São Paulo, segunda-feira, 30 de julho de 1962
Neste texto foi mantida a grafia original

REFORMA AGRARIA: PRONUNCIAMENTO DE GOULART


JOÃO PESSOA, 29 (FSP) - Depois de saudar as autoridades presentes, entre as quais o governador do Estado sr. Pedro Gondim, o presidente João Goulart proferiu as seguintes palavras, durante a concentração popular a que compareceu grande numero de camponeses do interior paraibano:

Minha presença neste encontro tem, antes de tudo, o sentido de reafirmação de um compromisso de luta que o tempo só tem feito consolidar, e reafirmação de minha fé inabalavel em que a consciencia nacional, provocada pelos anseios da coletividade, há de permitir, fiel às nossas tradições, uma solução de harmonia e de paz para o mais premente problema de base desta hora, que é a sorte de milhões de brasileiros, que como verdadeiros marginais, sofrem o problema do abandono pela desorganização da vida rural da nossa patria. E é por isso que estou aqui, paraibanos, como presidente da Republica, conscio de minhas responsabilidades, sem pensar em grupos nem classes, sem me impressionar com as difamações do debate, tão cheias de paixões e tão cheias de interesses. Aqui estou, trabalhadores brasileiros, para dizer a todos quantos se encontram no campo das divergências e no proprio cenario em que elas têm se mostrado mais incandecentes, as palavras que julgo adequadas, de apelo e de advertencia, de convocação e de esclarecimento, que ajudem a formar e a construir nesta conjuntura tão amarga, palavras que poderão traduzir apreensão, mas que não deixarão de significar confiança, palavras que considero atos do meu dever irrenunciavel a proposito desse grave problema do nosso país, que é a reforma agraria.

"Não estou, paraibanos, não estou, lavradores, posseiros e trabalhadores rurais da Paraiba, não estou numa assembléia de doutores para fazer doutrina sobre o que entendo de reforma agraria. E se me encontrasse em tal situação talvez não fosse eu a pessoa mais indicada para fazê-lo, no meio do povo, no meio dos lavradores, no meio daqueles que de sol a sol outra coisa não fazem senão cuidar da terra, trabalhar a terra, viver dela e para ela, pensando nela, para si e para seus filhos, acalentando o sonho de uma vida melhor para os que são mais caros aos seus corações. Aqui nesta assembléia, trabalhadores, eu sei que posso falar e sei que serei compreendido pelos nordestinos.

"A linguagem que eu uso é a linguagem do amigo a quem o destino reservou a mais alta honra que poderá caber a um brasileiro - a de ter acesso, a de ser um chefe de Estado, mas que jamais se desligou das origens que o mantêm preso ao chão, ao solo e à terra e que tem aprendido com seu proprio pai a tratar daquela terra, do que nela se planta e do que em cima dela e com recursos se cria. Bem conheço a angustia, bem conheço as dificuldades, bem conheço os sacrificios nos anos que morei no interior da nossa patria, dos colonos, dos meeiros, dos trabalhadores que mourejam no interior do país, nas quadras, nas roças e nas fazendas brasileiras. Esta é a historia, sem duvida ainda muito mais pungente, e dolorosa no nosso Nordeste calcinado, seco e sofredor que conheço com os meus olhos, como as minhas mãos, e com o meu coração. E é por isso, trabalhadores da Paraiba, que tenho certeza de que não preciso de nenhum esforço para me fazer entendido pelo bravo povo paraibano, tanto os trabalhadores como os proprietarios rurais que escutam estas minhas palavras. Considero que a realização de um grande plano de desenvolvimento do Nordeste deve ser executado independentemente de qualquer consideração de carater politico-partidario com o mesmo sentido de continuidade e prioridade que se atribui ao trabalho no setor da defesa nacional. A politica de desenvolvimento que realiza o governo federal no Nordeste, principalmente através da SUDENE, visa os objetivos principais: construção de uma estrutura de serviços basicos, levantamento sistematico dos recursos naturais da região e os investimentos privados atraidos para a região. A continuidade desta politica, Paraiba, deve ser assegurada pelo curso a fim de que o Nordeste se integre no mais curto prazo de tempo possivel nas poderosas correntes do desenvolvimento nacional. Não vim ao Nordeste para mistificá-los com idéias de que todos os problemas da região já têm uma solução encaminhada. Não ficaria tranquilo com a minha consciencia, nem mesmo com os meus sentimentos cristãos, se deixasse de dizer que muito nos preocupa a situação de privação em que vive grande parte da população nordestina, particularmente as populações do campo, o trabalhador rural, que continuar a lutar todos os dias do ano para ter apenas um direito - o direito de sobreviver. Para milhões de brasileiros, trabalhadores paraibanos, os frutos do progresso nacional ainda são desconhecidos.

