São Paulo, domingo, 1.o de dezembro de 1974

UM MARINHEIRO CHAMADO PANCETTI


Era uma vez um marinheiro... A história de Giuseppe Gianinni Pancetti poderia começar assim. Embora tenha nascido longe do mar, em Campinas, em 1904. Morreu, entretanto, junto dele - na Guanabara, em 1958. Por toda a vida, ele sempre procurou o mar, embora também amasse as montanhas de Campos do Jordão. E na sua pintura, aparecem por igual os montes e o litoral.

Suas muitas viagens pelo mundo começaram aos 10 anos de idade, quando, filho de imigrantes italianos, foi para a Itália. Lá fez seus primeiros estudos, e voltou - alistando, no Rio de Janeiro, na Marinha de Guerra, como grumete. Serviu a marinha de Guerra mais de 25 anos e só se transferiu para a reserva em 1946, como primeiro-tenente.

Sua fama de hábil pintor sempre foi reconhecida na Marinha. Era um artista e um trabalhador manual, em pintura, acatado. Foi nomeado primeiro instrutor do quadro de pintores criado na Marinha. Em 1932 foi publicado na "Folha Ilustrada", antigo jornal carioca hoje fechado, o seu primeiro desenho.

Em 1933 manteve os primeiros contatos com os meios artisticos cariocas. Trabalhou no Nucleo da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, com os artistas Dacosta, Ado Malagoli, João José Rescala e outros. Participou, nesse mesmo ano, pela primeira vez, do Salão Nacional de Belas Artes, no qual viria mais tarde conquistar menção honrosa, em 1934; medalha de bronze, em 1936; medalha de prata, em 1939; e, na Divisão Moderna do certame os Primeiros de Viagem ao Estrangeiro, em 1941, e de Viagem ao Pais, em 1948. Participou também da Bienal de Veneza e de outras mostras internacionais.

A critica especializada o situa ao lado de Guignard, Volpi, Relsolo e Segall, na tradição dos nossos melhores paisagistas. Sua pintura, de várias fases e periodos, está na retrospectiva da galeria Ipanema.

O pintor Pancetti deixou, junto aos quadros, ao longo dos anos, dos 54 que viveu, cartas, escritos pessoais e outros depoimentos do homem Pancetti. Eis alguns:


Amigo Condê

É a primeira carta do ano 1950 que eu escrevo. No relógio são duas horas e trinta minutos da madrugada deste meio século, e no meu apartamento uma desordem e tanto. Telas em desalinho pelas paredes e outras pelo chão, esparramadas. Uma cadeira tombada num canto sobre meu terno novo e livros abertos sobre a mesa e sobre a cama e que eu nunca acabo de ler. O soalho do meu quarto enorme está salpicado de pontas de cigarros, pincéis e manchas de tintas. Um tubo de amarelo esmagado e na solda do meu "Clark" esquerdo uma perfeita paisagem surrealista...

Todo esse aspecto sombrio me lembra o convés do "Maria-Rosa" após uma tempestade em pleno Mediterraneo. Deve ter sido efeito de vinho, bom vinho português, o autor dessa desordem. Um auto-retrato com flôr vermelha na boca me espia terrivelmente lá dum canto e eu mesmo tenho medo dele...

Rompi o ano na modesta e pitoresca pensão onde moro, no bairro da Abissinia, com a familia do hoteleiro, gente bôa!

Comemos, bebemos e rimos a valer. Na séde do "Abissinia F.C." velho casarão de madeira aqui ao lado, continua um baile animado e o som da orquestra chega aos meus ouvidos neste instante. Meu pensamento é todo daquela que veio, aflita, na tarde de ontem, avisar-me que partirá para São Paulo às 7 40 da manhã de hoje. Na casa de uma irmã onde reside souberam da sua ventura, dai a viagem precipitada. Disse-me que era um fim de ano triste e o principio de outro mais triste ainda. Tirou depois seu cordão de ouro do pescoço e beijou demoradamente a medalhinha, que é um coração, dizendo: "é lembrança da mamãe, guarde-o. Não me esqueça e acredite em mim".

Despediu-se, chorando, prometendo escrever-me logo e recomendando-me muito que não fosse ao seu embarque.

O som estridente de um samba novo que a orquestra envia agora não interrompe meu pensamento angustiante, nem as lágrimas que me escorrem pelas faces. Que venha então depressa a aurora, o sol radiante da primeira manhã do ano, oh Deus!

À tarde, saudoso, direi ao mundo que minha amada partiu...

Um grande abraço de seu velho amigo.

(Campos do Jordão, 1-1-1950).

Minha filha

Faltam poucos dias para o Natal, oferta do menino Jesus. Natal deveria ser, pois, a oferta de todas as crianças do mundo. Deveria ser mas não é, porque nem todas as crianças podem brincar e ganhar presentes nesse dia. O menino Jesus cresceu e tornou-se homem e foi um exemplo de bondade e justiça. Vieram outros homens maus e o crucificaram. Daí as injustiças sociais: crianças que brincam e ganham presentes e crianças que nada tem, nem ao menos o que comer. Nilma - não é rica, mas ao despertares, nesse dia, encontrarás uma arvore...

(Campos do Jordão, 20-12-1948)

Stela

Muitos gostariam de possuir-te como mulher atraente que és, movidos simplesmente pelo desejo de posse efémera, ter-te como esposa ou companheira a vida inteira, mas sempre com esse mesmo fim. E isso acontece, quase sempre, com a totalidade humana. Eu não digo que não gostaria de possuir-te desde mesmo modo porque também sou homem. Mas o que mais profundamente me comove e eu gostaria, era ter-te, constantemente, como fonte inspiradora da minha arte. Adorar-te-ia sempre cada vez mais e como ninguém jamais fosse capaz de adorar-te. E com essa tua simples, formosa e estranha figura eu criaria, então, um mundo de cores e formas novas onde tu serias eternidade.

(Campos do Jordão, 15-1-1949)

Que detesto

1º Quem nada produz
2º Traidores da Patria
3º Poeta gordo e milionario dizer que gosta
de tomar bonde andando
4º Falta d'agua nas casas
5º Miseria nos lares
6º Guerras e revoluções
7º Filmes americanos de bandidos
8º Revistas infantis perniciosas
9º Maú trato dos animais
10º Pretensão e vaidade

(Rio, 1-2-1955)

De que gosto

1º Da juventude em flor
2º A vertigem do progresso humano
3º Da Marinha do Brasil
4º Adorar e proteger os filhos
5º Saber que o mundo está em Paz
6º Vagar sempre em busca de novas paisagens
7º Acordar cedo para o trabalho
8º De boa literatura
9º De música popular
10º Adormecer ouvindo as vozes do mar

(Rio, 1-2-1955)

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