Neste texto foi mantida a grafia original
 
DOS INFUSORIOS

  Carlos Heitor CONY  

O nome é feio mas era assim que se dizia então. Por qualquer motivo, e às vezes sem motivo, um parente afastado, um vizinho chegado ou até mesmo um doutor vinham em nossa casa, olhavam-me penalizado, e diziam, indefectiveis e sabios:

- Esse menino precisa de um infusorio.

Eu não tinha nada, mas bastava uma palidez qualquer, uma não-vontade de não fazer nada - e atribuiam-me estranhos e maleficos males e receitavam-me estranhos e maleficos infusorios. Eu então botava os bofes para fora, ficava realmente doente - e os adultos parece que ficavam aliviados ou satisfeitos: a droga tinha sido eficaz.

Sou daquele ignomioso tempo em que a eficacia dos remedios era medida pela ruindade do gosto: quanto pior, melhor - não havia o "slogan", que a epoca não era disso, mas todos assim pensavam e agiam. Sou do tempo do oleo de ricino - droga filha-da-mãe que baixava a moral de toda a infancia recalcitrante do bairro. Qualquer travessura mais espalhafatosa e o corretivo era programado coletivamente: no dia seguinte a rua ficava deserta. Mais tarde, soube que os fascistas usavam do mesmo recurso para abater o moral dos seus inimigos. E os pais daquele tempo não eram fascistas. Eram pais cristãos e piedosos.

Um dia surgiu a novidade: rosa-sena-maná. O nome pareceu-me bonito e perguntei se a coisa era suportavel, Garantiram-me que sim, que tinha um gosto de rosa e maná - e eu sabia o que era maná, tinha gosto de presunto ou daquilo que a gente mais gostasse. Dormi embalado, crente que se abria uma nova era em minha existencia. Rosa! Maná!

O entusiasmo durou o que duraram as rosas do Malherbe - com perdão do meu mestre João Paraguaçu: o espaço de uma manhã. Passei a tarde botando a alma pelas goelas, fiquei tão repugnado que senti nojo do meu proprio corpo Maná!

Quando fui fazer a primeira comunhão, a catequista ensinou-nos a canção:

Que doce maná

Que pão saboroso...

Ressabiado, fiz pessimo juizo das Santas Especies. E se a hostia tivesse o gosto daquele purgante? Tive uma vertigem no dia da primeira comunhão e a opinião do Senado, da Camara e do Povo Romano foi unanime: era jejum, obrigaram-nos a ficar em jejum até tarde. Mas eu sabia que não era o jejum.

Hoje, os tempos são outros. Minhas filhas temem que o mundo acabe sob o impacto de uma bomba atomica, dessas que a televisão mostra periodicamente. Esse medo eu nunca tive. Mas minhas filhas não sabem o que é o Terror, o que é temer aquelas santas e domesticas poções que me cobriam de suores frios e - como no meu caso - fizeram-me, em noite de desespero, vender a alma ao demonio. Mas isso fica para outro dia.

Publicado na Folha de S.Paulo
Data de publicação  20.nov.1964
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