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Os historiadores dispõem de um número quase ilimitado
de abordagens par tratar da sexualidade. Uma parcela dos intelectuais
franceses formula, por exemplo, a hipótese de que nos últimos
três séculos o sexo foi objeto de uma forte censura.
"Assunto proibido". Descartando a dimensão puramente
moral da questão, a psicanálise teria representado
um instrumento de denúncia dos mecanismos repressivos que
a sociedade impõe aos desejos e pulsões do homem.
Michel Foucault costuma ser do contra e não concorda com
esta "simplificação". Publicando há
duas semanas o primeiro dos seis volumes de sua História
da Sexualidade (o livro de 200 páginas se chama "A
vontade de saber"), procurou lançar as bases de um
enfoque alternativo.
Seu ponto de vista é bem paradoxal. Paradoxal no sentido
de contrariar as teorias mais sofisticadas que circulam sobre
sexo. Mobilizando um oceano de referência históricas,
sublinha a aparição, a partir do século 18,
de toda uma "tecnologia" discursiva que submete o sexo
a uma abundante enunciação. Do confessionário
ao hospital psiquiátrico, dos tribunais às casernas,
institui-se tipologias complexas para classificar taras e desvios.
Incentivou-se, ao mesmo tempo, o crescimento de uma curiosidade
inédita em torno do prazer, fundamentando-se uma série
de canais novos que transformaram o sexo num conteúdo privilegiado
dos discursos.
Dentro deste contexto, a noção de censura torna-se
meio imprópria. Não se trata de impor um silêncio,
mas, ao contrário, de estimular a palavra. O termo "censura"
conota tradicionalmente uma proibição. Ora, o que
Foucault constata depois de passar alguns meses mergulhado em
bibliotecas e arquivos judiciários é que esta proibição
inexiste. É possível dizer que há censura
ao abordar a sexualidade apenas se esta palavra ganhar uma significação
"positiva": e obrigatoriedade de enunciar um determinado
assunto. O sexo como "assunto" e portanto como fato
discursivo.
Ignorando-se a dimensão discursiva, ignora-se ao mesmo
tempo toda a normalização imposta à sexualidade
pelos mecanismos de poder através dos quais a sociedade
procurou definir o que é normal e o que é patológico,
o que se pode e o que não se pode fazer com o próprio
corpo. A sexualidade nunca teria se transformado em objeto de
controle se permanecesse fora das "técnicas"
capazes de codificar - verbalmente - o certo e o errado.
Assim, o que Foucault procura com sua pesquisa é a reconstituição
de uma determinada ordem: a ordem sexual. Para confinar os desejos
e pulsões ao quadro restrito da reprodução
da espécie (o casal monogâmico), foi preciso definir
tudo quanto é tipo de anomalia para as situar do circulo
do "normal" e do permitido. É neste sentido que
o trabalho de Foucault se edifica pela denúncia de uma
contradição aparente: como foi possível conciliar
a apologia à "normalidade" com a indicação
prolixa de comportamentos definidos como anormais?
Tratava-se de fixar uma certa verdade sexual, e esta fixação
exigiu um longo processo de elaboração discursiva
em que intervieram instâncias diversas de poder. A escola,
a medicina, a justiça e o Exército passaram a praticar
uma "ortopedia" sexual: faziam de tudo para evitar as
anomalias que criassem estudantes, pacientes, criminosos ou soldados
anormais. O sexo se transformou em assunto público. O próprio
Estado intervém para permitir a "saúde sexual"
de sua população.
Foucault argumenta, assim, que contrariamente a uma concepção
amplamente difundida, o sexo é há 300 anos objeto
de tudo, menos de um silêncio. Ele se encontra nos artigos
de um regulamento disciplinar dos liceus que - para citar um exemplo
- estipulam em 1809 a necessidade de se construir paredes entre
as camas dos dormitórios coletivos e jamais permitir que
a luz permaneça apagada durante a noite. E o que dizer
das teorias hoje cientificamente ultrapassadas que atribuiam ao
onanismo todas as doenças juvenis? Há 150 anos chegou
a funcionar em Paris uma clinica que submetia as garotinhas a
uma cirurgia depois da qual, apesar de poderem ter filhos, mergulhavam
definitivamente na frigidez.
Este e outros dispositivos integram uma "scientia sexual"
que surgiu independentemente do desenvolvimento da biologia, cuja
tarefa, despojada de qualquer moralismo, era a de tratar o sexo
do ângulo exclusivo da reprodução.
"Scientia sexualis" opõe-se culturalmente, segundo
Foucault, a "ars erotica" (arte erótica) que
certas civilizações (China, Índia, mundo
muçulmano) aplicam à sexualidade, definida como
mistério e assunto passível de um processo de iniciação
e aprendizado. A "scientia" ocidental procura, ao contrário,
definir seus parâmetros dentro dos quais opera a inclusão
do que é aceitável no campo da normalidade, e a
exclusão do inaceitável deste mesmo campo. Mas ao
excluí-los, é preciso estudá-los conscientemente.
