NEM TUDO ERA ACADÊMICO ANTES DE 22


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 24 de abril de 1994


Da Reportagem Local

O período da arte brasileira que vai de 1900 a 1922, ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo, é em geral considerado pobre e retrógrado. Teria sido vastamente dominado pelo academicismo, por um estilo preso a convenções antigas.

Para o curador do primeiro módulo da "Bienal Brasil Século 20", o professor da Unicamp José Roberto Teixeira Leite, não é bem assim.
Leite admite que nessa etapa a arte brasileira era, na maior parte, bastante desinformada dos movimentos que davam luz ao modernismo na Europa da primeira década do século —como o cubismo e o dadaísmo.
Era bastante comum no Brasil uma pintura clássica, em que o desenho era fundamental, com temas ou mitológicos ou históricos, e a noção de perspectiva consagrada desde o renascimento.

Mas, segundo Leite, também foi significativa a chegada do impressionismo e do neo-impressionismo, movimentos da segunda metade do século 19 europeu, ao Brasil dos anos 1900.
Sua forma de apreensão foi diferente da acadêmica. Os impressionistas brasileiros não se limitaram a copiar o modelo europeu ou a adaptá-lo a uma temática regional.
"Eles ensaiaram uma certa autonomia, ainda que nem todos tenham entendido bem o que eram o impressionismo e o neo-impressionismo", diz.

O caso de que Leite partiu em sua curadoria é o de Victor Meirelles (1832-1903). Pintor acadêmico de renome, Meirelles reformulou sua estética no fim da vida. Ele cita como exemplo a tela "Panorama do Descobrimento do Brasil", de 1899, que está na exposição.
"Ele fez um panorama de 38 centímetros de altura e quatro metros de largura, onde o assunto, a missa, ocupa apenas um pequeno espaço ao centro." Ou seja, fez uma grande mudança na hierarquia dos elementos em sua obra.

Outro caso curioso que Leite aponta é o de Henrique Cavalleiro (1892-1975). Impressionista, depois neo-impressionista, Cavalleiro foi morar em Paris em 1920 e ficou até 1924.
Lá, tomou contato com a obra de Cézanne e dos fauvistas (leia definição abaixo). Quando voltou ao Brasil em 1925, começou a pintar de uma maneira aproximada à de Cézanne, em que a organização do espaço na tela tem papel fundamental.
Quanto ao fauvismo, Leite diz que um brasileiro que sofreu as influências do estilo foi Navarro da Costa. "Mas, como no caso de Cavalleiro, é uma adoção tímida e atrasada de um estilo europeu."

Mais peculiar ainda, para o curador, é a figura de Helios Seelinger (1878-1965), que conviveu na Alemanha com a primeira geração expressionista e foi colega de alguns dos mais importantes artistas modernos: Kandinsky e Klee.
No entanto, o máximo a que Seelinger chegou foi um misto de "art nouveau" (estilo decorativo e romântico que foi moda na Europa entre 1880 e 1925) e expressionismo. A combinação, considerada moderna demais, provocou reações furiosas da crítica brasileira do início do século.

Leite diz que o período 1900-1920 da arte brasileira ainda é pouco estudado. Artistas como Alvim Correa, Ivan da Silva Bruhns e os citados fizeram ensaios de modernidade que não casam com a visão do período como um bloco de acadêmicos.
O mais importante deles, para Leite, foi Eliseu Visconti (1866-1944), o primeiro pintor impressionista brasileiro. "Ele foi também um dos primeiros a abraçar o simbolismo e a aplicar a técnica 'art nouveau' aqui", afirma.
Leite diz que existem alguns pontos obscuros sobre a estada de Visconti na França, entre 1893 a 1900. "Segundo Cavalleiro, ele teria conhecido Gauguin, mas eu duvido disso."

Independente de pesquisas que venham a provar a relação do pintor brasileiro com Gauguin, o curador acha que foi Visconti quem deu o primeiro passo na tentativa de uma arte brasileira autônoma. "Ali houve uma clara mudança de voz. Ele era um grande artista."
Os esforços modernistas não foram exclusivos às artes plásticas. Eles surgiram na literatura e, sobretudo, na música.
"Não se deve atribuir a iniciativa de repensar o Brasil à Semana de 1922. Ela começou antes".

Arte Já Não Copia a Realidade

A arte na passagem para o século 20 põe em questão a autonomia da linguagem artística. Ela não pode ser mais a réplica da realidade (o que até os impressionistas pretendiam fazer), tarefa que a fotografia e outras técnicas já desempenhavam com maior precisão.
É preciso "construir algo, em vez de copiar algo", como disse Paul Gauguin. Paul Cézanne (1939-1906), Vincent van Gogh (1853-1890) e Gauguin (1848- 1903) são os três principais artistas que tratam dessa questão.
Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o legado dessas três obras impulsiona os principais movimentos modernistas: cubismo, expressionismo e fauvismo. O dadaísmo também começa a surgir nesse período.

Cubismo
— Movimento ocorrido entre 1907 e 1914, protagonizado por Picasso e Braque. As figuras são quebradas em planos e reorganizadas sem a utilização da perspectiva tradicional.
As referências à arte primitiva também servem para contestar a noção de profundidade renascentista.

Expressionismo
— Surge no final do século 19 e torna-se dominante na década de 1910 em países do norte da Europa, como a Alemanha.
Busca representar o estado de alma angustiado do artista no mundo, lançando mão de formas distorcidas e pinceladas violentas, como se vê na tela "O Grito", de Munch.

Fauvismo
— Exalta a cor pura, aplicada em pinceladas selvagens ("fauve" significa fera em francês). Moreau, Matisse e Rouault praticam o estilo entre 1905 e 1907.

Dadaísmo
— Manifesta-se entre 1915 e 1922 em Zurique (Suíça), Nova York e Paris; depois chega à Alemanha. Critica o convencionalismo e a sacralização da arte nos museus.
Utiliza formas livres (recortes, colagens, relevos) e subverte a utilidade de objetos prontos ("ready-mades"). Um exemplo é "Fonte", de Duchamp, que se trata de um urinol deitado.


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