ALFREDO 
                BOSI
                
              Quando 
                a Casa do Estudante do Brasil pensou em comemorar o 20º aniversário 
                da Semana de Arte de 22, o nome lembrado para proferir uma palestra 
                que desse o mais fiel testemunho daquele momento decisivo da nossa 
                história cultural foi o de Mário de Andrade. O grande escritor 
                foi convidado a falar, e o fez exemplarmente lendo o texto "O 
                Movimento Modernista", em sessão pública realizada no Auditório 
                da Biblioteca do Itamaraty, aos 30 de abril de 1942. 
              Em 
                tempos de metalinguagem parece oportuno refletir sobre as idéias 
                centrais da conferência de Mário: em primeiro lugar, porque elas 
                constituem um balanço considerável do que foi o movimento e, nesse 
                sentido, conservam todo o seu interesse histórico de depoimento; 
                em segundo lugar, porque pretendem dar-lhe uma interpretação; 
                e, nesse sentido, iluminam tanto a Semana quanto a perspectiva 
                cultural em que se situava Mário de Andrade; em terceiro lugar, 
                porque elas propõem aberturas a problemas relevantes de crítica; 
                e, nesse sentido, transcendem o objeto que as motivou e, a rigor, 
                o próprio pensamento crítico de Mário tal como se formulava explicitamente 
                em 1942. 
              Respeitando 
                essas ordens de significados, é possível ler o texto "O Movimento 
                Modernista" como se nele se articulassem três tipos de discurso: 
                
              1 
                - um discurso narrativo, que vai do autobiográfico ao grupal 
                e volta deste para aquele: o que dá à palestra um discreto mas 
                inequívoco tom de confidência oscilante entre o puro intimismo 
                e a memória polêmica de toda uma geração; 
              2 
                - um discurso histórico-genético, que entende situar o movimento 
                em uma dimensão temporal precisa (o primeiro pós-guerra) e proceder 
                à sua interpretação no interior da vida brasileira. O seu eixo 
                é também polêmico: a condição paulista da Semana e dos participantes 
                mais ligados a Mário; 
              3 
                - um discurso crítico e, nos momentos de mais alta tensão 
                conceitual, um discurso estético. Nele se desenvolvem ou se apontam 
                certos temas que trabalham de longa data a consciência artística 
                de Mário de Andrade: problemas de linguagem, de liberdade da pesquisa 
                formal, de vinculação do escritor com as séries social e política. 
                
              O 
                documento presta-se, como ser vê, a mais de um ponto de vista. 
                A nossa leitura, pela natureza mesma desta comunicação e pelo 
                tempo que lhe foi destinado, será, por força, seletiva. Mas, na 
                medida em que atender à realidade dos três discursos imbricados, 
                propõe-se não deixar na sombra nada de fundamental. 
              O 
                Mário maduro de 1942 tinha muito que contar; e a pretexto daquela 
                primeira comemoração oficial da Semana (pois em 32 eram bem outros 
                os cuidados do governo federal e das autoridades paulistas), deixando-se 
                tomar, confessadamente, pelo prazer das reminiscências e do desabafo 
                grupal. A Semana fora um acontecimento: devia ser descrita, interpretada, 
                submetida a juízos de valor; mas, para tomar forma, ela precisou 
                de atravessar a consciência, a vontade, o corpo de certos indivíduos; 
                e Mário foi um destes, talvez o principal deles. Como ignorar 
                as ressonâncias psicológicas tão fundas que deram ao fato uma 
                densidade passional única, talvez irrepetível? A palavra do escritor 
                pretende recuperar também aquela vibração que ser perde no registro 
                histórico quando não se pressiona o pedal da evocação. 
              E 
                não há um quê de petulantemente pessoal, até nas rupturas gramaticais, 
                neste passo evocativo? 
              "Fazem 
                vinte anos que realizou-se no Teatro Municipal de São Paulo, a 
                Semana de Arte Moderna. É todo um passado agradável, que não ficou 
                nada feio, mas que me assombra um pouco também. Como tive a coragem 
                para participar daquela batalha! É certo que com minhas experiências 
                artísticas muito que venho escandalizando a intelectualidade do 
                meu país, porém, expostas em livros e artigos, como se essas experiências 
                não se realizam in anima nobile. Não estou de corpo presente, 
                e isso abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem pra 
                dizer versos diante duma vaia tão barulhenta que eu não escutava 
                no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?... 
                Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria 
                do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?..." 
                
