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Marilene Felinto
Da equipe de articulistas
Alcino Leite Neto
Editor de "Letras"
Nomes como o da peça "O Auto da Compadecida" e
do projeto artístico Movimento Armorial são com certeza
mais conhecidos do que o de seu próprio autor, o escritor,
dramaturgo e artista plástico paraibano Ariano Suassuna,
64.
Sem publicar desde 1971, e sem escrever oficialmente desde 1981,
quando fez declaração pública de que se afastava
então da literatura, Suassuna dedica-se hoje a um novo romance.
Sobre o livro, prefere não falar ainda, para não "perder
o impulso".
Também preferia não dar entrevista. Mas, conforme
disse, "como vocês se dispuseram a vir de tão
longe, isso me comoveu". Recebeu a Folha em sua residência
no Recife, um desses casarões antigos e enormes, que já
não existem mais.
Como seu personagem Pedro Diniz Quaderna, protagonista do romance
"A Pedra do Reino" e de várias outras histórias,
Suassuna é um idealista lúcido. Sempre fiel à
originalidade de seu pensamento estético e político,
ele não se importa em ser considerado por vezes fora de moda.
Continua, pelo menos em tese, um "monarquista de esquerda",
e pela primeira vez revela a razão daquele seu afastamento
da literatura em 81. Pronuncia-se também, com duras críticas,
a respeito dos "devotos da modernidade liberal", na sua
concepção encabeçados pelo presidente Collor.
Mas, sobretudo, conta histórias maravilhosas, dessas que
não existem mais.
Folha - O livro que o sr. está escrevendo já tem
título?
Suassuna - Não, ainda não. Eu só costumo
batizar depois que termino.
Folha - O sr. pode falar um pouco sobre ele?
Suassuna - Olha, prefiro não falar. Eu só gosto
de falar do que já fiz porque parece que falando muito sobre
o que está fazendo a gente perde o impulso. Comigo acontece
isso. É o mesmo motivo que me leva a não escrever
em jornal. Eu escrevi em jornal um tempo, então parece que
a gente vai dando saída aos fantasmas, às coisas que
a gente tem dentro de si e perde a força para escrever a
ficção, que é o principal. Que é o principal
para mim.
Folha - O sr. não publica desde 1971.
Suassuna - É. Foi quando lancei "O Rei Degolado",
mas ficou incompleto. O livro teria cinco partes como "A Pedra
do Reino". Mas eu só escrevi duas e só publiquei
uma, a primeira, que se chama "Ao Sol da Onça Caetana".
Folha - O sr. não estaria escrevendo a continuação
de "A Pedra do Reino"?
Suassuna - Olha, se eu conseguir terminar, porque eu sou
meio descrente das minhas forças, ele vai concluir "A
Pedra do Reino". Eu sou um escritor muito demorado. Eu escrevo
durante muito tempo, mas pouco. "A Pedra do Reino", eu
levei 12 anos para fazer, não é? De 58 a 70.
Folha - A que o sr. atribui esta sua lentidão?
Suassuna - Escrevo lentamente porque escrevo à mão.
Depois normalmente eu passo à máquina, corrijo à
mão e ainda faço uma quarta vez. Escrevo e reescrevo.
Tenho uma tendência de ser prolixo. E então preciso
me policiar. Primeiro, porque deve ser assim, segundo porque livro
muito volumoso o pessoal tem dificuldade de ler. Eu pessoalmente
gosto. Uma das minhas leituras prediletas é "Guerra
e Paz", de Tolstoi. Eu já li não foi menos de
15 vezes não. E, toda vez, quando vou chegando no fim, eu
fico desgostoso. Pelo meu gosto seria maior ainda.
Folha - Por que o sr. parou de escrever "O Rei Degolado"?
