São Paulo, sexta-feira, 19 de julho de 1968
Neste texto foi mantida a grafia original

INVADIDO E DEPREDADO O TEATRO GALPÃO

No final da encenação da peça "Roda Viva", o teatro Galpão - rua dos Ingleses, 209, foi invadido por cerca de vinte elementos armados de cassetetes, soco-inglês sob as luvas, que espancaram os artistas, sobretudo as atrizes, depredaram todo o teatro, desde bancos, refletores, instrumentos e equipamentos eletricos até os camarins, onde as atrizes foram violentamente agredidas e seviciadas.

Com a agressão, sofreu fratura na bacia o contra regra José Luís que foi levado ao Pronto-Socorro Iguatemi, alem das atrizes Marilia Pera (principal da peça), Jura Otero, assistente de coreografia, Margot Baird Eudosia Acunã, Walkiria Mamberti e outros atores com escoriações generalizadas, que foram levadas ao Pateo do Colegio para exame do corpo de delito.

Os agressores, após a depredação e a violência, debandaram e fugiram numa perua Kombi e num sedan Volkswagen beje claro, mas alguns atores conseguiram deter três desses elementos. Um primeiramente, que foi entregue a policiais da Radio Patrulha, que o deixaram escapar. Outros dois que foram levados pessoalmente por atores e um de seus advogados ao DOPS. Um deles foi identificado como advogado formado no Mackenzie: Flavio Ercole. O outro como estudante de Economia do Mackenzie, que seria tambem sargento do Exercito segundo foi dito na Assembléia realizada logo após no teatro Ruth Escobar.

Aviso

Na tarde de ontem, os estudantes do teatro receberam um aviso por telefonema anonimo, de que elementos estavam planejando o "quebra-cabeça" no espetaculo "Feira Paulista de Opinião". Augusto Boal, um dos dirigentes, tentou falar com o secretario de Segurança Publica e pediu ao capitão Ferrarini, Chefe da Casa Militar, que enviasse policiais para proteger o teatro e o publico.

O capitão mandou que o teatrologo ligasse para o DOPS. Chegaram uma viatura e um agente do DOPS que se identificou ao inicio do espetaculo.

Entretanto, a peça transcorreu calma. O ataque foi no auditorio do Teatro Galpão, no final da peça "Roda Viva". "Mas o aviso se confirmou ao serem encontrados dois cassetetes, nos escombros de depredação", afirmou Augusto Boal.


As violencias

O grupo composto por vinte elementos bem vestidos, alguns deles com terno e gravata, invadiram o teatro, forram espancando quem encontravam. Depredaram as poltronas, quebraram os "spots", instrumentos musicais, e subiram aos camarins onde as atrizes estavam mudando de roupa. Espancaram-nas, tirando-lhes a roupa, e praticaram atos brutais de sevicia, conforme afirmavam atores, testemunhas oculares da violencia.

Policia incapaz

O agente do DOPS que se encontrava na platéia do teatro Ruth Escobar, que viera para proteção, vendo o que ocorria, correu aos policiais da RP, pedindo-lhes que bloqueassem as saidas do teatro Galpão, ao que se negaram sob a alegação de "ter que pedir reforço". Com isso, a maioria dos atacantes pôde evadir-se.

Os dirigentes teatrais afirmavam que "o general Silvio Correia de Andrade sabe mandar agentes para prender o contra-regra quando este distribuia folhetos, mas num caso destes, pactua com esses fascistas". "Temos que organizar nosso proprio esquema de segurança porque a Policia é incapaz de nos proteger".

Outra informação que trouxeram à Assembléia, foi de que o delegado do 4.o Distrito Policial, tomando conhecimento do fato e da prisão dos dois elementos, afirmou a jornalistas que iria lavrar o flagrante. Mas os dois estavam detidos no DOPS. O delegado do 4.o Distrito foi chamado pelo delegado do DOPS. Quando voltou ao 4.o Distrito, havia mudado sua orientação quanto ao destino dos dois delinquentes, dizendo, então, que não formalizaria o flagrante e que por isso, os detidos seriam liberados após as formalidades de praxe.


Desafio

Augusto Boal responsabiliza pelo ato de vandalismo o general Silvio Correia de Andrade e a deputada Conceição da Costa Neves. Lanço o desafio a ambos, para dizerem pela televisão que não tiveram nada com o caso, e virem debater com a classe teatral.

Plinio Marcos, tambem teatrologo e um dos dirigentes da classe teatral afirmou: "Esta terrivel agressão é absurda, é ridicula. A cultura e a inteligencia brasileira foram massacradas em seu templo. Temos que recear a formação de entidade do tipo de Ku Klux Kan. A classe teatral suspeita de que esses elementos são os mesmos que soltam bombas e matam soldados. São pessoas interessadas em tumultuar a nação".

"Mais firmes ainda - prossegue Plinio Marcos - reivindicamos a liberdade de expressão dentro do mais sagrado direito, que significa um anseio do povo brasileiro, provado em programas de TV e manifestações de solidariedade que temos recebido. Grupos terroristas procuram, através de atos violentos de terrorismo organizado por gente interessada numa ditadura violenta, agredindo trabalhadores em seu local de trabalho".

