de Anne Frank:

"Com meu diário, quero dizer que pretendo ir mais adiante; não posso me imaginar vivendo como minha mãe ou a sra. Van Daan e todas aquelas mulheres que cumprem suas obrigações e mais tarde são esquecidas. Eu preciso ter algo mais que um marido e filhos, algo a que possa me devotar totalmente. Quero continuar vivendo depois da minha morte..." (20 de junho de 1942)

"Preciso tornar-me boa através de meu próprio esforço, sem exemplos e sem bons conselhos. Então, mais tarde, deverei ser bem mais forte. Quem além de mim lerá estas frases? A não ser comigo, com quem posso contar? Um sem-número de amigos foram para um triste fim. Ninguém é poupado, cada um e todos se juntam na marcha da morte." (20 de outubro de 1942)

"Devo ficar pensando sobre todos os que estão morrendo, seja o que for que esteja fazendo? E se eu quero rir de alguma coisa, deveria parar imediatamente e sentir-me envergonhada por estar contente?"(20 de novembro de 1943)

"Não acredito que apenas os homens de projeção, os políticos e os capitalistas sejam culpados pela guerra. Não, o homem comum também é... Há uma urgência nas pessoas em destruir e matar, e até que toda a humanidade, sem exceção, passe por uma grande mudança, as guerras se sucederão." (3 de maio de 1944)

"É realmente inexplicável que eu não tenha deixado de lado todos os meus ideais, porque eles parecem tão absurdos e impossíveis de se concretizarem. Mesmo assim eu os conservo, porque ainda acredito que as pessoas são boas de coração. Simplesmente não posso edificar minhas esperanças sobre alicerces de confusão, miséria e morte. Vejo o mundo gradativamente se tornando uma selvageria. Escuto o trovão se aproximando, cada vez mais, o que nos destruirá também; posso sentir o sofrimento de milhões e ainda assim, penso que tudo irá se corrigir, que esta crueldade também terminará. Enquanto isso, preciso adiar meus ideais para quando chegarem os tempos em que talvez eu seja capaz de alcançá-los." (15 de julho de 1944)

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