PSICANÁLISE CHEGA AO PAÍS COM MODERNISMO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 5 de junho de 1994


Surrealismo, arte moderna e psicanálise se entrelaçam nos anos 20

Quando dadaístas e surrealistas, à luz da "descoberta" do inconsciente, começam a decretar o primado das formas livres, da inconsciência se sobrepondo aos apelos da razão e do cotidiano, Durval Marcondes inicia sua descoberta de Freud.
Marcondes se aproxima dos modernistas brasileiros e publica um poema na revista "Klaxon", em agosto de 1922 –quase seis meses depois da Semana de Arte Moderna, o evento revolucionário ocorrido no Teatro Municipal de São Paulo.
Seu poema se chama "Sinfonia em Branco e Preto" (leia abaixo). Vem impresso no mesmo número em que se edita "São Pedro", de Mário de Andrade, "Paulicéia Desvairada", de Luiz Aranha, e de "Antinous", de Sérgio Buarque de Hollanda.
Quando Durval Marcondes e Franco da Rocha fundam a Sociedade Brasileira de Psicanálise, em 1927, homens das letras, como Menotti del Picchia, estavam inscritos entre os 24 primeiros membros. E o movimento se alastra.
Osório César, que trabalhava como anatomopatologista no Juqueri, publica em 1929 "A Expressão Artística dos Alienados", obra subtitulada como "Estudos dos Símbolos na Arte". Estabelece ligações entre a arte e o psiquismo. César, estudante de Freud, viajou em 1931 para a então União Soviética em companhia da pintora Tarsila do Amaral.
A psicanálise começava a ocupar a atenção da sociedade brasileira e de seus intelectuais. É discutida por Oswald de Andrade em seus manifestos (para ele, a teoria de Freud é "o último romance da burguesia"), influencia decisivamente a obra do pintor Ismael Nery e, desde então, se incorpora ao imaginário dos principais escritores e artistas.
O psicanalista Theon Spanudis, que chegou ao Brasil na década de 50, abandonou a Sociedade de Psicanálise para ir ao encontro da literatura. Comprou obras de dois então desconhecidos pintores, Volpi e José Antonio da Silva. Em 1956, encenou no teatro Arena "A Tempestade", peça de sua autoria. Ali colocava cenários de Volpi e instalava em cena figurinos da mulher do pintor, Judith Volpi. E Spanudis ainda lançou três volumes de poesia, nas décadas de 70 e 80.
Acompanhando a psicanálise e a vida de Franco da Rocha, Lasar Segall (1891-1957) vai ao Juqueri, em 1942, e faz desenhos de internos. A psicanálise se cola ao modernismo para inventar o Brasil do século 20.

Symphonia em branco e preto


A minha vida era quadro negro.
Negro e triste. Sem mais nada.
Um dia ela chegou, pegou o giz e escreveu o seu nome no quadro negro.
Eu achei lindo o nome dela, assim tão branco sobre o preto.
Mas depois elle me fez mal: doiam na minha vista aquelas letras, brancas demais, brilhando daquele modo no quadro negro.

Tive medo de ficar cégo.
Peguei a esponja e apaguei o nome della no quadro negro.
Mas, continuando o olhar, eu via o nome della alvejando ainda o quadro negro.
Quadro negro + letras brancas + quadro negro + letras brancas + tonturas = 50 x letras brancas.
Tive vontade de insultal-o.
Mas não tive coragem.
Já que era assim, peguei o giz e, descabellado, rabisquei, eu mesmo, com letras bem grandes, o nome dela no quadro negro.
E o nome della
, que aparecia tão enorme, enchia todo o quadro negro.
E deixei.
Hoje eu me lembrei de vêl-o.
Espreguicei-me. Bocejei. Fui vêl-o
.
Apagara-se: não vi mais no quadro negro.
A minha vida é um quadro negro.
Negro e triste. Sem mais nada.


Poema de Durval Marcondes publicado na revista modernista "Klaxon". No poema, foi mantida a grafia da época.


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