DISCUTIDA AINDA EM NOSSOS DIAS, COMPLETA 40 ANOS A "SEMANA
DE ARTE MODERNA"
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 8 de fevereiro de 1962
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Sem nenhum outro intuito que não o de combater os conservadores
da epoca e de criar alguma coisa de novo nas varias manifestações
artisticas, eclodia em São Paulo, há 40 anos, movimento ainda hoje
discutido e que logo depois de iniciado teve grande repercussão
a "Semana de Arte Moderna". Durante 8 dias de 9 a 16
de fevereiro de 1922 o Teatro Municipal serviu de palco aos
jovens intelectuais, então chamados de "futuristas", que, inconformados
com o academismo reinante na literatura, na musica e nas artes plasticas,
resolveram abrir trincheiras em busca de um movimento renovador.
E o conseguiram, não obstante a ferrenha oposição de muitos, conforme
registram cronicas, noticias e outras publicações da epoca. O grupo
vanguardista - Graça Aranha, Mario de Andrade, Osvald de Andrade,
Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Renato de Almeida, Ribeiro
Couto e Guilherme de Almeida, na literatura; Vila-Lobos, na musica;
Anita Malfati, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita,
John Graz, Ferrignac, Ian de Almeida Prado e Martins Ribeiro, na
pintura; Victor Brecheret e W. Haerberz, na escultura; e Antonio
Moya e George Przrember, na arquitetura permaneceu unido,
resistindo às investidas dos que chegaram a classificar o movimento
como sendo de "loucos" e de "irresponsaveis". E foi graças a esse
elo que a "Semana de 22" alcançou o objetivo visado: despertar a
consciencia dos artistas em formação ou veteranos para a grande
batalha a da renovação das artes.
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Anita,
a pioneira
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"O que eu penso da "Semana de 22"? Foi alguma coisa de inesquecivel,
que sacudiu os meios artisticos de todo o país. E mais do que justo,
porque era realmente impossivel tolerar-se o academismo, a inercia,
o mau-gosto da epoca. Alguma coisa tinha de ser feita. Assim, eu
me orgulho de ter contribuido com uma parcela para o exito do movimento"
são expressões da pintura Anita Malfatti, apontada como a
pioneira da arte moderna no Brasil. Repousando em sua casa de campo,
no municipio de Diadema, a artista que estudou na Alemanha
e frequentou os grandes ateliês da França, Italia e dos EUA
revela que a "Semana de 22" foi o que houve de mais combatido na
epoca. "Mas o nosso grupinho salienta manteve-se
despreocupado e com isso nos impusemos". A titulo de curiosidade,
ela informa que era comum encontrarem colados atrás dos quadros
expostos no saguão do Teatro Municipal "bilhetinhos desaforados
e alguns até inconvenientes".
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Contra
o abstrato
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Enquanto
mostra ao reporter algumas das numerosas pinturas que ainda conserva,
a artista paulistana assinala que, embora o movimento de 1922 visasse
mudança do panorama artistico, no tocante à pintura, jamais se pensou
que poderia descambar para o grau de abstracionismo que hoje se
verifica. "O que mais estranho não é propriamente a repetição
que se nota na quase totalidade dos artistas abstracionistas, pois
isso se transformou num fenomeno universal, mas sim o fato de o
Brasil ser riquissimo em temas autoctones e tão poucos artistas
os aproveitam com categoria. Com isso, à exceção de uma minoria
que luta pela autentica arte nacional e eu me sinto incluida
entre eles a maioria não faz outra coisa senão repetir, nada
criando. Uma das causas que está a provocar essa situação é a influencia
comercial: porque a preocupação de muitos artistas é a de apenas
vender, deixando para segundo plano a arte em si, a pesquisa".
