OSWALD DE ANDRADE FOI DEVORADO NUM CULTO BANAL

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira 26 de dezembro de 1990


MARCELO COELHO
Da equipe de articulistas

O centenário de nascimento de Oswald de Andrade (1890-1954) deu forma oficial a uma espécie de culto religioso. O culto a Oswald de Andrade pode ser tão tolo quanto o culto a Ruy Barbosa. Oswald de Andrade transformou-se num logotipo para acontecimentos patrocinados pela Secretaria da Cultura. Ele, o irreverente máximo, inspira a reverência.
"Ôswald": na pronúncia incorreta do nome, forma-se uma boca oval de admiração basbaque. O certo é falar "Oswald"; mas seguir essa recomendação já surge como sinal de pedantismo. Enquanto isso, "Oswald de Andrade" é até o nome de um colégio em São Paulo. Nome de colégio... Ironicamente, Oswald transformou-se de tabu em totem. O antropófago foi devorado pela banalização.

O pior é que, para manter-se o totem de pé, insiste-se na sua condição de "maldito", de "transgressor", de "rebelde". Mas o respeito à rebeldia é uma contradição em termos. O culto aos iconoclastas é, na verdade, sintoma de esgotamento cultural. Os modernistas de 1922 enfrentaram heroicamente as convenções da época; nada mais convencional e menos heróico, hoje em dia, do que voltar ao eterno elogio do "inconformismo" que marcou aquela época. Era preciso combater a linguagem bacharelesca, o preciosismo gramatical, as artificialidades da oratória, a verborragia brasileira, em favor de uma apreensão mais pura, mais rápida, mais concreta do mundo moderno —o mundo moderno, tal como era visto em 1922: com seus bondes elétricos, fonógrafos, chevrolets, fox-trotes e maxixes...

O fato é que as regras gramaticais, a lógica cartesiana, as valsas antiquadas e os poemas de Bilac se perderam na noite dos tempos não tanto por terem sido substituídos por formas mais complexas de expressão —esta era a utopia do modernismo— , mas principalmente em razão de um naufrágio educacional e cultural generalizado. Logo chegará o dia em que, para o ginasiano médio, Casimiro de Abreu será tão incompreensível, dissonante e "hermético" quanto os poemas dadaístas de Tristan Tzara. Coelho Neto e Oswald de Andrade, Ruy Barbosa e Carlos Drummond correm o risco de estar atualmente do mesmo lado, confundidos numa coisa só, diante de barbárie absoluta.

Oswald de Andrade e os modernistas correm um risco suplementar: o de, pelo fato de terem atacado o convencionalismo e a retórica passadista, serem tomados como heróis e fiadores de um processo de destruição cultural sem limites, onde o mero analfabertismo passe a ser visto como ato legítimo de "transgressão" e de "autenticidade".

Vende-se nas bancas um livrinho intitulado "O Pensamento Vivo de Oswald de Andrade", a capa é de péssimo gosto, a contracapa anuncia: "Estes homens mudaram o modo de pensar da humanidade ": ao lado de Oswald, há volumes dedicados a John Lennon, Marx, Chaplin, Nietzsche, Buda, Gandhi e Guevara. Faltariam talvez, nessa "geléia geral", Allan Kardec, ou Omar Cardoso, ou a Mãe Menininha do Gantois. Para não dizer Chacrinha. O livro, aliás, até que é bem feito: há uma introdução biográfica bastante sóbria, seguida das frases e pensamentos de Oswald.

Os pensamentos —a defesa do matriarcado, a influência de Engels e de Bachofen, as tiradas disciplinadamente marxistas do tempo em que Oswald foi "militante"— só contribuirão, certamente, para tumultuar tudo ainda mais. Já as frases de Oswald garantem-lhe a fama. A presença de Oswald de Andrade na cultura brasileira se faz como que a despeito de sua obra —sabidamente desigual e cheia de tropeços. Não é fácil lembrar de um poema ou de um trecho literário de Oswald, como ocorre com Drummond, Manuel Bandeira ou Fernando Pessoa; o que se grava na memória são algumas frases: "a massa ainda correrá o biscoito fino que fabrico" e, principalmente, "tupi or not tupi, that's the question". O trocadilho é verdadeiramente genial. As tiradas polêmicas, as gozações, as respostas engraçadas compõem, até hoje, o principal na figura de Oswald de Andrade.

Produziu-se um fenômeno interessante. Primeiro, Oswald não foi levado a sério: gozador, sátiro, embrulhão, trocadilhista, grã-fino, militante do PC, era visto como uma figura folclórica e curiosa. Mesmo Mário de Andrade, que não estava isento da tentação de "épater le bourgeois", escreveu certa vez que Oswald era "um improvisador sem tese", com "admiráveis qualidades de 'clown'".

Surgiu depois o movimento inverso. A piada oswaldina sacralizou-se; o "tupi or not tupi" ganhou uma profundidade de oráculo; a blague deixou de suscitar risadas, produzindo olhares arregaladas de admiração. Mais do que cultuar o lado corrosivo e "demolidor" de Oswald, interessaria ver o que, na verdade, motivava o seu sarcasmo. A graça instantânea de algumas frases e poemas seus está em ridicularizar as formalidades literárias, as pretensões pomposas do discurso dominante no Brasil dos anos 20. Chamar Ruy Barbosa de "uma cartola na Senegâmbia", por exemplo, é explorar o contraste entre o Brasil real - selvagem, inculto - e o mundo das ilusões "civilizadas" em que transitava sua elite. A cidade de São Paulo, orgulhosa de sua "prosperidade" e de seu "progressismo", ridiculamente convivia com o "atraso" tropical. Do mesmo modo, a linguagem bacharelesca e as preocupações com a correção gramatical opunham-se, numa luta inglória, à fala cotidiana da população.

Seria preciso lançar sobre a realidade brasileira um olhar "novo", "puro", livre de ilusões. "Aprendi com meus filho de dez anos/ Que a poesia é a descoberta/ Das coisas que eu nunca vi." Descoberta do Brasil, registro fotográfico das cenas urbanas, reprodução da linguagem coloquial, abertura para as sensações de um mundo exterior "dinâmico" e "vibrante" com seus automóveis e aeroplanos: há uma espécie de euforia visual nos poemas modernistas, e a referência de Oswald a seu "filho de dez anos" revela a busca de uma pureza infantil de percepções, que é a mesma dos azuis e dos rosas caipiras dos quadros de Tarsila do Amaral.

A "ingenuidade" da visão é como que corrigida, entretanto, pelo uso do sarcasmo e pela exploração dos ridículos da sociedade brasileira. Um "ufanismo crítico", disse Roberto Schwarz em sua análise da poesia "Paul-Brasil". O intimismo sentimental e autobiográfico é também corrigido pelas acrobacias, pelas experimentações, pelas obscenidades, na prosa de "João Miramar" e de "Serafim Ponte Grande". O "estado de inocência", o "ver com os olhos livres", defendidos pela estética oswaldina, iriam resguardar-se dos ricos de um excesso de ingenuidade graças ao sarcasmo mais agressivo. Constituiu-se, assim, o mais exemplar "enfant terrible" do modernismo. Daí para transformar Oswald de Andrade em guru vai uma grande distância.


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