              A 
                confissão, a certa altura, se torna mais cerrada, envolvendo as 
                reações da família, já antes de 22 pouco disposta a ceder às bizarrices 
                do parente vanguardeiro; e o texto mistura com ímpeto e verve 
                as águas da vida doméstica com as da vida espiritual e artística 
                do jovem Mário: 
              "Foi 
                quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesso dele que 
                eu gostava, uma 'Cabeça de Cristo', mas com que roupa! eu devia 
                os olhos da cara! Andava às vezes a pé, por não ter duzentos réis 
                pra bonde, no mesmo dia em que gastara seiscentos mil réis em 
                livros... E seiscentos mil réis era dinheiro então. Não hesitei: 
                fiz mais conchavos financeiros com o mano, e afinal pude desembrulhar 
                em casa a minha 'Cabeça de Cristo', sensualissimamente feliz. 
                Isso, a notícia correu num átimo, e a parentada, que morava pegado, 
                invadiu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berravam. Aquilo 
                era até pecado mortal! estrilava a senhora minha tia velha, matriarca 
                da família. Onde se viu Cristo de trancinha! Era feio! medonho! 
                Maria Luísa, vosso filho é um 'perdido' mesmo." 
              E, 
                se memória da circunstância biográfica só tem valor quando serve 
                para iluminar, dalgum modo, a gênese da obra literária, o depoimento 
                de Mário é ainda aqui exemplar: a ira dos familiares não terá 
                sido inútil para a sua história poética: aqueceu-o e exasperou-o 
                a tal ponto que acabou lhe dando o título do seu primeiro grande 
                livro de poesia moderna: 
              "Fiquei 
                alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por 
                dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para 
                o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, 
                espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro 
                que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, 
                falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente 
                calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, 
                abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara. 'Paulicéia 
                Desvairada'. O estouro chegara, afinal, depois de quase ano de 
                angústias interrogáveis." 
              A 
                citação desse, e doutros passos, não visa a relembrar o já vasto 
                anedotário dos modernistas. Pretende, antes, sugerir o quanto 
                a obra de Mário de Andrade, não excluída a originalíssima prosa 
                do crítico, se acha comprometida com a sua experiência de homem 
                e com a constelação afetiva de que fazia parte. O escritor estava 
                consciente dos riscos teóricos dessa vinculação; em nota no parágrafo 
                mais abertamente biográfico, Mário não sabe a quem atribuir, mas 
                garante que não foi seu; sobre o encontro do grupo carioca (Ronald 
                de Carvalho, Ribeiro Couto, Renato Almeida, Manuel Bandeira...) 
                com o grupo paulista; sobre a intervenção decisiva de Graça Aranha 
                e Di Cavalcanti; sobre o patronato audacioso de Paulo Prado... 
                Os nomes vão configurando um universo preciso e datado de referências, 
                de tal sorte que, a partir dum dado momento, a história da Semana 
                vira crônica dum grupo. Mário pontua o tempo que correu de 1917 
                a 1922 registrando as andanças dalguns escritores e artistas que 
                viviam até o fundo a boemia literária em meio a uma São Paulo 
                de costumes ainda provincianos, embora já materialmente lastreada 
                para erigir-se em centro industrial, em metrópole. 
              São 
                poucas páginas, mas valem como uma célere montagem de primeiros 
                planos em uma narração fílmica. Assiste-se às fugas desabaladas 
                dentro da noite no Cadillac verde de Oswald de Andrade, para o 
                Alto da Serra, para a Ilha das Palmas, onde os vanguardeiros liam 
                uns aos outros as próprias obras-primas (ó eterna e insuspeitada 
                arcádia!); ouvem-se conversas dos que tinham chegado há pouco 
                da Europa e visto nada menos do que Picasso e conversado com Romain 
                Rolland... E vai-se ver, não é que existem em São Paulo, quadros 
                de Lasar Segal, "muito admirado através das revistas alemãs..."? 
                depois, espetáculo maior, a Semana. Depois, de 22 a 30, os salões 
                que se abrem para acolher os "enfant terribles" e tranformá-los 
                sempre que possível, em "enfants gâtés". 
              Mário 
                faz a ronda desses salões e lhes atribui uma importância que hoje 
                parecerá estranha, talvez excessiva. Fique para a sociologia da 
                vida literária o exame detido dessa intersecção de arte e mundanidade: 
                o fato é que ela existe no mundo moderno, pelo menos desde que 
                se consolidou o mecenato nas cortes da Renascença. No texto, a 
                ênfase é posta na gratuidade da "maior orgia intelectual que a 
                história artística do país registra". A bem da verdade, convém 
                lembrar que as coisas começaram séria e modestamente nas reuniões 
                das terças-feiras, em casa do próprio Mário, na rua Lopes Chaves: 
                aí, "a arte moderna era assunto obrigatório e o intelectualismo 
                tão intransigente e desumano que chegou mesmo a ser proibido falar 
                mal da vida alheia". Só mais tarde vieram os salões de Paulo Prado, 
                de Dona Olívia Guedes Penteado, de Tarsila do Amaral. 
              Ora, 
                quando fraseio narrativo parece que vai encalhar nas areias dum 
                descriticismo glutão, entre memórias de esplêndidos almoços luso-afro-brasileiros, 
                de bailes desenvoltos da "alta", de viagens pelo Amazonas e chegadas 
                à Bahia..., reponta na escrita sensível mas pensadas de Mário 
                o fio dum outro discurso: histórico, ainda, mas já voltado para 
                a interpretação, para a descoberta de gênese social do movimento. 
                