"Sabemos todos, pela corporação desses brasileiros do campo, que aqui no Nordeste representam 2/4 partes da população, a vida politica e as correntes do progresso, não se poderão fazer, dentro da falha estrutura da nossa economia agraria. Essa estrutura, a estrutura agraria em que vivemos, trabalhadores paraibanos, tem uma projeção, na segunda metade do seculo XX, da sociedade colonial organizada em bases feudais. A essa primitiva estrutura agraria devemos, em grande parte, a cronica escassez de alimentos de que tanto sofre o Nordeste e que sufoca o desenvolvimento da sua economia urbana. A menos que criemos no Nordeste uma moderna agricultura ligada ao mercado interno regional, o desenvolvimento industrial se processará sempre com os estados intransponiveis.

"E' a primeira condição para que exista essa agricultura moderna, para que exista agricultura em termos de desenvolvimento ligada ao interesse do novo e da região, e a primeira condição que exige essa agricultura, repito, é que a população trabalhadora tenha maior acesso aos frutos do seu proprio trabalho. Tenho insistido, paraibanos, tenho reafirmado, brasileiros, repetidas vezes, para que se promova a reforma da estrutura agraria no país a fim de que a organização agricola, desimpregnada de autentico espirito de empresas, tenha os frutos do seu trabalho repartido de maneira mais justa. No Nordeste, mais do que em qualquer outra parte do país, é este um problema a exigir urgente solução, porque a reforma agraria que compreendo e que prego e que o Brasil exige, não é a que consiste em transformar trabalhadores em proprietarios e proprietarios em trabalhadores, mas a reforma que, atendendo a uns e a outros, permita associar a todos com direitos e deveres humanos fixados num esforço conjunto pelo bem estar da sociedade, fazendo cessar, acima de tudo, a exploração do homem pelo proprio homem, já abrindo as perspectivas de uma utilização racional da terra para quem esteja em condições de aproveitá-la. O interesse social deve ser o mais legitimo fundamento que há de justificar a sua propriedade e o seu dominio. A respeito desse problema, Paraiba, há varios anos venho pregando essa reforma. Nunca disse coisa diversa da que ainda recentemente sustentava no Congresso de Proprietarios Rurais, onde estivesse. A reforma agraria não podia apenas significar o fato de tirar terra de um para dar aos outros. É preciso também, Paraiba, ter acesso àquela terra, àquela terra que não pode ser privilegio de poucos, mas há de ser tambem uma riqueza comum da qual possam participar todos os brasileiros, especialmente aqueles que nela vivem, aqueles que nela trabalham, aqueles que por ela lutam. A reforma agraria evidentemente há de ter como consequencia a extinção dos latifundios daqueles que, sem qualquer utilidade social, apenas aguardam a valorização resultante de circunstancias. É claro, no entanto, que isso somente não é e nem seria um quadro de reforma agraria no Brasil e muito menos de uma reforma brasileira, que deve ser um imperativo da realidade social e economia de nossa patria. A reforma que desejamos, Paraiba, é uma reforma brasileira para atender aos interesses dos trabalhadores rurais brasileiros. É preciso que se afirme, Paraiba, que não desejamos, ninguem deseja, importar uma reforma para implantá-la no Brasil. O que nós desejamos é uma reforma tipicamente nacional, uma reforma que atenda aos interesses dos trabalhadores rurais da nossa pátria. Uma reforma, Paraiba, sobre a qual se plante somente uma bandeira, a bandeira auriverde de nossa patria. Não desejamos reformas de outros paises. A reforma da Russia pode ter servido ao russo no instante em que foi praticada, a reforma da China pode convir aos chineses, mas a reforma que convem ao Brasil é a reforma desejada pelo povo brasileiro, é a reforma que, para o atendimento da nossa patria é o atendimento dos interesses do nosso país, para que os homens que trabalham a terra tenham acesso a ela e possam melhor trabalhá-la em beneficio da nossa patria.

