São Paulo, domingo, 8 de março de 1953
Neste texto foi mantida a grafia original

A ULTIMA AULA

Alphonse Daudet

Naquela manhã, ia eu bem atrasado para a escola; e, andando, temia já a censura que pela certa me faria o sr. Hamel. Ainda por cima eu estava cru em participios e na aula anterior ele anunciara que na seguinte chamaria os alunos interrogando sobre tal materia. A solução unica que me acudia era faltar à aula e fazer tempo nos prados. O tempo estava tão belo, a temporada tão esplendida!

Caminhando ouvia eu o cantico dos melros aos rés do bosque e o ruido que, atrás da serraria, nos campos de Rippert, faziam os prussianos entregues a exercicios. Ora, tudo isso era muito mais interessante do que a regra dos participios. Mas resisti à tentação, apressei-me, corri, mal tendo tempo de reparar, quando passei defronte da prefeitura, o agrupamento das pessoas diante dos editais afixados no caxilho. Havia dois anos já que dali nos vinham as más noticias, as batalhas perdidas, as ordens disciplinares, as listas de requisições; enquanto prosseguia apressado, fui pensando:

- "Que haverá ainda mais, desta vez?"

E eis que, ao atravessar a praça, em disparada, o ferreiro Wachter que estava a ler o edital, junto com o seu aprendiz, me gritou:

- "Que pressa é essa, garoto? Assim terás muito que esperar a hora da tua aula!"

Cuidei que fosse uma brincadeira. E esbaforido, embarafustei pelo patio adentro.

Claro que sempre, antes do inicio da aula, havia uma gritaria de recreio que era ouvida da rua. Mas, durante a aula, tambem, pois isso de abrir e tornar a fechar as carteiras, de repetir alto e junto, a lição, o que obrigava a tapar os ouvidos para não atordoar, bem como as pancadas da regua do professor pelas mesas, exigindo "Um pouco de silencio", criava uma verdadeira barafunda.

Tal confusão me era propicia para enveredar que nem um raio para o meu lugar sem ser visto. Mas o diabo é que naquele dia a classe estava quieta, que nem manhã de domingo. Pela janela vi os meus colegas já instalados em seus lugares, e o sr. Hamel indo para cima e para baixo, dum lado e do outro, com a terrivel regua fincada debaixo do braço. Nem quero pensar no medo que me afogueava todo!

Mas, que nada! O sr. Hamel assistiu à minha entrada placidamente e até me disse:

- "Vai para o teu lugar, meu pequeno Frantz. Por pouco que não pegavas o começo."

Cavalguei o banco, sentei-me imediatamente diante da minha carteira. E só depois de refeito do meu susto foi que notei que o nosso professor envergara a sua bonita sobrecasaca verde, o seu peitoral rendado cheio de pregas e o seu gorro de seda preta recamado, cousas que punha somente nos dias em que vinha o inspector ou na festa de distribuição de premios. De mais a mais, a classe toda revelava um feitio solene, fora do comum. O que, porem, me alvoroçou deveras foi dar, de repente, ao fundo da sala onde os bancos via de regra estavam vazios, com os habitantes da aldeia. Lá estavam eles, sentados, quietos, como tambem nós: o velho Hauser, com seu tricornio; o ex-prefeito, o antigo comissario; e outras pessoas, mais. Havia um ar de compunção em todos eles; o velho Hauser trouxera uma cartilha velha, desbeiçada, que estava aberta sobre os seus joelhos; ao centro dela, o par de oculos de vidros espessos, descansando.

Estava eu muito espantado a reparar nessas coisas todas, quando o sr. Hamel subiu para o estrado e, diante da sua cadeira, com a mesma voz grave mas doce, aquela voz de sempre, começou:

- "Meus filhos, esta é a ultima vez que lhes vou dar aula. Chegou de Berlim ordem para só se ensinar alemão nas escolas da Alsacia Lorena... O novo professor chegará amanhã. Esta é pois a ultima aula de francês que vocês vão ter. Peço-lhes que prestem a maxima atenção."

Tal explicação me deixou zonzo. Ah! Os miseraveis! Então era isso que estava pregado acolá na tabuleta da Prefeitura!? ...

Minha ultima lição de francês!...

E logo eu, que mal sabia escrever! Agora mesmo é que não aprenderia mais! Tinha então que ficar assim?! Invadiram-me logo censuras de toda ordem por haver perdido tempo, por ter faltado a muitas aulas, por haver preferido saquear ninhos e dar trambolhões no Saar! E aqueles meus livros, que até então eu achara enfadonhos e insuportaveis, carregando-os desajeitadamente, achando-os pesados, a minha gramatica, o meu catecismo, ah! como agora me pareciam velhos amigos dificeis de largar! Tal qual o sr. Hamel. Saber que ele ia embora, que não tornaria a vê-lo, tudo me fez imediatamente esquecer os castigos, as pancadas que me vibrava com a regua. Pobre homem!

