MARCELO COELHO
Da equipe de articulistas
O centenário de nascimento de Oswald de Andrade (1890-1954)
deu forma oficial a uma espécie de culto religioso. O culto
a Oswald de Andrade pode ser tão tolo quanto o culto a Ruy
Barbosa. Oswald de Andrade transformou-se num logotipo para acontecimentos
patrocinados pela Secretaria da Cultura. Ele, o irreverente máximo,
inspira a reverência.
"Ôswald": na pronúncia incorreta do nome,
forma-se uma boca oval de admiração basbaque. O certo
é falar "Oswald"; mas seguir essa recomendação
já surge como sinal de pedantismo. Enquanto isso, "Oswald
de Andrade" é até o nome de um colégio
em São Paulo. Nome de colégio... Ironicamente, Oswald
transformou-se de tabu em totem. O antropófago foi devorado
pela banalização.
O pior é que, para manter-se o totem de pé, insiste-se
na sua condição de "maldito", de "transgressor",
de "rebelde". Mas o respeito à rebeldia é
uma contradição em termos. O culto aos iconoclastas
é, na verdade, sintoma de esgotamento cultural. Os modernistas
de 1922 enfrentaram heroicamente as convenções da
época; nada mais convencional e menos heróico, hoje
em dia, do que voltar ao eterno elogio do "inconformismo"
que marcou aquela época. Era preciso combater a linguagem
bacharelesca, o preciosismo gramatical, as artificialidades da oratória,
a verborragia brasileira, em favor de uma apreensão mais
pura, mais rápida, mais concreta do mundo moderno o
mundo moderno, tal como era visto em 1922: com seus bondes elétricos,
fonógrafos, chevrolets, fox-trotes e maxixes...
O fato é que as regras gramaticais, a lógica cartesiana,
as valsas antiquadas e os poemas de Bilac se perderam na noite dos
tempos não tanto por terem sido substituídos por formas
mais complexas de expressão esta era a utopia do modernismo
, mas principalmente em razão de um naufrágio educacional
e cultural generalizado. Logo chegará o dia em que, para
o ginasiano médio, Casimiro de Abreu será tão
incompreensível, dissonante e "hermético"
quanto os poemas dadaístas de Tristan Tzara. Coelho Neto
e Oswald de Andrade, Ruy Barbosa e Carlos Drummond correm o risco
de estar atualmente do mesmo lado, confundidos numa coisa só,
diante de barbárie absoluta.
Oswald de Andrade e os modernistas correm um risco suplementar:
o de, pelo fato de terem atacado o convencionalismo e a retórica
passadista, serem tomados como heróis e fiadores de um processo
de destruição cultural sem limites, onde o mero analfabertismo
passe a ser visto como ato legítimo de "transgressão"
e de "autenticidade".
Vende-se nas bancas um livrinho intitulado "O Pensamento Vivo
de Oswald de Andrade", a capa é de péssimo gosto,
a contracapa anuncia: "Estes homens mudaram o modo de pensar
da humanidade ": ao lado de Oswald, há volumes dedicados
a John Lennon, Marx, Chaplin, Nietzsche, Buda, Gandhi e Guevara.
Faltariam talvez, nessa "geléia geral", Allan Kardec,
ou Omar Cardoso, ou a Mãe Menininha do Gantois. Para não
dizer Chacrinha. O livro, aliás, até que é
bem feito: há uma introdução biográfica
bastante sóbria, seguida das frases e pensamentos de Oswald.
Os pensamentos a defesa do matriarcado, a influência
de Engels e de Bachofen, as tiradas disciplinadamente marxistas
do tempo em que Oswald foi "militante" só
contribuirão, certamente, para tumultuar tudo ainda mais.
Já as frases de Oswald garantem-lhe a fama. A presença
de Oswald de Andrade na cultura brasileira se faz como que a despeito
de sua obra sabidamente desigual e cheia de tropeços.
Não é fácil lembrar de um poema ou de um trecho
literário de Oswald, como ocorre com Drummond, Manuel Bandeira
ou Fernando Pessoa; o que se grava na memória são
algumas frases: "a massa ainda correrá o biscoito fino
que fabrico" e, principalmente, "tupi or not tupi, that's
the question". O trocadilho é verdadeiramente genial.
As tiradas polêmicas, as gozações, as respostas
engraçadas compõem, até hoje, o principal na
figura de Oswald de Andrade.
Produziu-se um fenômeno interessante. Primeiro, Oswald não
foi levado a sério: gozador, sátiro, embrulhão,
trocadilhista, grã-fino, militante do PC, era visto como
uma figura folclórica e curiosa. Mesmo Mário de Andrade,
que não estava isento da tentação de "épater
le bourgeois", escreveu certa vez que Oswald era "um improvisador
sem tese", com "admiráveis qualidades de 'clown'".
Surgiu depois o movimento inverso. A piada oswaldina sacralizou-se;
o "tupi or not tupi" ganhou uma profundidade de oráculo;
a blague deixou de suscitar risadas, produzindo olhares arregaladas
de admiração. Mais do que cultuar o lado corrosivo
e "demolidor" de Oswald, interessaria ver o que, na verdade,
motivava o seu sarcasmo. A graça instantânea de algumas
frases e poemas seus está em ridicularizar as formalidades
literárias, as pretensões pomposas do discurso dominante
no Brasil dos anos 20. Chamar Ruy Barbosa de "uma cartola na
Senegâmbia", por exemplo, é explorar o contraste
entre o Brasil real - selvagem, inculto - e o mundo das ilusões
"civilizadas" em que transitava sua elite. A cidade de
São Paulo, orgulhosa de sua "prosperidade" e de
seu "progressismo", ridiculamente convivia com o "atraso"
tropical. Do mesmo modo, a linguagem bacharelesca e as preocupações
com a correção gramatical opunham-se, numa luta inglória,
à fala cotidiana da população.
Seria preciso lançar sobre a realidade brasileira um olhar
"novo", "puro", livre de ilusões. "Aprendi
com meus filho de dez anos/ Que a poesia é a descoberta/
Das coisas que eu nunca vi." Descoberta do Brasil, registro
fotográfico das cenas urbanas, reprodução da
linguagem coloquial, abertura para as sensações de
um mundo exterior "dinâmico" e "vibrante"
com seus automóveis e aeroplanos: há uma espécie
de euforia visual nos poemas modernistas, e a referência de
Oswald a seu "filho de dez anos" revela a busca de uma
pureza infantil de percepções, que é a mesma
dos azuis e dos rosas caipiras dos quadros de Tarsila do Amaral.
A "ingenuidade" da visão é como que corrigida,
entretanto, pelo uso do sarcasmo e pela exploração
dos ridículos da sociedade brasileira. Um "ufanismo
crítico", disse Roberto Schwarz em sua análise
da poesia "Paul-Brasil". O intimismo sentimental e autobiográfico
é também corrigido pelas acrobacias, pelas experimentações,
pelas obscenidades, na prosa de "João Miramar"
e de "Serafim Ponte Grande". O "estado de inocência",
o "ver com os olhos livres", defendidos pela estética
oswaldina, iriam resguardar-se dos ricos de um excesso de ingenuidade
graças ao sarcasmo mais agressivo. Constituiu-se, assim,
o mais exemplar "enfant terrible" do modernismo. Daí
para transformar Oswald de Andrade em guru vai uma grande distância.
|