Suassuna - Foi um processo curioso. O livro foi publicado
primeiro no "Diário de Pernambuco", cada semana
um capítulo. Dessa maneira escrevi duas partes. Aí,
vi que podia publicar por partes. Então, publiquei a primeira
em livro e iria publicar a segunda quando resolvi parar, porque
não estava me satisfazendo mais aquela forma. Apesar de não
parecer, eu sou muito exigente com a forma de escrever.
Folha - Mas o quê não satisfazia o sr. na forma?
Suassuna - Eu não estava satisfeito com o narrador,
Pedro Diniz Quaderna, o mesmo de "A Pedra do Reino", a
personagem principal. Notei que tendo apenas Quaderna como narrador,
uma grande parte do meu universo interior ficava sem expressão.
Então, senti necessidade de criar, digamos, um pólo
oposto a Quaderna. Aí não dava mais não, quer
dizer, "A Pedra do Reino" já tinha começado,
já estava publicado. Tive que parar.
Folha - Nesse novo romance aparece um outro narrador?
Suassuna - Aparece. Os narradores são dois: Quaderna
e esse novo.
Folha - O sr. também escreve poesia?
Suassuna - É. Aliás, a "Seleta" é
único dos meus livros que tem, inclusive, poesia, que é
uma face da minha personalidade à qual ninguém dá
importância, mas eu dou. Eu acho que a fonte profunda de tudo
o que eu escrevo, inclusive do teatro, do romance, é a poesia.
Folha - Mas o sr. tem um livro só de poesias?
Suassuna - Tenho. "O Pasto Incendiado", que nunca
foi publicado.
Folha - Por quê?
Suassuna - Bom, uma parte da culpa é dos editores,
a outra parte é minha. Os editores não se interessam
muito por poesia não, principalmente quando eles sabem que
a gente escreve outras coisas. Quando eles sabem que a gente escreve
teatro, romance e conto, perguntam logo se não temos algo
nesses gêneros, não é? Porque poesia vende pouco.
Mas por outro lado a culpa é minha. Eu sempre achei que a
minha poesia devia ser reelaborada de acordo com um conjunto maior,
mais amplo, e então eu mesmo me resguardava um pouco. Porque,
somente assim, com os romances e as peças, uma coisa lançaria
luz sobre a outra. Porque minha poesia, diferentemente da prosa,
é meio hermética.
Folha - O que o sr. quer dizer exatamente quando afirma que a
poesia é a fonte profunda de tudo que escreve?
Suassuna - Para dar um exemplo, na "Pedra do Reino",
num capítulo chamado "A Visagem da Onça Caetana",
existe um trecho em que Quaderna está esperando para o interrogatório
do Carregador e ele se senta numa espreguiçadeira, que é
uma cadeira como essa onde vocês estão, e adormece.
Então ele não sabe se foi antes do sono ou durante
o sono ou depois que apareceu uma mulher com uns Gaviões
e começou a passar o dedo na parede, de onde ia saindo um
texto. Esse texto que está lá é um poema, apesar
de estar escrito em prosa e é, no meu entender, a origem
de toda a "Pedra do Reino".
Folha - Mas mesmo sua prosa é bastante impregnada da poesia
oral dos cancioneiros populares, não é?
Suassuna - Ah! Sim, claro. A própria poesia narrativa
dos folhetos são nessa linha. Isso já vem em mim dessa
oralidade. Eu sou, de certa maneira, um ator frustrado. Nunca fui
ator, primeiro, porque não sei decorar um texto, e depois
porque não sei dizer um texto, tenho a voz baixa, fraca,
feia e rouca. Eu não sei dar naturalidade e vida a um texto
decorado. Se eu falar num palco é um desastre. Então,
eu não podia ser um ator nunca. Eu digo em "O Rei Degolado",
quer dizer, Quaderna diz, que ele é um misto de rei e de
palhaço, sendo que ele acha que a salvação
dele vem pela parte de palhaço, pela parte da coroa de flandres
e da cara pintada do palhaço.
