HUMOR E POLÍTICA NA HERANÇA DA SEMANA


Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 17 de fevereiro de 1982

"Em arte não há progresso. O progresso só existe para as coisas materiais e na bandeira brasileira... Os modernos também passarão, como passaram os românticos. Ninguém é dono do tempo."
Tal inequívoco prognóstico não partiu, como se poderia imaginar, de algum conservador irritado com as diabruras dos garotos de 22, e sim de alguém bem próximo a eles, uma espécie de executive manager —conforme sua autodefinição— da Semana de Arte Moderna de 22, Rubens Borba de Moraes, um dos cérebros mais privilegiados da terra do jaburu.
A frase acima foi escrita em setembro de 1922. Inserida num artigo escrito por Rubens de Moraes para a revista "Klaxon", porta-voz oficial dos modernistas de 22, dá a exata dimensão a que estava circunscrito o movimento. Dimensão essa que Mário de Andrade analisaria, posteriormente —em janeiro de 1940. "O modernismo" —sentenciava Mário— "tinha de se completar, intervindo na política também. O modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar."
Foi justamente o que aconteceu. Para Rubens Borba de Moraes, mais do que um movimento artístico promulgado em nome de uma nova ordem (ou desordem), a Semana serviu, prioritariamente, para que os jovens candidatos a gênio de 22 "tomassem consciência do problema político do País". Curiosamente, o então jovem Rubens de Moraes —hoje com 83 anos e morando numa isolada e belíssima chácara em Bragança Paulista— previra o rumo dos acontecimentos. Chegou, na época, até a escrever um artigo para 'Klaxon', citando Bergson, em que dizia algo como "ninguém tem tempo a perder para escrever 500 páginas, como Zola ou Eça de Queirós".
"Foi assim que, logo após a Revolução de 24, fundamos uma sociedade com o objetivo de esclarecer a população sobre o voto de cabresto e as maquinações do Partido Republicano. Dessa sociedade, da qual participavam 12 pessoas —inclusive o Mário e o Oswald— nasceu o embrião do Partido Democrático, o início de um esforço conjunto para se repensar o Brasil a fundo."
Os jovens neófitos da política tupiniquim, tomaram, posteriormente, parte na Revolução de 30, "como conspiradores", explica Rubens. "Eu, pessoalmente, cheguei a ir até Buenos Aires para convencer o Luís Carlos Prestes a chefiar a Revolução. Ele me disse que iríamos servir de comida para os políticos e rejeitou o convite".
Não demorou duas semanas após Getúlio tomar o poder, e os modernistas de 22 reconhecerem que "não era bem aquilo que desejávamos". Oswald, com toda a certeza, era um exemplo singular de fascinação pelo poder. "Queria, a todo custo, ser senador, mas o Prestes não o levava muito a sério". Os outros, desiludidos, resolveram unir esforços que convergiam para o desenvolvimento cultural do país. "Tivemos, então, a idéia de fundar a primeira escola de Sociologia e Política do Brasil. O Roberto Simonsem entrou com o dinheiro e a repercussão política foi grandiosa. Posteriormente, criamos o Departamento de Cultura de São Paulo (hoje Secretaria Municipal), em 35, com o apoio do Fábio Prado (primo-irmão de Paulo Prado, que apoiou a realização da Semana de 22).
Em 37, com o golpe, Fábio foi substituído por Prestes Maia na Prefeitura de São Paulo. "O Prestes obstruiu muitos dos nossos planos, entre os quais a instalação de bibliotecas nos bairros da cidade".
Na época, Rubens assumia a direção da Biblioteca Municipal e preparou sua vingança. "Ele mandou esculpir uma estátua de uma mulher com um livro sobre o ventre e me encomendou uma epígrafe". Rubens não titubeou. Foi buscar inspiração na "Divina Comédia", de Dante, mais especificamente no inferno dantesco —"percam todas as esperanças todos os que entram aqui...". Prestes Maia não gostou e Rubens foi demitido.
Como se vê, o humor cáustico era característica marcante dos meninos de 22. Concessões, só para amigos. "O Graça Aranha, por exemplo, era um bocado convencido e, nas vésperas da morte de 'Klaxon', resolveu que os dois últimos números da revista seriam dedicados a ele. Chegou e foi logo ditando, para mim, o artigo que deveria escrever em seu louvor!" Mário foi um dos únicos a recusar a imposição de tão discutível elegia. Oswald era suficientemente cínico para não levar a sério o homenageado. "Imagine que não poupava sequer os amigos mais íntimos, que haviam lutado em 32, como Guilherme de Almeida, classificando seus poemas de ufanistas". De qualquer modo, mesmo com a separação do grupo, as brigas entre Mário e Oswald, as consequências da Semana de 22 ainda são visíveis. Como disse o autor de Macunaíma, "a literatura brasileira aí está bastante sã. Adulta já? Quase adulta..." (janeiro de 1940).

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