|  | A música é um grande mistério. Em virtude de 
              sua natureza sensual-espiritual e da surpreendente união 
              que ela realiza entre a regra estrita e o sonho, entre a razão 
              e a emoção, entre o dia e a noite, ela é sem 
              dúvida o mais profundo, o mais fascinante e, aos olhos do 
              filósofo, o mais inquietante dos fenômenos.
 
 Desde a minha juventude eu tenho refletido sôbre o seu enigma, 
              procuro contorná-lo, e resolvê-lo. Como escritor, eu 
              ia aonde me levava o caminho da música, cedendo inconscientemente 
              à sua influência no meu estilo e na minha eterna maneira, 
              e sempre me sinto feliz quando amadores e mestres da música 
              gostam da minha obra pelo que apresenta de afinidade com a música. 
              Desde cedo na minha vida, a admiração e a curiosidade 
              fizeram-me procurar a companhia de músicos; isto me proporcionou 
              desencantos e decepções em alguns casos, mas em outros 
              uma larga e rica experiência.
 
 Escrevo estas linha para testemunhar o meu respeito a um homem que 
              é meu amigo há mais de uma geração, 
              que por vinte anos foi meu bom e amável vizinho num subúrbio 
              de Munich, e com o qual partilho hoje um rumo político idêntico 
              e um sofrimento comum. Êsse sofrimento não é 
              uma questão pessoal - pois a nossa pátria adotiva 
              tem sido boa para nós - mas surge de sombrio destino do país 
              de onde saimos - a Alemanha, o país da mais boa música, 
              êsse páis ambíguo que se transormou numa ambígua 
              ameaça à liberdade e aos direitos humanos e que fêz 
              com que a humanidade indignada mobilizasse suas imensas fôrças 
              defensivas.
 
 Há cinquenta anos, em Colônia, Bruno Walter, um rapaz 
              de 17 anos, empunhou pela primeira vez a batuta para dirigir a execução 
              do "Waffenschmied", de Lortzing. E um jornal de Colônia 
              escreveu isto a respeito: "Dentro de muito pouco tempo esse 
              jovem maestro dará o que falar". Assim aconteceu, e 
              a tal ponto que a própria música está em causa 
              quando se fala de Bruno Walter. Pois êsse homem, que agora 
              tem 67 anos, é um dos 4 ou 5 destacados representantes e 
              guardiães da música. E a sua própria recordação 
              dos últimos cinquenta anos acompanha um trecho da história 
              musical inseparável do seu próprio desenvolvimento 
              e das suas realizações. Também vai de par com 
              um trecho da história universal cheia de agitados acontecimentos 
              - aconteceimentos que o forçaram, como a todos nós, 
              enfrentar firmemente os problemas básicos da humanidade, 
              o problema do próprio homem.
 
 Êle olha para trás com o olhar pensativo que foi dolorosamente 
              experimentado, que cresceu com os anos em experiência e sabedoria; 
              que, ao refletir sobre sua vida, não pode deixar de incluir 
              muita coisa que não está em sua esfera pessoal, muita 
              coisa que diz respeito à arte e à humanidade. E eu 
              ouso dizer que neste seu 67.º aniversário, seus pensamentos 
              estão seguindo linhas muito semelhantes ao do meu quando 
              escrevo sobre ele.
 
 Harmonia - isto é mais do que um conceito estético, 
              é um princípio cósmico; esta palavra está 
              no princípio, ou muito perto do princípio do pensamento 
              ocidental. Ela deriva da filosofia grega-socrática, da idéia 
              pitagórica do mundo.
 
 A palavra "harmonia" significa música, mas apenas 
              secundariamente; originalmente, quer dizer matemática. A 
              matemática foi a grande paixão de Pitágoras, 
              bem como a proporção abstrata, o número, de 
              que aquêle espírito devoto e austero fêz o princípio 
              mesmo da craição e da conservação do 
              mundo. Naqueles dias remotos, êle olhava para a natureza como 
              alguém que a conhece, que havia sido iniciado; e pela primeira 
              vez falou nela, sublimemente, como num "cosmos", como 
              ordem e harmonia, como sistema espiritual e sonoro das esferas. 
              Visto que o número e a relação numérica 
              estão no próprio âmago do ser, essa concepção 
              une reverentemente tudo o que é belo, verdadeiro e racionalmente 
              moral.
 
 Mas o mundo não é todo êle acôrdo e harmonia 
              de esferas; êle possui tendências irracionais e demoníacas 
              que os gregos não desprezam, mas procuraram dominar e integrar 
              em sua religião. Assim o culto de Eleusis adorava as fôrças 
              obscuras do mundo inferior. E o pensamento pitagórico também 
              tinha as caracteristicas de um mistério religioso, daqueles 
              ritos secretos que incluiam uma espécie de drama sagrado 
              e tiveram grande influência no desenvolvimento da filosofia 
              grega.
 
 Essas cerimônias religiosas implicavam uma situação 
              do mundo como um todo, tanto o racional como o irracional. A mais 
              bela herança que devemos aos gregos é êsse conceito 
              cultural que insiste numa piedosa e santificante inclusão 
              das fôrças da treva no culto dos deuses.
 
 Se o mundo é música, inversamente, a música 
              é o reflexo do mundo, de um cosmos semeado de fôrças 
              demoníacas. Música é número, a adoração 
              do número, é álgebra ressonante. Mas a própria 
              essência do número não conterá um elemento 
              de mágica, um toque de feitiçaria? A música 
              é uma teologia do número, uma arte austera e divina, 
              mas uma arte em que todos os demônios estão interessados 
              e que, entre tôdas as artes, é a mais susceptível 
              ao demoníaco. Pois ela é ao mesmo tempo código 
              moral e sedução, lucidez e embriaguez, um apêlo 
              ao mais intenso estado de alerta e um convitre ao mais doce sonho 
              de encantamento, razão e anti-razão - em suma, um 
              Mistério com tôda a iniciação e os ritos 
              educativos que desde Pitágoras foram parte integrante de 
              todos os mistérios. E os sacerdotes e mestres da música 
              são os iniciados, os preceptores dêsse ser duplo, a 
              totalidade demoníaco-divina do mundo. Vida, humanidade e 
              cultura.
 
 Durante as últimas décadas os povos do ocidente, os 
              alemães em primeiro lugar, ficaram decepcionados com a razão, 
              na qual tinham posto excessiva confiança. E assim, numa espécie 
              de voluptuoso desespêro, dedicaram-se a um culto exagerado 
              e tendencioso das fôrças da treva, ao irracional e 
              ao demoníaco. Pensaram ver a vida na anti-razão. Julgaram-na 
              chamados a defendê-los contra a inteligência, e assim 
              fazendo perderam de vista o verdadeiro conceito de humanidade, que 
              nunca é uma parte ou outra, mas só atinge a realização 
              no Mistério do todo.
 
 Num tremendo sofrimento, êsses povos do Ocidente voltam-se 
              para recuperar êsse conceito religioso. Apoderou-se dêles 
              uma esperança apaixonada no sentido de um mundo melhor e 
              mais justo - mais justo em todos os sentidos, inclusive o de um 
              equilíbrio humano mais feliz. É a esperança 
              de uma humanidade que, ao invés de reprimir e portanto exasperar 
              o irracional, aceita francamente, venera e portanto santifica essas 
              fôrças demoníacas e coloca-as ao serviço 
              da cultura. Não admira que tantos corações 
              se inclinem com maior fervor e ansiedade do que nunca para os mistérios 
              da música e que ao mesmo tempo os problemas da educação 
              tomem o primeiro lugar nos pensamentos e nos debates públicos.
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