Folha - É o palhaço-rei, duas figuras são
sempre presentes na sua literatura. Por que isso? O que o sr. tem
de rei e de palhaço?
Suassuna - É verdade, estão presentes. Eu acho
que todo mundo tem essa dicotomia, essa separação
dentro de si. Mesmo que você não leve a sério
nem o palhaço, nem o rei; ou se você leva a sério
o palhaço e não leva o rei, como eu acho que acontecia
com Cervantes. Cervantes não levou a sério a parte
do rei que ele tinha dentro dele, que era o Quixote não é?
Recebi uma influência enorme de Cervantes e de vários
autores espanhóis, inclusive de Calderón de La Barca.
Talvez até maior que a de Cervantes foi a de Calderón.
Folha - O sr. realmente escreveu uma peça baseada em "A
Vida é Sonho", de Calderón de La Barca?
Suassuna - Escrevi. Chama-se "O Arco Desolado". Nunca
publiquei porque não presta. Mas em 1952, se não me
engano, eu concorri com ela ao Concurso do Quarto Centenário
da Cidade de São Paulo. Ganhei menção honrosa.
Aliás, eu soube depois, por fonte segura, que eu cheguei
a ganhar, e depois me "desganharam". Mas voltando às
influências, também fui muito influenciado por Santa
Tereza de Ávila, mulher por quem eu tenho grande admiração.
Da literatura russa recebi uma influência muito grande também,
principalmente de Gorgol e Dostoievski. Agora, no que respeita ao
Quixote, particularmente, eu noto uma diferença entre ele
e Quaderna. É que D. Quixote enlouquece lendo os livros de
cavalaria e acredita em tudo aquilo. Quaderna, não. O texto
que apresenta bem claramente a diferença dele para o Quixote
está em quando ele diz: "Minha vida cinzenta, feia e
mesquinha de menino sertanejo, reduzido à pobreza e à
dependência pela ruína da fazendo do pai". Quer
dizer, ele sabe que a vida é triste, dura, feia, áspera,
e lança mão do folheto e dos espetáculos populares
como defesa. Mas tudo lucidamente. Ele é lúcido.
Folha - Haveria também uma influência de Macunaíma
na construção do Quaderna?
Suassuna - Olha, alguém também falou disso, creio
que Carlos Lacerda, logo que o romance foi publicado. Mas, eu vou
lhe dizer uma coisa: a meu ver, pode haver uma identidade através
das fontes. Fora daí tem uma coisa que a mim não me
agrada em "Macunaíma", que é essa idéia
do herói sem caráter. Aliás, eu comecei a reagir
contra isso... Eu li "Macunaíma" muito tarde, por
um problema pessoal. Eu não simpatizava com Mário
de Andrade, nem simpatizo porque ele falou mal do meu pai por problemas
políticos. Ele num livro, inclusive, deu uma informação
falsa sobre meu pai, que ainda hoje se reproduz por aí.
Folha - Que informação foi essa?
Suassuna - Na Paraíba dos anos antes de 30, foi publicado
um livro por um jornalista chamado Érico de Almeida. E era
um livro sobre o cangaço, onde ele elogiava meu pai, que
governou a Paraíba e combateu o cangaço, no tempo.
Mário de Andrade afirmou que Érico de Almeida não
existia, que era um pseudônimo de meu pai. O que não
é verdade. Érico de Almeida eu não conheci,
mas o filho dele sim. Fiquei com raiva de Mário de Andrade
a vida toda. Quando já era adulto, pai de filho e já
começando a ser velho, um amigo meu me emprestou "Macunaíma".
Mas, então, o que me afastava e afasta mesmo de "Macunaíma"
é a idéia do herói sem caráter. Eu tenho
uma hostilidade especial a essa maneira de ver o povo brasileiro.