Concluindo, diz: "todo o patriota teme e nós tememos pelos destinos de nossa Patria. Sentimos que há realmente um grupo organizado, forçando a barra, para levar a Nação a um regime de terror e violencia".


Na casa de Sodré

De madrugada, uma Comissão de Artistas foi à residencia do governador comunicar-lhe os acontecimentos.

Na frente da Comissão estavam as artistas Cacilda Becker e Ruth Escobar que tentaram entrar em contato com o secretario da Segurança, Hely Lopes Meirelles, mas foram informadas pelo assistente de gabinete de que o secretario não poderia atendê-las. Cacilda tentou explicar ao assistente os motivos que as levaram a telefonar àquela hora (eram duas horas da madrugada), mas ele não quis aceitar nenhuma explicação, mandando-as dirigir-se ao Departamento da Policia Federal. Ocorreu, então, o seguinte dialogo entre Cacilda e o assistente de gabinete do secretario da Segurança.

Cacilda - Senhor assistente, quebraram o nosso teatro e alguns policiais estavam à porta com duas RPs e nada fizeram.

Assistente - O que podemos fazer minha senhora, são gente de teatro, dirijam-se ao DPF, isto é com eles.

Cacilda - Então quer dizer que gente de teatro não é gente?

Assistente - Eu não quis dizer isto, dona Cacilda. O que eu quis dizer é que o assunto está afeto à Policia Federal.

Cacilda - Então, sr. assistente, nós iremos procurar o governador Sodré e informá-lo da falta de segurança em São Paulo.

Os artistas em numero de uns 80 chegaram à residencia do governador Sodré às 3 horas, mas os soldados que ficam de guarda nas proximidades da residencia governamental, não os deixaram aproximar-se, mantendo-os à distancia. O oficial de dia telefonou aos assistentes militares do governo e três capitães vieram receber a Comissão.

Ruth Escobar e Cacilda Becker falaram inicialmente com o capitão Antonio Abate Filho que as atendeu. O oficial procurou saber o que as artistas queriam. Estas o informaram do seguinte: "Queremos garantias de que esses elementos serão punidos e garantias de vida. Garantias de que o elemento que foi detido e que se encontra na 4.a Delegacia seja autuado em flagrante. Queremos informar o governador da maneira descortês das autoridades do DOPS que se recusaram a nos atender. E, finalmente, queremos que o Estado se responsabilize pelos danos causados ao teatro".

O capitão Abate, informou à Comissão de que nada poderia garantir, porem ia telefonar ao delegado da 4a. Delegacia, João Luís Mendes Serra para cientificar-se do fato. A seguir - continuou o capitão - vou me comunicar com o governador para saber se ele poderá atendê-los.


Solução

Às 3h30 o capitão Antonio Abate voltava e informava aos artistas de que o governador não poderia atendê-los, pois estava dormindo, mas que ele entrara em contacto com o secretario da Segurança que se prontificara a atender a Comissão às 8h30 da manhã de hoje, no seu gabinete. Houve certo descontentamento entre os artistas, pois o sr. Hely Lopes Meirelles se havia negado a atendê-los momentos antes. Entretanto, os pedidos dos assistentes da Casa Civil do governador acalmaram os artistas que acabaram aceitando a indicação do sr. Hely Lopes em recebê-los.

Sobre a prisão de um dos agressores, o capitão disse que entrara em contacto com o delegado João Mendes Serra, informando-o de que o preso somente poderia ser liberado com autorização do secretario ou do governador do Estado. Diante das providencias tomadas pelos capitães Antonio Abate Filho, Edson Tenorio e Emidio Joaquim os artistas se prontificaram a esperar até às 8h30, quando foram atendidos pelo secretario da Segurança, na rua Brigadeiro Tobias. Logo a seguir, segundo o capitão Edson Tenorio, o sr. Hely Lopes Meirelles se entrevistará com o govenador, para informá-lo das medidas que as autoridades tomarão.


Com o secretario

A comissão constituida pelas atrizes Cacilda Becker, Ruth Escobar, Nidia Licia e Assunta Perez, assessoradas pelo advogado Laerte Macedo Torrens da Sociedade Artistica Novo Teatro, proprietaria do Teatro Galpão e defensora das vitimas, foram apresentados ao delegado geral, José Reneè Mota, que os fez sentar na ante-sala do secretario, onde ficaram longo tempo aguardando a chegada do prof. Hely Lopes Meirelles.

Os prejuizos foram estimados pelo grupo em 50 mil cruzeiros novos por ter sido destruida toda a cabine de luz, som e ainda todos os instrumentos musicais da orquestra. Assim mesmo eles garantem que a peça não sairá de cartaz devendo ser apresentada ainda hoje de qualquer maneira.


Com Sodré

Os artistas deverão ser recebidos às 14 horas pelo governador Abreu Sodré e às 24 horas promoverão reunião no Teatro Ruth Escobar.
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