              A 
                atitude de espírito dos modernistas, entre 22 e 30, qualificada 
                como euforia e "cultivo imoderado do prazer", significa, para 
                Mário de Andrade, uma expressão agônica, paroxística, duma classe 
                aristocrática na iminência de ver cair por terra o poder e a glória. 
                
              Vinculam-se 
                então a crise de status de velhos troncos paulistas em face da 
                burguesia e do imigrante e a gratuidade de espírito, a inconsciência 
                festiva que reuniu Prados, Penteados e Amarais aos inconoclastas 
                de 22. 
              Recortemos 
                alguns trechos mais assertivos: 
              "O 
                nosso sentido era especificamente destruidor. A aristocracia tradicional 
                nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa germinação de 
                destino - também ela já autofagicamente destruidora, por não ter 
                mais uma significação legitimável. Quanto aos aristôs do dinheiro, 
                esses nos odiavam no princípio e sempre nos olharam com desconfiança. 
                Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro 
                nos acolheu. Os italianos, os alemães, os israelitas se faziam 
                de mais guardadores do bom senso nacional que Prados e Penteados 
                e Amarais." 
              * 
                
              "Junto 
                disso, o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo 
                seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao 
                extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo 
                embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo 
                prepotente, era uma aristocracia do espírito. Bem natural, pois, 
                que a alta e pequena burguesia o temessem (...) Uma coisa dessa 
                seria impossível no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, 
                mas apenas alta burguesia riquíssima. E esta não podia encampar 
                um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista. 
                A burguesia nunca soube perder, e isso é que a perde. Se Paulo 
                Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, tomou a 
                peito a realização da Semana, abriu a lista das contribuições 
                e arrastou atrás de si os seus pares aristocratas e mais alguns 
                que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto 
                a burguesia de classe como a do espírito." 
              É 
                um pensamento que tem a sua coerência interna. Constrói-se mediante 
                um esquema de oposições cerradas e nelas se assenta: aristocracia 
                versus burguesia; nobreza de São Paulo versus classe alta do Rio; 
                homens da terra versus imigrantes; gratuidade dos decadentes versus 
                bom senso dos ascendentes. 
              Visto 
                de fora e de longe, porém, e confrontado com a dinâmica social 
                dos anos 20, o sistema se revela inadequado, ou, pelo menos, discutível. 
                Admitir a existência duma "nobreza" como classe à parte, distinta 
                da alta burguesia, parece um desvio de abordagem peculiar a quem 
                privilegia um certo grupo, por motivos de familiaridade, ligados 
                antes a estilos de vida que a situações sócio-econômicas específicas. 
                Mas não se trata aqui de discutir "in abstracto" a exatidão sociológica 
                dos termos usados por Mário de Andrade, pois estaria em jogo toda 
                uma leitura da história brasileira em termos de "estratos feudais:" 
                em uma sociedade que, a rigor, desde a Colônia, se articulou em 
                sistema de mercado, capitalista, logo incompatível com entidades 
                pré-mercantis do tipo "aristocracia", "nobreza". De resto, o debate, 
                elucidativo em torno do tema é recente, e Mário não o teria alcançado 
                nem pressentido. O que importa é relevar, na tela do seu discurso 
                interpretativo, uma sensibilidade atenta aos nexos que efetivamente 
                existem entre grupos restritos da sociedade e certas posturas 
                culturais que se opõem, ou parecem opor-se em um dado momento, 
                à ideologia difusa, ao "bom senso" da maioria. 
              Não 
                importa que, isolando extremamente um grupo e chamando-o "aristocrático", 
                Mário tenha sido infeliz sociólogo: a sua observação dos fatos 
                é certeira e espera duma sociologia mais feliz análise exata do 
                fenômeno. 
              Se 
                ao indicar a gênese social do Modernismo, Mário não pôde desembaraçar-se 
                dos liames que o atavam a cerca de significados ideológicos, ao 
                reconhecer o alcance criador ele soube dizer coisas definitivas. 
                