Um camarada que vence a fome, a injustiça, a opressão,
enfrenta os poderosos na pessoa de Antônio Moraes, enfrenta
a aristocracia rural sertaneja, enfrenta a burguesia urbana sertaneja,
através do padeiro, enfrenta a Igreja, enfrenta o padre,
enfrenta o bispo, o sacristão e enfrenta até as potências
celestes, com quem ele dialoga de igual para igual. Então,
se ele é sem caráter, eu não sei quem é
que tem caráter não.
Folha - Mas João Grilo enfrenta tudo isso com a mentira,
não é?
Suassuna - Ele enfrenta com o que quiser, ele enfrenta com o
que tiver na mão. Aqui no Nordeste existe um ditado que para
mim é o que retrata João Grilo. É um ditado
que diz: a astúcia é a coragem do pobre.
Folha - Frequentemente o sr. fala do circo. Parece mesmo que
o circo é um paradigma do mundo para o sr.
Suassuna - É. É verdade. Exatamente isso. O circo
é uma coisa fortíssima em mim.
Folha - Mais que o teatro?
Suassuna - Anterior ao teatro, porque, veja bem, a minha infância
decorreu toda no sertão. Então, havia duas saídas
para o cotidiano: o circo e o livro. Vocês não podem
imaginar o que era para mim a chegada do circo. Era a abertura de
um mundo novo, onde a rotina - como Quaderna com as cavalhadas e
o folheto - era vencida. A gente saía do universo cotidiano
e entrava num mundo mágico, onde tudo podia acontecer e onde
tinha a presença, para mim fundamental, do palhaço
e do mágico. Nos circos da minha infância você
tinha mulheres lindíssimas - que deviam ser horrorosas, mas
eu achava lindíssimas, não é? As equilibristas
eram para mim a equivalência do que hoje são as bailarinas.
Folha - Sempre que o sr. fala do circo, fala do dono do circo.
Por quê?
Suassuna - Antes disso, e para esclarecer, eu preciso falar
da importância dos livros, principalmente dos livros de aventura.
A gratidão que eu tenho pelos três ou quatro autores
que me abriram o mundo da aventura, eu não pago. Foi principalmente
a tradução feita por Eça de Queiróz
de "As Minas do Rei Salomão". Eu achei aquele livro
um encantamento. Outro foi "Scaramouche", de Rafael Sabatini.
Um dos motivos da sedução que "Scaramouche"
exercia e exerce sobre mim é que lá tem uma coisa
que é quase um circo, que é uma companhia de teatro
ambulante. O personagem se mete nas primeiras escaramuças
de rua que prenunciavam a Revolução Francesa e é
obrigado a fugir. Ele foge e encontra uma companhia de teatro ambulante,
onde se engaja com um nome falso, e passa a ser ator. Então,
é uma coisa que é ligada ao circo. Por essas influências
é que em tudo o que eu escrevo, ainda hoje, a presença
do circo é muito flagrante. Dentro do meu universo tem a
mesma importância que dou a "Almas Mortas", de Gogol.
O outro foi Alexandre Dumas, primeiro com "Os Três Mosqueteiros",
que é um livro onde a presença de Cervantes está
muito marcada. O D'Artagnan é um Dom Quixote gascão,
não é? Agora, voltando ao circo e ao teatro, o que
acontece é que no circo da minha infância o teatro
também era encenado. O próprio circo era uma companhia
ambulante de teatro.
Folha - Os chamados circo-teatros?
Suassuna - Exatamente. O primeiro circo que eu vi na minha infância
chamava-se Circo-teatro Stringhini, que era o nome do dono. Parece
que ele era italiano ou filho de italiano. Eu achava até
muito estranho esse nome e tinha uma figura, era um sujeito extraordinário,
que era o palhaço Gregório. Esse palhaço está
ainda hoje dentro de mim. O narrador do "Auto da Compadecida"
é um palhaço inspirado nesse palhaço Gregório,
e vem da figura do cantador nordestino, que tem alguma coisa da
oralidade do palhaço. Só que ele fala em verso. E
ele representa o autor também, representa ainda o coro da
comédia clássica.