Em honra e gloria àquela ultima aula é que ele pusera a sua bonita roupa domingueira. Agora eu já sabia porque era que os velhos da aldeia tinham acorrido e estavam sentados ali ao fundo da sala. Sinal evidente de que até mesmo eles lastimavam não ter aparecido mais vezes naquela escola. Sem contar que tambem era um modo de agradecer ao nosso mestre aqueles quarenta anos de bons serviços. E uma prova de cumprimento de dever para com a patria que iriamos perder. Estava eu imerso em tais reflexões quando ouvi o meu nome soar bem alto. Eu era o primeiro a ser chamado para a lição. Ai de mim, que tudo daria para poder descarregar do começo ao fim a estuporada mas agora abençoada regra dos participios, e em voz bem alta, bem clara, sem cometer um só erro! E logo me atrapalhei nas primeiras palavras e fiquei ali, em pé, com o coração agoniado, tão cheio de vergonha que acabei por baixar a cabeça oscilando os ombros. E nisto diz de lá o sr. Hamel:

- "Já agora, meu pequeno Frantz, não te repreendo, pois bem castigado estás já! Ora, vês como são as cousas? Dia após dia, a gente diz consigo mesmo: "Tem tempo! Depois! Amanhã aprendo isto!" Vês tu o que aconteceu? Ah! A grande desgraça da nossa Alsacia foi ter sempre adiado para o dia seguinte a sua instrução. Agora aqueles senhores se acham no direito de nos chapar com esta: "Como? Então vocês se jactavam de ser franceses, e nem sequer sabem falar nem escrever a propria lingua!?..." Meu pobre Frantz, e nem és tu o unico culpado. Outros há, e bem mais. Todos nós temos de nos queixar amargamente de nós mesmos... Os pais não se incomodaram lá muito que os filhos se instruissem. Achavam que era melhor mandá-los trabalhar na lavoura ou na fabrica de pano, pois isso rendia uns vintens mais. Eu proprio não terei censuras a me fazer? Pois não houve vezes em que vos mandei regar o meu jardim, em lugar de trabalharmos juntos nisto, nisto aqui?! E quando me dava vontade de ir pescar trutas fazia eu cerimonia em dizer: Por hoje estão todos dispensados? ..."

Vai daí, passa para outro assunto o sr. Hamel: começa a falar-nos sobre a lingua francesa. Que era a mais bela do mundo todo; a mais clara; a mais solida; que precisavamos cultivá-la e jamais esquecê-la, porque quando um povo cai na escravidão enquanto dispuser de fato da sua lingua a bem dizer tem nas mãos a chave da sua masmorra. Depois (de assim citar Mistral), apanhou uma gramatica, leu-nos a nossa lição. Fiquei pasmo em perceber como estava compreendendo. Tudo que ele dizia me parece facil, oh! tão facil! Creio mesmo que jamais prestara atenção como desta vez e nunca ele nos havia dado, como estava dando agora, uma explicação tão clara, pacientemente. Era como se o pobre homem, antes de ir embora, fizesse questão de nos transmitir todos os seus conhecimentos, estivesse fazendo tudo para que eles entrassem nas nossas cabeças de uma só vez.

Acabada a leitura passamos à caligrafia. O sr. Hamel escolhera para este dia modelos novos, onde estava escrito em admiravel cursivo: França, Alsacia, França, Alsacia. Tais modelos, a toda volta da sala, davam a impressão de que as beiradas das nossas carteiras estivessem com bandeirinhas tremulando dentro da classe. Ah! Como todos nós caprichavamos! E que silencio! Só se ouvia o ranger das penas no papel dos cadernos. Em dado instante entraram alguns besouros; não fizemos caso; nem mesmo os alunos menores, absortos todos nós em traçar nossas linhas rombudas, nisso empregando o coração e a consciencia, tudo o que, sim, era deveras bem francês. No telhado do predio pombos arrulhavam baixinho e eu dizia comigo, ouvindo-os: "Será que tambem os vão obrigar a arrulhar em alemão?"

De vez em quando eu erguia os olhos de cima do meu caderno para espiar. Lá estava imobilizado na sua cadeira o sr. Hamel com os olhos postos nas cousas que o circundavam, como se quisesse levar dentro dos olhos toda a sua pequenina escola... Imaginem só: quarenta anos havia que ele morava ali naquele ponto, tendo diante dos olhos o patio do recreio e a sala da classe, tudo imutavel! Sim, tudo imutavel: apenas diferentes estavam os bancos, um pouco, pois de tanto uso haviam ficado lustrosos. Tambem as nogueiras do patio tinham crescido bastante. E as janelas davam uma luz diferente porque as emoldurava agora o lupulo que ele plantara um dia. Que desespero não devia sentir aquele pobre homem em ter que deixar aquilo tudo. Como não deveria doer seu coração ouvindo os passos da irmã, no sobrado, dum lado para outro, atarefada em fechar as malas!... Pois deviam ir embora no dia seguinte, abandonar a região duma vez para sempre.

Não obstante tudo isso teve animo para nos dar aula até ao fim. Depois da caligrafia tivemos a lição de Historia. Depois os menores entoaram o b a: bá; b e: bé; b i; bi: b o: bó; b u: bu! Lá em baixo, no fundo da sala, o velho Hauser, já agora, com oculos engarupados no nariz, as duas mãos grossas agarrando a cartilha, soletrava alto, com a criançada. Era evidente que ate mesmo ele punha o melhor de sua vontade e consciencia. Sua voz, dilacerada pela emoção, tinha um timbre tal que, ao ouvi-la tinhamos ao mesmo tempo vontade de rir e de chorar. Palavra que jamais me hei de esquecer daquela nossa ultima aula...

Vai senão quando o relogio da igreja bate meio-dia, logo a seguir o sino bate o "Angelus". E logo as cornetas dos prussianos que regressavam dos exercicios soaram por baixo das nossas janelas... O sr. Hamel levantou-se, livido, da sua cadeira. Nunca reparara que ele fosse assim tão alto! E nos disse:

- Meus amigos, meus amiguinhos, eu... eu...

Mas qualquer cousa o sufocava, pois não houve meios de poder concluir a frase. Voltou-se então, apanhou um pedaço de giz e virado para o quadro negro, utilizando todas as suas forças, escreveu com as letras maiores que pôde, isto, assim:

V I V A A F R A N Ç A! ! !

Depois se voltou para nós, jungiu-se à parede, com a cabeça revirada para trás e, sem poder falar, nos fazia sinal com a mão que fossemos embora, que estava tudo acabado, tudo...
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