OSWALD DE ANDRADE MOSTRA SUA FÚRIA ICONOCLASTA


Publicado na Folha de S.Pauulo, sábado, 27 de abril de 1991


Nelson Ascher
Da equipe de articulistas

O Brasil é um país católico. Zombar da Igreja ou criticá-la abertamente não pega bem. Pega mal, aliás, desde que a Santa Madre fez sua "opção preferencial pelos pobres", até mesmo (ou principalmente) na esquerda. Quem tentasse explicar o porquê disso a anarquistas catalães ou italianos teria sérias dificuldades. A obra máxima da língua portuguesa. "Os Lusíadas", foi severamente filtrada e corrigida pela Inquisição. Nas mãos da mesma, um dos primeiros poetas a escreverem no país, o cristão-novo Bento Teixeira, quase virou torresmo pelo menos duas vezes.

Não deixa de ser surpreendente quão comportada e deferente (ou, se tanto, indiferente) tem sido a literatura nacional quando trata da Igreja Católica. Nesse aspecto, seu melhor símbolo é o modernismo carola de Mario de Andrade, cuja iconoclastia nunca chegava à sacristia. Afortunadamente, há uma contracorrente que principia, em grande estilo, com Gregório de Matos que, por não dar muita paz às confrarias de frades e freiras, carrega até hoje o estigma de maldito.

Os ataques mais contundentes à Igreja vêm, com frequência, não tanto de ateus, agnósticos ou seguidores de outra fé, quanto de ex-católicos desencantados. Oswald de Andrade havia sido profundamente religioso na juventude, de modo que, ao abandonar o catolicismo, tornou-se o mais virulento anticlericalista das letras brasileiras. Essa posição aparece em vários momentos de sua obra, notavelmente no prefácio definitivo ao "Serafim Ponte Grande". Agora enfim foi publicado, no volume "O Santeiro do Mangue e Outros Poemas", seu longo poema dramático inédito, onde o anticlericalismo atinge a causticidade absoluta.

O poema se desenrola no Mangue, a antiga zona de prostituição do Rio de Janeiro e sua principal personagem é a jovem meretriz Eduléia. A obra mistura mistério medieval e interlúdio renascentista com uma "Walpurgis Nacht" goetheana. Mais do que a estrutura dramática - que mereceria ser testada no palco -, seu forte é a linguagem. Esta, de tão intensa e contida, exata e delirante, redime o poema do que ele tem de menos palatável, a camisa-de-força de sua demagogia marxista. Quando, perto do final, depois do coro que repete "Hosana/Banana", "Jesus das Comidas ergue o camisolão e urina sobre o soluço do Mangue", pode-se constatar facilmente que Luis Buñuel achou seu compadre brasileiro e que "O Estranho Caminho de Santiago" leva, no Brasil, não a Compostela, mas ao Mangue.

"O Santeiro do Mangue" foi iniciado nos anos 30 e alcançou sua forma atual em 50, quatro anos antes da morte do autor. É cronologicamente sua última obra importante. O volume estampa também o "Cântico para Flauta e Violão", "O Escaravelho de Ouro" e "Poemas Menores", coletados anteriormente nas "Poesias Reunidas" de Oswald, "Canto do Pracinha Só" (mau poema sobre o Brasil na Guerra, mas não pior do que Drummond guerreiro em "A Rosa do Povo") e "Anotações Poéticas" são outros inéditos (em livro) sem maior importância.

A publicação de "O Santeiro do Mangue" não muda radicalmente o lugar do poeta nas letras nacionais. Confirma, contudo, as teses daqueles que viam em Oswald não uma espécie de hippie anárquico (no mau sentido) da literatura e sim um inovador consciente de suas tarefas e recursos. Os textos críticos de Mário da Silva Brito, Francisco Alvim, Haroldo de Campos e Vera Maria Chalmers, incluídos no volume, abrem perspectivas para uma compreensão mais aprofundada dessa poesia.

Oswald parece ser fácil. Não é. É preciso saber que, por exemplo, na sua poesia "Pau-Brasil" uma espécie de epopéia residual sobre as origens míticas e históricas do Brasil, um "Canto Geral" que, ao contrário do de Neruda, deu certo. A estrutura deliberadamente complexa de seu "Mistério gozoso, em forma de Ópera" (subtítulo do poema) ajuda a decifrar as relações que há entre suas peças de teatro, seus romances de vanguarda e sua poesia, tornando, por sua vez, mais difíceis as restrições precipitadas ao seu conjunto.


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