              A 
                messe aí é rica, e a tarefa agradavelmente difícil é escolher 
                temas que rendam uma discussão de caráter conceitual. Como dado 
                prévio, não se pode esquecer que, na altura da conferência, Mário 
                já tinha conseguido dar boa forma a algumas idéias críticas fundamentais 
                sobre expressão e construção na obra de arte e sobre o seu grau 
                de dependência em face das séries social e política. De 38, por 
                exemplo, é o ensaio "O Artista e o Artesão", exame aturado das 
                relações entre técnica, sociedade e indivíduo na criação artística. 
                De 39 o estudo, breve mas intenso, sobre a pintura de Cândido 
                Portinari, no qual se acha um ponto de intersecção entre a esfera 
                plástica e a esfera mimética do quadro. E do mesmo 42, ano da 
                conferência que nos ocupa, a bela aula sobre a "atualidade de 
                Chopin", espécie de medalhão onde uma leitora intuitiva como d. 
                Gilda de Mello e Souza vê desenhar-se em máscara, o rosto do próprio 
                Mário, artista puro e homem do seu tempo. 
              Lastreado 
                por tantos anos de reflexão crítica, Mário, ao enfrentar a tarefa 
                de fazer o balanço do Modernismo, reconhece neste a convergência 
                de três princípios de base: o direito permanente à pesquisa estética; 
                a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização 
                duma consciência criadora nacional. 
              O 
                primeiro tópico, e só ele, privilegia o nível estético. Nele se 
                resumem todas as lutas pela liberdade de linguagem e da construção 
                literária que foram a glória mais legítima do movimento. Ao desenvolvê-lo, 
                Mário volta a teorizar sobre a realidade duma língua brasileira, 
                especialmente duma sintaxe brasileira que recebera foros de escrita 
                literária com o Romantismo consciente de Alencar, sofrera um processo 
                repressivo no interregno realista-parnasiano, mas pudera, a partir 
                dos modernos, impor-se de novo como fator de pesquisa poética 
                e musical. E, tema recorrente em todo o seu itinerário crítico, 
                retorna também a opinião segundo a qual, ao lado do Modernismo, 
                só o Romantismo, como estado de espírito congenialmente antiacadêmico, 
                é um paradigma para o pensamento de Mário crítico: graças a ele 
                teria sido possível à arte brasileira recorrer sem timidez às 
                matrizes folclóricas, à cultura índia, negra e mestiça, à mais 
                genuína tradição popular, e passar daí à revolução. O paralelo 
                que Mário de Andrade estabelece guarda o sabor das grandes reconstruções 
                idealistas da história propostas por um Dillthey ou por um Spengler: 
                
              "Me 
                refiro ao "espírito revolucionário romântico, que está na inconfidência, 
                no Basílio da Gama do Uruguai, nas liras de Gonzaga como nas "Cartas 
                Chilenas" de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou 
                o estado revolucionário de que resultou a independência política, 
                e tive como padrão bem briguento a primeira tentativa de língua 
                brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão necessário 
                como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30 em diante, 
                e também teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização 
                da linguagem. A similaridade é muito forte."
               