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Ainda
procurando
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Anita Malfatti diz que ela própria continua procurando resolver
o problema da autentica arte nacional. Seus quadros não a desmentem;
os temas regionais ali sempre estão presentes. Não faltam em suas
pinturas festas da roca, gente do campo, orações entre caboclos,
comemorações juninas etc. A artista ainda hoje pinta, embora sua
primeira exposição, na rua Libero Badaró, em 1917, causasse escandalo
pelo "modernismo" de suas linhas. Sentada numa cadeira de balanço,
Anita traça figuras, casas, arvores, balões de São João, santos
e meninos de cor esqualida com a mesma disposição e dedicação de
há meio seculo garante a pintora. "O dia em que eu
parar de pintar pode anotar, eu morro" diz Anita com os olhos
bem abertos. Ela gostaria (e tem fé mesmo) de viver como a "Grandma"
Moses, celebre pintora norte-americana falecida há poucos meses,
com 101 anos: lidar com sua arte até o ultimo sopro de vida.
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Di:
sem definição
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Outro
"sobrevivente" do movimento de reação é o pintor carioca Emiliano
Di Cavalcanti. A pergunta como definiria a "Semana" após quatro
decadas de sua realização, respondeu: "Cabe aos criticos
definir, passados os 40 anos, a realização artistica de 1922 e suas
consequencias. Nunca pude definir precisamente o que foi a "Semana"
e como ela atua dentro de mim mesmo. Só sei senti-la que é diferente.
Sinto-a como motivo categorico de afirmação na minha personalidade,
de moço turbulento e afirmação que me ensinou a perseverar nos motivos
que me levaram a realizá-la". Di, que já completou 65 anos (45 de
pintura), resguarda em suas obras as seguintes "marcas registradas":
a) Luta pela liberdade de expressão; e b) sentimento nacional. Sua
opinião é de que a "Semana" abriu um novo caminho na arte, "desafogando
o transito na velha estrada do academismo".
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Para
libertar
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Artista dos mais apreciados e discutidos, Di Cavalcanti - que certa
vez disse de si: "Eu sou escritor, poeta bissexto e caricaturista"
fala depois sobre as consequencias do movimento de 1922, de
maneira especial quanto à influencia da "Semana" no aparecimento
de numerosos artistas abstratos. "Conheciamos os movimentos
não formalistas das artes na Europa, cujas primeiras manifestações
já datavam de alguns anos. Mas o nosso movimento não tinha por finalidade
indicar caminhos ou trilhar determinada escola de arte. A finalidade
era libertar o artista de um atraso academico. Se os artistas brasileiros
ou estrangeiros, habitando o Brasil, são atualmente na maioria abstracionistas,
é porque mediocremente apegam-se a um novo academismo, demonstrando
não possuirem o espirito que dominou a "Semana de 1922".
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Arte
brasileira
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E existem em consequencia da "Semana de Arte Moderna" a autentica
arte brasileira? "É um absurdo diz o artista perguntar,
se num país como o Brasil, se há arte autenticamente brasileira,
tratando-se da arte como fenomeno cultural." Para melhor compreensão
do seu ponto de vista, acrescenta: "Toda tendencia cultural
no Brasil é uma procura de aproximação com o pensamento europeu.
Nosso problema de desenvolvimento cultural é o de alcançar o nivel
das altas culturas européias, como para a Renascença foi atingir
o nivel superior do pensamento greco-latino. Ser autenticamente
brasileiro, em arte, é assimilar o conhecimento ao sentimento, é
desenvolver a aquisição cultural, dentro do quadro das realizações
propriamente nacionais." Di Cavalcanti pode ser assim "pintado":
1) acha que nasceu pintor; 2) escreveu "Viagem de Minha Vida", em
2 volumes; 3) admite que sofreu influencia da escola de Paris, onde
plasmou sua formação estetica; 4) procura ser "acima de tudo Di
Cavalcanti"; 5) gosta demais de poesias, especialmente de Manuel
Bandeira, Ribeiro Couto, Carlos Drumond de Andrade, Cassiano Ricardo,
Frederico Schimidt e João Cabral; 6) sua primeira exposição foi
em 1916, no Rio, no Salão dos Humoristas.
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Emancipação
das artes
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Como testemunha da "Semana de Arte Moderna", o intelectual, critico
e divulgador das artes plasticas Paulo Mendes de Almeida deu este
depoimento: "A "Semana" constituiu primeiro movimento coletivo no
sentido da emancipação das artes e da inteligencia brasileiras.