Sem apreensões

"A reforma agraria que desejamos e que haveremos de realizar, e para ela todos os brasileiros de boas intenções estão convocados, não é uma obra de esbulho, nem obra de espoliação, nem precisa de transformar em motivo de apreensões, porque, antes e acima de tudo, será o instrumento que garantirá, como instrumento de luta, o desenvolvimento economia e dali será, acima de tudo, uma tarefa de justiça social. É dentro dessas linhas de considerações, que retratam profundas convicções do meu espírito, que chego à terra das Ligas Camponesas que ganham o encanto dos camponeses da Paraíba, fruto do instinto associativo do nordestino. Certo de que á carga emocional que o problema de convivencia entre proprietarios e trabalhadores rurais, em muitos lugares, está provocando, havereis de compreender, pelos quadros da legalidade democratica, aspectos sombrios das lutas fratricidas Com reformas habeis, oportunas e humanas, será possivel encontrar a solução devida e esperada, a solução desejada pela nação brasileira. Bem sei, trabalhadores nordestinos, que o sofrimento inutil, o esforço dos proprietarios menos compreensiveis, o plano dos proprietarios menos realistas, na base de um tratamento menos humano de suas necessidades ou de uma retribuição mesquinha do seu suor e do seu trabalho, têm gerado, em amplas areas do Nordeste, um sentimento de inconformidade, de revolta, que, se não for contido pela esperança de melhores dias, poderá degenerar em processos explosivos, dos quais ninguem e nenhum pais poderá obter lucro. Não há de ser, porem, pelo criterio de alguns transviados do dever e do próprio sentimento de humanidade, que um problema de tal natureza há de ser apreciado. A lei exigida na Constituição, Paraiba, terá que ser, e certamente será, modificada para que a reforma agraria possa se transformar em realidade desejada por todos os brasileiros.

"Acreditamos, Paraiba, no patriotismo daqueles que haverão de se incumbir de reformar a Constituição brasileira, que não atende mais aos interesses da nação, que está atravessada um pouco porque ainda vem do regime feudal da propriedade. Acreditamos que essa Constituição há de ser reformada pelo patriotismo daqueles que sintam o dever de reformá-la, não só para avançá-la, mas para que, através dela se faça chegar à harmonia e à verdadeira paz social, isto é, possa-se chegar a um Brasil que não seja apenas das pequenas minorias, mas a um Brasil que seja dos trabalhadores tambem, que seja do povo brasileiro.

Participação

"A participação crescente das nossas populações na riqueza nacional é condição indispensavel, paraibanos, para o fortalecimento de uma solidariedade social e da estabilidade e autenticidade da propria democracia. E o sentido da minha presença aqui é precisamente para vos dizer, como presidente da Republica, que já podeis confiar, porque às vezes a sorte é a primeira das preocupações que um governo dispensa e que tem o dever de pensar na sorte daqueles milhões de brasileiros que vivem lutando no interior da nossa patria e que desejam integrar-se tambem na vida do país e participar da riqueza nacional.

"As Ligas Camponesas que criastes, porque a lei e as autoridades não vos permitiram a organização de outras entidades para a defesa da vossa classe, de vossos interesses e de vossos direitos e que, por isso mesmo, eram consideradas, por muitos que se esquecem e não viveram o suor de sua propria epoca e muitos que não vivem consoante a realidade, subversivas, em breve poderão ter suas atividades com eficiente insuspeição desempenhada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Campo, os trabalhadores rurais, que com esse direito poderão transformar-se em entidades e continuar a sua luta patriotica em defesa de suas reivindicações, em defesa de seus direitos, porque, Paraiba, se reconheçamos ao patrão, ao industrial, ao comerciante, ao fazendeiro, se reconheçamos a eles o direito de se associarem, o direito de defenderem os seus direitos e seus interesses, porque Paraiba, podemos negar o mesmo direito aos trabalhadores que vivem no interior da nossa patria? Por que podemos lesar os seus direitos, se eles lutarem pela reforma agraria? Se eles lutarem por um tratamento mais justo? Se eles lutarem por uma participação mais humana no fruto do seu proprio trabalho, como o trabalho honrado da sua familia? Com estas palavras, trabalhadores da Paraiba, eu quero deixar mais uma vez o testemunho dos meus agradecimentos ao bravo povo paraibano, às familias paraibanas, não somente às familias que vivem na capital, nesta cidade que levou o bom nome daquele grande brasileiro que todos nós, rio-grandenses, aprendemos a respeitar e admirar pela sua coragem e pela sua bravura civica. Aquele que João Pessoa que lembra Getulio Vargas, aqui nesta terra que tem a honra de ter o nome de um brasileiro dos mais ilustres e mais valorosos da nossa patria. Aqui eu quero deixar consignados meus sinceros agradecimentos à Paraiba e deixar tambem minha palavra de fé e de confiança no futuro da nossa patria, desta patria que conta com o patriotismo e a colaboração das classes trabalhadoras, que conta com a colaboração dos trabalhadores rurais, que já hoje se organizam, mas que se organizam para se defender, que, acima de tudo, se organizam para defender a sua patria, defender o seu país, defender uma estrutura agraria que impulsione a nossa caminhada pela emancipação economica. Aos paraibanos o testemunho dos meus sinceros agradecimentos. Quero tambem dizer aos camponeses que aqui estão que, infelizmente, dado a compromissos urgentes no Rio de Janeiro, não poderei comparecer, como era meu desejo, lá na sede da sua luta e do seu trabalho, na cidade de Sape. Desta vez, camponeses paraibanos, terei que cumprir novos compromissos, mas num futuro proximo, numa visita apenas de trabalho e de inspeção, numa visita apenas de dever.