Folha - E como foi a passagem de sua fascinação
do circo para o teatro?
Suassuna - Quando eu entrei pela adolescência, aos 18
anos, entrei para a universidade e me tornei colega de um grupo
de gente interessada em arte. Eu fui colega de turma de Aloísio
Magalhães, de Hermilo Borba Filho e vários outros
e juntos nós fundamos um teatro do estudante. E Hermilo,
que exerceu também uma influência muito grande sobre
mim, leu meus poemas, que eram os primeiros poemas que eu escrevia
ligados ao romanceiro popular do nordeste, e disse que eu precisava
conhecer Garcia Lorca e os autores espanhóis. Foi Lorca que
me levou a Gongora, como Gregório de Matos me levou a Quevedo.
Ele me colocou Calderón de la Barca na mão. E foi
aí que eu tomei contato com aquela visão, pela primeira
vez, do mundo como um teatro. Ele tem uma peça chamada "O
Gran Teatro do Mundo", que me deu a noção do
valor simbólico do teatro e, consequentemente, do circo.
Além disso, a forma circular do circo me levava a crer que
o mundo era assim também. E que a vida, então, era
uma representação à qual nós éramos
chamados. Por isso, o dono do circo ficou ora identificado com o
autor de cada peça, ora identificado com o autor do mundo,
que era Deus, para mim. Isso acontece exatamente no "O Grande
Teatro do Mundo" porque o autor é Deus. Na primeira
cena ele dialoga com outro personagem que representa o mundo. Então,
vem daí essa presença do dono do circo, que é
importante.
Folha - O sr. é muito apegado a sua infância, não?
Suassuna - Esse pegadinho meu com a infância vem do fato
de que ela foi, no meu caso ao mesmo tempo atormentada e maravilhosa.
Então, foi um tempo muito violento para os dois extremos.
Eu passei por uma infância muito tormentosa com os acontecimentos
de 1930, quando meu pai foi assassinado. Agora, ao mesmo tempo,
uma infância rural, no meu entender, muito mais feliz e rica
do que uma infância urbana, porque você veja, eu tinha
as caçadas, que era uma coisa de que eu gostava muito quando
era menino. Eu hoje não caço mais não. Me aconteceu
um incidente. Para ser franco, o que eu gostava mais da caçada
era a excursão, era o mato, era encontrar água. Era
o encontro do próprio animal.
Folha - Que incidente foi esse que levou a desistir de caçar?
Suassuna - Um dia um amigo meu foi me contar um incidente que
tinha acontecido com ele. Disse que vinha no mato e de repente apareceu
um preá, um roedor desses, correndo assim... e entrou de
baixo de umas macambiras, que é uma planta xerófita,
da raça de abacaxi, sisal. Meu amigo se abaixou então
para atirar no preá. Quando ele se abaixou e começou
a procurar uma posição melhor, de repente entrou uma
cobra, que já tinha picado o preá e que vinha atrás
do preá, vinha no rastro dele. Meu amigo disse: "Ariano,
quando a cobra avistou o preá ela se enroscou toda e abriu
a boca. Parecia a imagem do demônio. Aí eu baixei fogo
nela, matei". Foi então que eu percebi e me perguntei:
a imagem do demônio era a cobra ou era ele? Desse dia em diante
eu nunca mais cacei. Eu não tenho simpatia por esses exageros
ecológicos que está havendo agora por aí não,
mas nesse dia eu parei de caçar.
Folha - O sr. disse uma vez, em 1978, que nunca tinha saído
do Brasil e que esperava nunca sair. Continua pensando isso ou já
saiu?
