São Paulo, domingo, 1.o de dezembro de 1968
Neste texto foi mantida a grafia original

DIAS NEGROS

Lenita Miranda de Figueiredo

Era aos sabados, chamados "nigger's day" que se realizavam as tradicionais festas "house rent parties". A guerra civil havia terminado quando os negros das plantações do Sul dos Estados Unidos começaram a imigrar para as zonas industriais do Norte e a formar as primeiras comunidades que enfrentaram de forma aguda os problemas economicos e sociais.

Baseados no velho refrão de que a união faz a força, entenderam os negros que era necessario acentuar o espirito de aglutinação nascido no "Congo Square" da lendaria New Orleans, quando então os escravos ali se reuniam para reivindicar seus direitos ao som dos tantans.

O homem branco tentava bloquear essas reuniões, pois sabia que dali nasciam senhas de fugas, planos de melhoria de vida, e sobretudo a força para a luta da conquista da liberdade. Houve tempo em que o canto e a dança dos rituais africanos foram proibidos terminantemente pelos senhores de escravos da Louisiana.

Mas as "House rent parties" sobreviveram e se tornaram lendarias na historia da emancipação negra. As reuniões eram em casas de familia ou então em uma casa desalugada. A musica ficava a cargo de um pianista, de um baterista e ocasionalmente de um guitarrista e de um pistonista. Quando apareciam mais instrumentistas, realizavam-se as tradicionais competições chamadas "Cutting contests", "cutting sessions" ou "carving contests".

Orgia negra

Os brancos costumavam chamar essas festas de Orgia negra e diziam que elas se realizavam num sotão escuro qualquer do Harlem e cada participante concorria com dez centesimos de dolar, quantia essa que se elevou mais tarde para cinquenta.

O pianista dominava o ambiente e geralmente tocava por instinto, repetindo fragmentos de melodias tiradas de outros pianistas profissionais. Sombras grotescas projetavam-se num fundo mal iluminado por lamparinas eletricas roxas e azuis. Ouviam-se gritos, gemidos, cantos rouquenhos. A musica era languida, de começo, e logo se tornava ruidosa e contagiante à medida que avançava a madrugada. Possuidos de verdadeiro frenesi, bailarinos e bailarinas executavam estranhos passos de dança num ritmo desenfreado e enlouquecedor, movendo o corpo inteiro. Homens e mulheres que haviam lavado e cozinhado para os brancos durante a semana inteira, proxenetas, meretrizes, desabafavam-se nesse "rendez-vous" de meia noite, tão bem descrito por Langston Hughes.

Kingombo e whiskey

Durante a lei seca as "house rent parties" se popularizaram, pois eram o centro do contrabando de bebidas. Não menos famosas eram as especiarias feitas pelas crioulas de New Orleans. As bebidas e as comidas principais dessas festas tornaram-se conhecidas em todos os Estados Unidos. E muitos senhores brancos encomendavam tais quitutes para suas mesas de aniversario e outras comemorações. Ali se serviam com fartura "mooshine whiskey", ("Whiskey" barato), genebra, "okra gumbo", "gumbo de Angola", "Kingombo", (prato de verduras dos negros crioulos da Louisiana), "hopping John" (comida afro-antilhana, "mulato rice" (arroz com tomate), pescado frito e leitão. Para completar, o inhame importado, uma especie de planta chamada "eddoe", manga, raizes de jengibre, abacates e bananas. Tão popular tornou-se o molho de pimenta vindo das Indias Ocidentais que substituiu por completo a pimenta vermelha preparada à maneira norte-americana. O habito dos molhos variados na mesa do norte-americano é sem duvida alguma um habito africano trazido pelos negros.

Entretanto, o quitute tradicional que deixava a todos com agua na boca era o "Pig Foot", preparado por uma negra de grande estatura e voz rouca e pesada que durante 16 anos vendeu as famosas "pernas de porco" em frente ao popular salão San Juan Hill e com isso tornou-se dona de uma grande soma de dinheiro no Banco do Harlem. Apelidada de Pig Foot Mary, tornou-se figura lendaria na historia do jazz com o seu carrinho de bebê e o seu caldeirão onde preparava os quitutes.

Não existe jazzista famoso que não se tenha deliciado com os "pig feet" e os "shorties" (meia porção de bolo de milho) que eram saboreados com as frituras de porco.

"Boogie-woogie"

Sem duvida foram nesses "dias negros" de "parlor socials", "skiffles", "break-downs", "social whist parties", "Strungles", ou house rent stomp", realizados em locais chamados "buffet flats" e ainda com outras dezenas de nomes inventados pelos negros, que floresceu o jazz castiço. Tambem nos prostibulos, nos cafés de fama duvidosa, nos cabarés mais mal frequentados é que ele ganhou fama e se popularizou. Mas nesses "dias negros", aos poucos, os "blues" foram tomando nova forma logo conhecida como "boogie-woogie". Despojavam-se de sua vestimenta mistica e languida, para chegar a um climax de força irresistivel, frenetica, contagiante.

Fruto desses "dias negros" é "Pine Top's Boogie-woogie", de Pine Top Smith, classica obra que tem servido de modelo a outras paginas melodicas concebidas no genero. O pianista e cantor confirmou que "boogie-woogie" significava "dança má". Outros afirmam que "boogie", em "slang" afroestadunidense significa "negro" e que "boogie-woogie" é sinonimo de barrel-house (pequenos cabarés de onde se tirava a cerveja diretamente dos tonéis, barris). Mas o seu maior significado na historia do jazz é a simples imitação do trem que para o negro simbolizou sempre a fuga para a libertação dos dias negros interminaveis.
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