Naqueles dias agitados de 22, concertos, conferencias, recitativos,
bailados e uma exposição de artes plasticas compuseram o programa
do certame, que teve por sede o Teatro Municipal, e tudo se passou
entre vaias, protestos, discussões e turbulencias, nas noites quietas
da então pacata cidade".
Após citar os nomes daqueles que sacudiram o academismo então reinante,
sugere a transcrição de breve depoimento de Mario de Andrade, ao
lhe ser perguntado: - quem teve a idéia da "Semana"? O texto do
autor de "Macunaima" tem este começo:
"Quem teve a idéia da Semanas de Arte Moderna? Por mim não seu quem
foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu. O movimento,
alastrando-se aos poucos, já se tornara uma especie de escandalo
publico permanente. Já tinhamos lido nossos versos no Rio de Janeiro;
e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde tambem
estavam Ribeiro Couto e Renato de Almeida, numa atmosfera de simpatia,
"Paulicéia Desvairada" obtinha o consentimento de Manuel Bandeira,
que em 1919 ensaira os seus primeiros versos livres no "Carnaval".
E eis que Graça Aranha, celebre, trazendo da Europa a sua "Estetica
da Vida", vai a São Paulo, e procura nos conhecer e agrupar em torno
de sua filosofia. Nós nos riamos um bocado da "Estetica da Vida"
que ainda atacava certos modernos europeus da nossa admiração, mas
aderimos francamente ao mestre. E alguem lançou a idéia de se fazer
uma semana de arte moderna, com exposição de artes plasticas, concertos,
leituras de livros e conferencias explicativas. Foi o proprio Graça
Aranha? Foi Di Cavalcanti?... Porem, o que importava era poder realizar
essa idéia, alem de audaciosa, dispendiosissima. E o fator verdadeiro
da "Semana de Arte Moderna" foi Paulo Prado. E só mesmo uma grande
figura como ele e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo
poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na "Semana".
Paulo Mendes de Almeida assevera que, pelas afirmações de Mario
de Andrade, foi um pouco de cada um daqueles reformadores que ajudaram
a objetivação de uma idéia logo aceita. Frisa, contudo: - "Não devemos
fiar-nos na modestia com que Mario de Andrade omite sua propria
e importante contribuição".
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O
mais importante
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Para Paulo Mendes de Almeida o mais importante não é apurar quem
teve a idéia da realização da "Semana", mas diagnosticar o que o
movimento pretendia, o que representava, o que alcançaria. Para
tanto, esclarece que não será tarefa facil. Diz: "Em primeiro
lugar, era o que pudesse haver de mais heterogeneo, quando aspirava
a ser principalmente heteroclita (que se desvia das regras da arte),
como proclamavam os mais afoitos. Nela, se pode dizer, somente num
ponto houve uma quase unidade ideologica: o da necessidade de mudar.
De mudar, sem que se precisasse bem o que, nem para onde. Foi isso
o que lhe deu o carater eminentemente destrutivo, sendo sob esse
aspecto, de resto, que ela ganha para nós extraordinaria importancia.
Porque o ideario mesmo era o que de mais vago se possa imaginar.
Verdade é que constituia quase uma constante o sentimento nacionalista,
o desejo de redescobrir, ou melhor, de descobrir afinal o Brasil.
Na realidade, não conseguiram fazê-lo, pois que somente mais tarde
o Brasil nos seria efetivamente desvendado, pela equipe de homens
da geração de 1930, numa tarefa a que o sr. Gilberto Freire veio
dar explicação, consciencia e conteudo em termos de sociologia."
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O
safanão
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Enfim, após outras considerações Paulo Mendes de Almeida afirma
que se sentia à vontade para afirmar que, não obstante todas as
suas falhas, a "Semana de Arte Moderna" constituiu evento da maior
relevancia. "O movimento já não era um gesto isolado de rebeldia
que presenciavamos, mas um clamor em coro, um movimento de grupo,
em que se integravam importantes personalidade, e que deu, positivamente,
um safanão naquele adormecido em berço esplendido Brasil das letras
das artes e do pensamento."
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