Suassuna - Continuo. Não. Não saí, continuo
aqui. Olha, vai lhe parecer até estranho, mas um mês
atrás eu fui convidado a ir para o Marrocos, que é
até um país que, se fosse ali em Alagoas, eu ia. Mas
longe do jeito que é, não vou não. Tenho horror
a viajar, eu não gosto de viajar. Para os Estados Unidos,
nem que me ofereçam dinheiro eu não vou.
Folha - Por quê?
Suassuna - Veja bem, eu não tenho nada contra povo nenhum,
certo? Agora, uma coisa é o povo e outra coisa é o
papel que o país dos vários povos exerce no mundo.
Eu sei que estou inteiramente fora de moda quando digo isso. Uma
das coisas de que estou com horror no Brasil é a tal modernidade
liberal. Deus me livre e guarde de qualquer modernidade liberal.
Não tenho nada a ver com isso, tenho horror a isso. Porque
atualmente os devotos da modernidade liberal estão querendo
transformar o Brasil nos Estados Unidos de quarta categoria ou numa
Alemanha de terceira.
Folha - Quem são esses devotos da modernidade liberal
Suassuna - Atualmente são chefiados por Collor, não
é? A meu ver o Brasil não tem que ser Estados Unidos
de segunda classe. Eu prefiro o Brasil parecido com a Etiópia,
um país pobre, desgraçado, arrebentado, do que com
os Estados Unidos. No diaem que o Brasil se transformar nos Estados
Unidos, eu vou-me embora. Taí uma hora que eu saio do país.
Vou para o Marrocos ou vou para a Etiópia. Eu prefiro o Brasil
parecido com a Índia. Agora, eu não tenho nada contra
o povo americano. Os Estados Unidos são hoje a polícia
do mundo. São os gendarmes do mundo.
Folha - O sr. critica os Estados Unidos mas, no entanto, não
se alinha ou não se alinhava também com o extinto
Partido Comunista.
Suassuna - Não, não, não. Também
sempre disse que iam terminar aliados. Tenho um artigo de 1974 em
que eu já dizia: vão se aliar. Vão terminar
se aliando os Estados Unidos e a União Soviética e
vão formar uma aliança de rico contra pobre. E é
o que está acontecendo. Viu agora na guerra do Golfo? Quer
dizer, se aliaram todos os ricos contra um país deste tamanho
do Terceiro Mundo. E a luta agora é essa. É a luta
das metrópoles contra as aldeias. As aldeias são o
Terceiro Mundo. Você não se iluda não porque
vai ser assim. E, outra coisa, eu sempre fui socialista. Eu pertenço
ao Partido Socialista Brasileiro. Entrei no partido porque hoje
eu acho que tenho condições de ser socialista.
Folha - Mas quando o sr. escreveu "A Pedra do Reino"
o sr. era um monarquista?
Suassuna - É verdade. Mas eu vou concluir o que eu estava
dizendo: que sempre fui socialista, mas sempre tive horror ao marxismo.
Eu acho o marxismo um pensamento estreito, castrador. Eu não
me entendia com os comunistas brasileiros porque achava que eles
agiam com faca de dois gumes, com pau de dois bicos. Quando eu denunciava
o imperialismo americano e me batia contra a exploração
americana no Brasil e coisa, eles batiam palma para mim. Mas quando
eu dizia que o stalinismo era uma ditadura horrorosa, assassina,
era considerado vendido aos americanos, a Wall Street. Eu sempre
denunciei as duas coisas. Depois vem a abertura de Gorbatchev. Quando
vi Gorbatchev criticando os Estados Unidos, fiquei entusiasmado,
porque pensei que ele ia buscar uma nova forma de socialismo. Mas
ele está se vendendo ao capitalismo, ele está se entregando
ao capitalismo de mão beijada.
Folha - Como é que o sr. se aproximou do monarquismo do
ponto de vista intelectual?
Suassuna - Eu vou explicar. A minha simpatia pelo regime monárquico
começou muito cedo na infância, através da influência
de um tio meu, Joaquim Duarte Dantas, monarquista e católico.