Advertencia

"Percorrei aquela região do Estado da Paraiba para levar pessoalmente o meu abraço a todos os que vivem nesse pedaço da Paraiba, aos camponeses que lutam no interior deste Estado. E com estas palavras quero dizer à Paraíba, através de todas as suas classes, dos trabalhadores do campo, dos trabalhadores das cidades, dizer à indústria, ao comercio e às forças vivas deste Estados, que as palavras que prego são as palavras de fé, mas são tambem palavras de advertencia, palavras de quem deseja um Brasil em harmonia e em seguimento; é de quem deseja um Brasil em paz, um Brasil onde todos se compreendam e onde todos se entendam.

"Mas, para que haja essa paz, para que haja esse entendimento, para que haja essa compreensão que tanto desejamos, é necessario tambem que, como presidente ou como cidadão, se diga aquilo que se pensa: eu entendo que as reformas que nós defendemos visam, acima de tudo, à criação desse clima de paz e de entendimento que nós desejamos. Se nós desejassemos, Paraiba, se nós desejassemos, Nordeste, provocar a rebelião, não estariamos defendendo reformas para evitá-la, reformas para melhor atender à estrutura social e economica da nossa patria, reformas através das quais conquistaremos a justiça social que todos nós desejamos.

"Com estas palavras, Paraiba, mais uma vez o meu muito obrigado e a certeza de que dentro desses ideais, ideais cristãos e de justiça social, continuarei sempre lutando. Nem uma farsa será capaz de me fazer recuar um centimetro sequer. Não estaria aqui para trair um passado de luta e de convicção. Estou aqui, sei, para trazer à Paraiba o que tenho dito em todo o territorio nacional: a reforma agraria, em bases de justiça social, em bases de atendimento do interesse nacional, é uma realidade que se impõe, que se impõe não para mim, nem para os trabalhadores, mas para todos nós, porque ela se impõe para a tranquilidade e a felicidade da nossa patria.

"Ao finalizar, com os meus agradecimentos ao exmo, sr. Governador do Estado, a quem eu reafirmei há pouco a disposição do governo federal de, e dentro de suas possibilidades, emprestar-lhe todo o apoio e toda a colaboração, e ao agradecer ao eminente governador, eu agradeço a todos, Paraiba, a todos aqueles que vivem e que patrioticamente lutam aqui na Paraiba por um Brasil melhor, por um Brasil socialmente mais justo, por todos aqueles que desejam a paz, desejam a compreensão e a harmonia, mas para todos aqueles que sabem tambem que a paz e a harmonia não se conseguem jamais. Paraiba, sob privilegios de poucos contra o sofrimento de muitos. Esta é a verdade que levo a este Estado numa homenagem que desejo prestar a toda a Paraiba, aos trabalhadores das cidades e aos trabalhadores do campo, a esses trabalhadores do campo, a quem ainda recentemente o governo federal trouxe o minimo que poderia trazer aos seus patricios e irmãos que vivem na Paraiba. A esses camponeses, que inaugurarão amanhã alguns serviços medicos, algum serviços de assistencia, numa zona que não tem assistencia, que não tinha remedios, que não tinha nenhum meio de defender a saude da sua gente. Mas, quero dizer aos camponeses da Paraiba que nada devem ao governo por esse minimo de dever que o governo acabou de cumprir. Quem deve é o governo federal aos trabalhadores nordestinos. Quem deve somos nós, Paraiba. Quem deve são todos os homens publicos, que têm sobre os seus ombros um pouco de responsabilidade na destinação historica de nossa patria.

"Nada devem os nordestinos por estes poucos melhoramentos que recebem e esperamos e confiamos em Deus em que possamos trazer mais ainda, dentro desse minimo a que tem direito o trabalhador rural da nossa patria. Esperamos e confiamos, que todos os homens responsaveis, que o Congresso Nacional, dentro de muito pouco tempo, possa transformar em realidade essa aspiração de todos os brasileiros; é a reforma agraria brasileira, uma reforma agraria nacional que atenda aos interesses legítimos do país e dos trabalhadores do campo. Muito obrigado, Paraiba, e aqui deixo tambem a certeza do meu respeito a esse povo que luta e trabalha com tanto sacrificio; deixo a certeza do meio apoio, apoio que ainda há pouco transmiti ao eminente governador deste Estado e que estendo a todo o povo paraibano especialmente ao povo de João Pessoa, ao povo de Getulio Vargas, que aliados representaram o simbolo da luta pela emancipação economica da nossa patria."
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