Nelson
Ascher
Da equipe de articulistas
O Brasil é um país católico. Zombar da Igreja
ou criticá-la abertamente não pega bem. Pega mal,
aliás, desde que a Santa Madre fez sua "opção
preferencial pelos pobres", até mesmo (ou principalmente)
na esquerda. Quem tentasse explicar o porquê disso a anarquistas
catalães ou italianos teria sérias dificuldades. A
obra máxima da língua portuguesa. "Os Lusíadas",
foi severamente filtrada e corrigida pela Inquisição.
Nas mãos da mesma, um dos primeiros poetas a escreverem no
país, o cristão-novo Bento Teixeira, quase virou torresmo
pelo menos duas vezes.
Não deixa de ser surpreendente quão comportada e deferente
(ou, se tanto, indiferente) tem sido a literatura nacional quando
trata da Igreja Católica. Nesse aspecto, seu melhor símbolo
é o modernismo carola de Mario de Andrade, cuja iconoclastia
nunca chegava à sacristia. Afortunadamente, há uma
contracorrente que principia, em grande estilo, com Gregório
de Matos que, por não dar muita paz às confrarias
de frades e freiras, carrega até hoje o estigma de maldito.
Os ataques mais contundentes à Igreja vêm, com frequência,
não tanto de ateus, agnósticos ou seguidores de outra
fé, quanto de ex-católicos desencantados. Oswald de
Andrade havia sido profundamente religioso na juventude, de modo
que, ao abandonar o catolicismo, tornou-se o mais virulento anticlericalista
das letras brasileiras. Essa posição aparece em vários
momentos de sua obra, notavelmente no prefácio definitivo
ao "Serafim Ponte Grande". Agora enfim foi publicado,
no volume "O Santeiro do Mangue e Outros Poemas", seu
longo poema dramático inédito, onde o anticlericalismo
atinge a causticidade absoluta.
O poema se desenrola no Mangue, a antiga zona de prostituição
do Rio de Janeiro e sua principal personagem é a jovem meretriz
Eduléia. A obra mistura mistério medieval e interlúdio
renascentista com uma "Walpurgis Nacht" goetheana. Mais
do que a estrutura dramática - que mereceria ser testada
no palco -, seu forte é a linguagem. Esta, de tão
intensa e contida, exata e delirante, redime o poema do que ele
tem de menos palatável, a camisa-de-força de sua demagogia
marxista. Quando, perto do final, depois do coro que repete "Hosana/Banana",
"Jesus das Comidas ergue o camisolão e urina sobre o
soluço do Mangue", pode-se constatar facilmente que
Luis Buñuel achou seu compadre brasileiro e que "O Estranho
Caminho de Santiago" leva, no Brasil, não a Compostela,
mas ao Mangue.
"O Santeiro do Mangue" foi iniciado nos anos 30 e alcançou
sua forma atual em 50, quatro anos antes da morte do autor. É
cronologicamente sua última obra importante. O volume estampa
também o "Cântico para Flauta e Violão",
"O Escaravelho de Ouro" e "Poemas Menores",
coletados anteriormente nas "Poesias Reunidas" de Oswald,
"Canto do Pracinha Só" (mau poema sobre o Brasil
na Guerra, mas não pior do que Drummond guerreiro em "A
Rosa do Povo") e "Anotações Poéticas"
são outros inéditos (em livro) sem maior importância.
A publicação de "O Santeiro do Mangue" não
muda radicalmente o lugar do poeta nas letras nacionais. Confirma,
contudo, as teses daqueles que viam em Oswald não uma espécie
de hippie anárquico (no mau sentido) da literatura e sim
um inovador consciente de suas tarefas e recursos. Os textos críticos
de Mário da Silva Brito, Francisco Alvim, Haroldo de Campos
e Vera Maria Chalmers, incluídos no volume, abrem perspectivas
para uma compreensão mais aprofundada dessa poesia.
Oswald parece ser fácil. Não é. É preciso
saber que, por exemplo, na sua poesia "Pau-Brasil" uma
espécie de epopéia residual sobre as origens míticas
e históricas do Brasil, um "Canto Geral" que, ao
contrário do de Neruda, deu certo. A estrutura deliberadamente
complexa de seu "Mistério gozoso, em forma de Ópera"
(subtítulo do poema) ajuda a decifrar as relações
que há entre suas peças de teatro, seus romances de
vanguarda e sua poesia, tornando, por sua vez, mais difíceis
as restrições precipitadas ao seu conjunto.
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