Reprodução
|
|
|
O SARAMPO ANTROPOFÁGICO
A
respeito do movimento modernista, os críticos e os estudiosos
entram em sintonia num ponto: a Semana de Arte Moderna, realizada
em 1922, em São Paulo, representou um marco, verdadeiro
ponto de inflexão no modo de ver o Brasil.
Não só de ver como de escrever sobre o Brasil. Em
geral, os artistas e intelectuais de 1922 queriam arejar o quadro
mental da nossa "intelligentsia", queriam pôr
fim ao ranço beletrista, à postura verborrágica
e à mania de falar difícil e não dizer nada.
Enfim, queriam eliminar o mofo passadista da vida intelectual
brasileira.
Do ponto de vista artístico, o objetivo fundamental da
Semana foi acertar os ponteiros da nossa literatura com a modernidade
contemporânea.
Para isso, era necessário entrar em contacto com as técnicas
literárias e visões de mundo do futurismo, do dadaísmo,
do expressionismo e do surrealismo, que formavam, na mesma época,
a vanguarda européia. Desse ângulo, o modernismo
é expressão da modernização operada
no Brasil a partir da década de 20, que começava
a dar sinais de mudança (vide, no plano político,
o movimento rebelde dos tenentes) de uma economia agroexportadora
para uma economia industrial.
Esse juízo é, do ponto de vista mais geral, certeiro;
no entanto, ele não deve esconder as diferenças
no seio do movimento de 22. Diferenças de ordem política,
ideológica e estética. Na verdade, houve duas correntes
modernistas: uma de inspiração conservadora e totalitária,
que iria, em 1932, engrossar as fileiras do integralismo, e outra,
mais crítica e dissonante, interessada em demolir os mitos
ufanistas e contribuir para o conhecimento de um Brasil real que
não aparecia nas manifestações oficiais e
oficiais da nossa cultura. O pressuposto essencial de 22, o autoconhecimento
do País, tinha a um só tempo de acabar com o mimetismo
mental e denunciar o atraso, a miséria e o subdesenvolvimento.
Mas denunciar com uma linguagem do nosso tempo, moderna, coloquial,
aproveitando o arsenal estilístico e estético das
inovações vanguardas européias.
Essas duas correntes se delineiam em 1924, com a publicação
do primeiro manifesto de Oswald de Andrade, Pau Brasil, no "Correio
da Manhã". Nele já estava inscrito o lema que
guiaria toda a atividade artística e intelectual da ala
crítica modernista: "A língua sem arcaísmos,
sem erudição. A contribuição milionária
de todos os erros. Como falamos. Como somos". A outra corrente,
conservadora, que iria opor-se a Oswald de Andrade, seria conhecida
por verde amarelismo, cujo batismo mostra bem a filiação
nacionalista e xenófoba: um canto de amor, cego e irrestrito,
às "glórias pátrias". Em 1928,
essa oposição recrudesce. E, com ela, a politização
do modernismo. Verde-amarelismo transmuta-se em Anta; Paulo-Brasil
deságua no movimento antropofágico.
Neste mês de maio faz 50 anos que o inquieto, o irreverente
e zombeteiro Oswald de Andrade escreveu o manifesto literário
antropofágico. De lá para cá muita coisa
mudou no Brasil. Tanto política como culturalmente. Apesar
de marcado ainda por traços de dependência, o País
se industrializou nas últimas décadas; houve mudanças
sociais e econômicas significativas. Se não quisermos
apenas celebrar ingenuamente a data, temos de nos perguntar: teria
ainda alguma coisa a dizer e a ensinar o manifesto literário
escrito em 1928?
Para isso, seria preciso situar o núcleo da antropofagia,
que Oswald de Andrade, aliás, nunca formulou clara e explicitamente;
seu manifesto foi escrito numa linguagem elíptica, repleta
de ambiguidades e sem ligação explícita entre
as frases. Mas, mesmo assim, dele é possível extrair
algumas formulações. O que o caracteriza é
a retratação do caráter assimétrico
da nossa cultura, onde coexistiam o bacharelismo de Rui Barbosa,
ou as piruetas verborrágicas de Coelho Neto, junto com
as experiências vanguardistas do pintor Portinari. E hoje,
de um lado, a moda de viola e a música sertaneja; doutro
lado, a bossa nova e o cinema novo. Essa mistura, por assim dizer,
era vista como resultado do desenvolvimento histórico no
Brasil que, apesar de unitário, apresenta um abismo entre
os aspectos arcaicos e modernos, entre as favelas e os arranha-céus,
entre os guardadores de carro e os "shopping-centers",
entre Embratel e Piauí.
*
O
manifesto antropofágico tocou no cerne do capitalismo no
terceiro mundo: a dependência. Ou pelo menos captou seus
reflexos no plano da cultura. Denunciou o bacharelismo das camadas
cultas, que permanecem alheadas da realidade do País, reproduzindo
os simulacros dos países capitalistas hegemônicos.
Ironizou a consciência enlatada de largos setores do pensamento
brasileiro, que se comprazem, quando muito, em assimilar idéias,
jamais criá-las. Se Oswald de Andrade teve a lucidez de
ridicularizar com o mimetismo que tanto seduz o intelectual solene
e bacharel, ele não caiu no equívoco de fechar as
portas do País do ponto de vista cultural. Ao contrário,
sua formulação em torno da "deglutição
antropofágica" exige o remanejamento das idéias
mais avançadas do Ocidente em conformidade com a especificidade
de nosso contorno social e político.
Nesse ponto é difícil negar sua atualidade. Ademais,
a estrutura social que a antropofagia reflete e denuncia ainda
não mudou em seus aspectos fundamentais. A industrialização
das últimas décadas, realizada sob a égide
do capitalismo concentracionista, aguçou ainda mais o desenvolvimento
desigual em nosso País, trazendo, de um lado, sofisticação
e modernização tecnológicas e, doutro lado,
engendrando bóias-frias e marginalidade urbana. O Brasil
em que Oswald escreveu o manifesto antropofágico e o Brasil
de hoje é ainda o mesmo, ostentando, entre outras coisas,
"berne nas costas e calosidades portinarescas nos pés
descalços".
*
A
retomada oswaldina na década de 60 sobretudo pela música
popular (através do movimento tropicalista), tem a sua
razão de ser em parte na persistência dessa estrutura
social. Ao contrário da década de 40 - época
em que foi injustamente criticado de escritor desleixado e superficial
- Oswald de Andrade goza, nos dias de hoje, de enorme receptividade,
principalmente junto ao público universitário. Ao
lado de Mário de Andrade, que forma o outro pólo
da moderna literatura brasileira, é impossível compreender
o sentido e a dinâmica do movimento de 22 sem levá-lo
em conta.
Nesse sentido, o manifesto antropofágico é um sarampo
que pegou fundo e de maneira duradoura a cultura no Brasil.
|