Os psiquiatras criam toda uma terminologia para designar o anormal.
Krafft-Ebing estuda os zoófilos e os zooerastas; Rohleder
trata dos auto-monosexuais. Surgem expressões como mixoscofilos,
ginecomastas, presbiófilos sexoestéticos e mulheres
dispareunistas. Cada uma destas perversões corresponde
à identificação de um conjunto bem articulado
de sintomas. A normalização do sexo implica, desta
maneira, num apelo incessante à "ciência".
De possuída pelo demônio, como o era até o
fim da inquisição, a histérica passou a se
definir em relação ao sexo e a determinada forma
de recalque.
Mas para que os "cientistas" tivessem acesso a este
quadro complexo de fenômenos, foi preciso desenvolver a
confissão como técnica terapêutica. É
preciso falar. E falar tudo. Não se trata simplesmente
de narrar diante de um representante da instituição
(escola ou hospital) aquilo que se sabe e se procura ao mesmo
tempo esconder. Os que dissertam sobre o próprio sexo se
colocam no estatuto de um doente que luta contra a dificuldade
de exprimir as características de seu mal.
O Direito - "discurso intermediário entre o cidadão
e o Estado" - passa a incorporar a nova nomenclatura e a
identificar os indivíduos portadores de anomalias. Foucault
cita o caso de um camponês que mereceu uma coletânea
de monografias por ter sido judicialmente condenado por uma tentativa
de pedofilia. A Justiça, entregando o réu à
medicina, o transforma em paciente.
Todo este processo nunca teria se desencadeado se não se
tivesse assistido ao paralelo declínio da Igreja (entre
os séculos 17 e 18) como instituição de controle
do comportamento sexual dos fiéis. Foucault se detém
longamente na evolução das técnicas do confessionário.
Sanches e Tamburini - autores de manuais do confessor - prescreviam,
por exemplo, a necessidade de fazer com que o fiel descrevesse
em todas as minúcias os pensamentos ou atos associados
ao pecado carnal. A gravação de uma confissão
da época corresponderia, hoje, a uma narrativa profundamente
erótica. Mas a Igreja passou a exigir maior discreção
no confessionário. Uma simples alusão bastava para
que o confessor prescrevesse a expiação.
Michel Foucault constata que esta proliferação discursiva
contraria a idéia de que o sexo foi envolvido por um tabu
todo-poderoso. E pondera sobe as razões que levaram à
falsa identificação deste tabu. A seu ver, o fenômeno
se explica pelo mesmo paradoxo que fez o indivíduo falar
sobre um assunto e ao mesmo tempo acreditar que sobre tal assunto
não se fala. E não é bem uma hipocrisia,
no sentido ético na expressão (dizer o que não
se pensa), mas sim uma maneira de contornar o verdadeiro estatuto
da censura: uma técnica que obriga em lugar de proibir.
Se o século 18 corresponde, em termos marxistas, à
aparição da burguesia, Foucault não dá
a mínima importância ao tipo de conclusão
que tal coincidência permitiria formular. Inexiste, a seu
ver, uma causalidade específica entre o capitalismo e a
"scientia sexualis". Numa de suas conferências
no "College de France" do ano passado, chegou a explicar
por que não condicionava um assunto ao outro. A explicação
foi entretanto omitida dos manuscritos de "A vontade de saber".
Esta maneira de pesquisar independentemente dos modelos históricos
universitariamente consagrados na França desperta uma certa
irritação. O Partido Comunista, por exemplo, não
perde uma ocasião para atacar Foucault. Os althusserianos
(discípulos de Louis Althusser) acham escandalosa a não-aparição
da palavra "ideologia" em suas pesquisas.
Esta e outras criticas dizem muito mais respeito à posição
particular que Michel Foucault ocupa na intelectualidade francesa.
Em termos simplistas, pode-se dizer que ele é o mais conhecido
dos historiadores e filósofos que ignoram a dialética
hegeliana. Assim, a própria coleta de dados não
se efetua, em suas pesquisas, com vistas à identificação
de contradições submetidas a um modelo lógico
que as leva automaticamente a se sintetizar. Marxistas e hegelianos
não o perdoam.
Outro dia um pequeno artigo de um jornalzinho maoísta dizia
de maneira apoteótica que a história se encarregará
de sepultar Michel Foucault. Daqui a cem anos, ninguém
mais o citará. É possível. Mas por enquanto
ele continua sendo um autor bastante polêmico. De uma polêmica
renovada quando da aparição de cada um de seus nove
livros. E por mais que ainda o associem (erroneamente) ao estruturalismo,
repete-se há uns seis anos que "Foucault já
era". Mas seus seminários continuam repletos e seus
livros sendo comentados.
J.B.
Natali/Paris
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