                Nos outros dois tópicos aperta-se o vínculo entre arte e realidade 
                social fala-se em inteligência artística brasileira, em consciência 
                criadora nacional. Resulta assim, em nível mais abstrato, sempre 
                a dupla visada de toda grande crítica, atenta à natureza e à função, 
                à estrutura e à gênese da obra. 
              Ora, 
                se o discurso caracterizado de Mário caminha todo para demonstrar 
                que o Modernismo foi, ao mesmo tempo, pesquisa e invenção feliz 
                duma linguagem artística e movimento "irrestritamente radicado 
                à sua entidade coletiva nacional", surpreenderá um tanto o "mea 
                culpa" ou o "nossa culpa" severo com que fecha a palestra. 
              Os 
                vinte anos que separavam o conferencista de 42 da Semana de Arte 
                Moderna marcaram esse homem excepcionalmente sincero com à arte, 
                com o próximo, consigo mesmo. O adensamento ideológico da década 
                de 30, o Estado Novo e a 2a Guerra, sob cujo impacto falava, dilaceravam 
                a sua consciência e lhe propunham, sem ressolvê-lo, o problema 
                das relações entre o artista e o homem inteiro. E, precisando 
                de definir o que tinha sido a inteligência paulista de 22, de 
                que ele fora, com Oswald, o mais ativo mentor, é com palavras 
                de fogo que o faz: 
              "Se 
                tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude 
                interessada diante da vida contemporânea. E isso era o principal. 
                Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente confessional, 
                que terminarei este discurso falando mais diretamente de mim. 
                Que se reconheçam no que eu vou dizer os que puderem. (...) Minhas 
                intenções me enganaram. Vitíma do meu individualismo, procuro 
                em vão nas minhas obras, e também nas de muitos companheiros, 
                uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. 
                Tem, mas é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. 
                Estou repisando o que já disse a um moço... E outra coisa senão 
                o respeito que tenho pelo destino dos mais novos, se fazendo, 
                não me levaria a esta confissão bastante cruel, de perceber em 
                quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo. Francos, 
                dirigidos, muitos de nós temos às nossas obras uma caducidade 
                de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos 
                combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado 
                a caducidade utilitária do nosso discurso de maior angústia do 
                tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos 
                quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar 
                os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E, 
                se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma 
                vida trabalhada, não me vejo uma só vez pega a máscara do tempo 
                e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, lhe fiz de longe 
                umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz." 
              Essa 
                lucidez amarga dum escritor que viveu como poucos o dilema nacionalismo/internacionalismo, 
                engajamento/esteticismo, não deve servir de prova fácil de acusação 
                a 22 e, muito menos, ao intelectual exemplar que foi Mário de 
                Andrade. Por outro lado, a severidade excessiva da autocrítica 
                não nos deve induzir ao psicologismo de tudo explicar em termos 
                de infundados sentimentos de culpa: o que resultaria em uma absolvição 
                rápida e cômoda passada a todos quantos trabalhamos com a inteligência 
                e a palavra. 
              Devemos, 
                antes, ser fiéis ao texto e a quem o ditou. Isto é: devemos suportar 
                o peso da contradição que foi apontada e não resolvida. As palavras 
                de Mário de Andrade derivam sua força inquietadora dum universo 
                que as transcende. Universo que abarca todas as conquistas do 
                Modernismo, sim, mas também a defasagem entre a praxis artística 
                e a praxis social, o tempo da criação e o tempo da ação. É um 
                problema candente que, uma geração atrás, foi reproposto por homens 
                da força dum Sarte, dum Brecht, dum Vittorini, dum Camus, e cuja 
                formulação, hoje, passa por um conúbio qual a "subversão da escrita" 
                vem a ser a mais violenta e eficaz das revoluções. Que estranhos 
                recados nos manda a impotência! 
              Mas 
                a palavra de Mário guarda todo o desconforto duma tensão não removida.