Ele lia para mim trechos e mais trechos de um livro português
escrito por um certo Antero de Figueiredo, que hoje está
meio fora de moda, mas a quem ele admirava muito. E o livro de Antero
era sobre d. Sebastião. Um dos motivos que me levavam para
a monarquia era o motivo estético. A monarquia é mais
bonita do que a república. Plasticamente, pelo ritual, pela
liturgia, por tudo. Então, eu sou um escritor e um artista
e eu tenho uma natural atração pela beleza, pelas
coisas bonitas. Agora, por outro lado, a própria visão
do povo brasileiro é uma visão mais monárquica
do que republicana.
Folha - Como assim?
Suassuna - Pelo seguinte: porque você veja na oralidade,
nos contos orais que estão por aí. Aliás, isso
é do conto oral do mundo inteiro. Eu duvido que você,
na sua infância, tenha travado conhecimento com um conto oral
que começa assim: era uma vez um presidente da república.
Não é verdade? Sempre se diz: era uma vez um rei.
Folha: O sr. tem esperanças que o Brasil volte a ser monárquico?
Suassuna - Não tenho não. Não tenho nenhuma
perspectiva, estou falando em tese. Bom, aí você dirá,
mas você ainda é monárquico? Não, eu
não sou. Não é que eu tenha abandonado a monarquia
não. A monarquia me abandonou.
Folha - Em que sentido?
Suassuna - Acho que do ponto de vista político, do ponto
de vista do momento, do ponto de vista prático, eu coloquei
a monarquia entre parênteses. Principalmente porque em 1981
morre d. Pedro Henrique, que era o herdeiro do trono brasileiro.
E eu, apavorado, li que os dois filhos mais velhos dele eram da
TFP, um movimento da extrema-direita. Então, se você
olhar as datas, d. Pedro Henrique deve ter morrido no fim de julho
ou princípio de agosto de 81. E a minha carta, quando eu
entrei em crise e resolvi parar e abandonar tudo, foi escrita pelo
desgosto causado por essas notícias, e ela é do dia
9 de agosto de 81. Foi o desgosto de que aquele meu sonho, que eu
achava tão bonito, tivesse acabado. De um príncipe
que tomasse não o lado do Brasil oficial, mas sim o lado
do Brasil real, do povo de Canudos, que lutou e morreu por eles
em Canudos. Então, eu sempre procurei me colocar do lado
do Brasil real. Se a monarquia se revelava de extrema-direita, eu
largava a monarquia, porque mais importante do que a forma de governo
ou de regime, para mim era o povo, como continua a ser. Continuo
na posição que eu estava, ela é que aderiu
à TFP. Apoiada, inclusive por Delfim Neto. Eu tomo partido
de tudo, entre Delfim Neto e a TFP eu sou do lado da TFP. Veja bem:
de fato eu não estou nem com Delfim Neto nem com a TFP, eu
estou com o povo de Canudos, mas, se é para escolher entre
essas duas catástrofes, eu prefiro a TFP, porque é
melhor. Pelo menos eles têm uma coisa que eu respeito. Eles
têm seriedade. Eles acreditam. Só haveria um meio de
eu apoiar de novo a monarquia: seria com um príncipe da era
de Bragança que apoiasse o socialismo de Canudos com Miguel
Arraes como primeiro-ministro.
Folha - Quando o sr. escreveu aquela carta em 81, aquela declaração
pública de que estava abandonando a literatura, por que ao
invés de somente se isolar e parar de escrever precisou comunicar
isso ao público?
Suassuna - Olha, eu não pensei que iam dar tanta importância
não. Parece que eu me julgo menos importante do que vocês
me julgam. Eu fiz aquilo mais para me despedir dos leitores do "Diário
de Pernambuco", onde estava crescendo e pensei que ia ficar
naquilo mesmo. No outro dia eu tive que me esconder porque era revista,
jornal, televisão tudo atrás, em cima de mim. Eu fiquei
apavorado. Nunca pensei que tivesse uma repercussão daquela.
Um escritor que deixa de publicar não é um acontecimento
tão sério não.
Folha - Seu pai, que era governador da Paraíba, foi morto
em outubro de 30 por causa dos efeitos da Revolução.
Quarenta anos depois, no mesmo mês, o sr. inaugurou o Movimento
Armorial. Este projeto não teria sido sua resposta à
Revolução de 30, que o sr. não cansa de culpar
pela morte de seu pai e também pelo processo de vulgarização
do Brasil?
Suassuna - O Armorial foi uma resposta a esse processo de descaracterização
e de vulgarização ao qual está submetida a
cultura brasileira, que ainda está em curso. E a ligação
que teve foi porque eu tentei fazer o lançamento no Movimento
Armorial no dia 9 de outubro de 1970, porque é o aniversário
da morte de meu pai. Mas o Movimento Armorial não foi lançado
contra. Eu apenas queria que ele fosse lançado no dia da
morte de meu pai. Então, teria indiretamente uma presença
de vida. Em 70, quando a gente falava, era praticamente proibido,
porque os movimentos que falavam em cultura brasileira eram todos
de esquerda e tinham sido desbaratados pela repressão. O
movimento que procurou se rearticular, depois daí, a meu
ver, era um movimento equivocado e derrotista, que era o movimento
tropicalista. Porque eles pegaram uma visão que os americanos
difundiam na América Latina toda, do homem e de uma mulher
latino-americanos ridículos. Eles pegaram Carmem Miranda
e as rumbeiras de Cuba, juntaram num saco só e espalharam
no mundo todo a imagem do homem latino-americano. Isso era uma bandeira
americana de desmoralização e eles passaram a usar
como estandarte próprio.
Folha - Para o sr. não existe um processo de descoberta
da nacionalidade através do tropicalismo?
Suassuna - Não, pelo contrário... Eles compactuaram
inocentemente. Eu acho que foi inocentemente.
Folha - O sr. gosta de Caetano Veloso?
Suassuna - Não, não gosto. Você quer saber
o que eu gosto como música? Eu gosto de Villa-Lobos e Antonio
Madureira, coordenador do Quinteto Armorial. Gosto de Guerra Peixe.
Aí a pessoa vem dizer: mas ele é um grande poeta.
Grande poeta brasileiro para mim é João Cabral de
Melo Neto, Jorge de Lima e Janice Japiassu, a grande poetisa armorial
do Nordeste. Eu não desço daí não. Meu
nível é por aí. Bom, pode até parecer
um elitismo de minha parte, mas é mesmo. O que a gente queria
era procurar uma arte erudita brasileira em todos os campos.
Folha - Mas a quem se destinaria a arte Armorial? Ao povo?
Suassuna - Ah! Esse é um outro problema. Não sei.
As pessoas dizem a mim: me diga, mas o povo não lê
seu romance. Não lê mesmo não, está certo:
Eu nasci numa sociedade em que o povo a isso não tem acesso.
Nem por isso eu vou mudar a minha maneira de ser, porque aquele
tipo de literatura que eu faço é fundamental para
mim. Eu só posso expressar meu universo dessa maneira. É
isso que me fascina, é isso que me apaixona e eu só
sei criar movido pela paixão. Se eu fosse levar pela razão,
iria escrever novela de televisão. Mas eu sou guiado pela
paixão e o que me apaixona são essas histórias
do povo: a "História do Cavalo que Defecava Dinheiro".
Um poema inédito do autor.
ABERTURA 'SOB PELE DE OVELHA'
Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila _inevitável
meu Sangue traça a rota deste Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto _incendiado.
Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do ser,
transforma o sangue em candelabro e veiro.
Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.
ARIANO SUASSUNA(1990)
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