BARDI E OS PINTORES ESQUECIDOS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 29 de junho de 1975
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A semana de 22 foi coisa de ricos, os pintores de parede,
menos afortunados, os pintores de arrabalde, ficaram de fora. O
pessoal grãfino da Semana e basta dizer que René Thiller era
secretário do movimento... deixou de fora um Reis Jr., um
Visconti, um Volpi, e tantos outros. Por isso proponho um debate
objetivo revisionista de 22, convocando para tal críticos, jornalistas,
historiadores, sociólogos, artistas, todos que se interessem pela
nossa cultura, mas cultura com C maiúsculo, não a dos versos de
Guilherme de Almeida. Por isso, também, o Museu de Arte de São Paulo
passou a se interessar, de uns tempos para cá, nesses pintores de
80 anos, esquecidos desde 1922, mas cuja produção é da melhor qualidade
como, por exemplo, Perissinoto, Zorlini, Angelo Simeone, Inocêncio
Borghese, R. Galvez, Waldemar Belisário e outros.
O prof. P. M. Bardi emerge com seu dinamismo peninsular da montagem
da "Festa Brasileira" no MASP, uma exposição de 12 artistas ingênuos
e primitivos, que lhe sugerimos há dois anos.
Os 70... anos parecem sempre estar revigorados, nesse "anima e cuore"
das artes em nossa terra. Bardi continua, sem papas na língua, com
o sotaque milânes que os quasi 30 anos de Brasil não esconderam:
Êsses pintores de 80 anos, verdadeiros operários da pintura,
eu os estimo com velhos artistas, mas, também, como artistas que
vão ao campo e armam seus cavaletes, resumindo num painel a impressão
da natureza. São e conservam-se fiéis à sua arte e ao seu assunto.
Não são compiladores de longos currículos, não se apegam aos modismos
que se jogam nas bienais com as etiquetas da moda corrente em Nova
Iorque, não fazem essa dita arte conceitualista. Participam de um
grupo e de uma espiritualidade honesta e, por isso, o Museu de Arte
os homenageia frequentemente com exposições e retrospectivas. Bardi
está querendo reformular o Museu, com têmpera e ação.
O MASP vai ter, afinal, uma lanchonete e vai abrir à noite. O novo
presidente do Conselho de Orientação, ex-governador Roberto Sodré,
tem outras idéias de reprovação, que coincidem com as de Bardi.
O professor atende assessores e jovens estudantes, já volta à contundência
verbal que sempre o caracterizou: Expusemos agora o Waldemar
Belisário, que fui buscar na Ilha Bela, pintando com rara disposição
e conhecimento, belas paisagens litorâneas. Ele foi discípulo de
Ficher Elpons, tendo também aproveitado algumas aulas de sua irmã
de criação Tarsila do Amaral. Cursava à noite, o Liceu de Artes
e Ofícios, recebendo aulas do prof. Enrico Vio. Ele foi um dos organizadores
do I Salão Paulista de Artes Plásticas, no Palácio das Indústrias,
em 1922, que cedeu, com muito custo, uma sala para essa finalidade.
Devo dizer que naquela época não havia galerias de arte na cidade
e só pintor rico conseguia, com muito dinheiro, alugar uma sala
para expor. Pois o Belisário expôs aqui no Museu, vendeu bem, teve
apoio da crítica e do público. Por que a Universidade, os críticos,
os pesquisadores, não entrevistam o Belisário, o Borghese e tantos
outros pintores esquecidos das nossas artes? Por que não se faz,
afinal, a revisão de 22 e do nosso modernismo?
Expondo-os, atraindo as vistas do público para os belisários, borgheses,
persissinotos, simeones, zorlinis e tantos outros, acho que o Museu
de Arte paga um pouco do que São Paulo deve a eles todos, que lutaram
pela cultura do país e foram desumanamente esquecidos.
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Belisário: Fizemos Um Outro
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"A Semana de Arte Moderna de 22 foi feita pela turma que tinha
dinheiro. Nós, os pintores de arrabalde, os pintores de domingo,
não pudemos participar desse movimento. Ficamos de fora. Organizamos
e fizemos, porém, o I Salão Paulista de Artes Plásticas, no Palácio
das Indústrias. Foi a maneira que encontramos para participar da
renovação artística de então e à qual muitos de nós se conservam
fiéis até hoje."
Waldemar Belisário completa 80 anos dia 20 de setembro. Ao lado
de sua mulher, também pintora, Celina Guimarães, Waldemar está no
Museu de Arte de S. Paulo, no mezzanino do porão, onde esse velho
pintor paulista, nascido a 20 de setembro de 1895, na rua Visconde,
hoje avenida Rio Branco, expõe 40 telas a óleo datadas de
1922 a 1975.
O prof. Bardi, que foi buscar em Ilha Bela, onde vive retirado e
dedicado à pintura e ao folclore, Aracy Amaral, Mário Schemberg,
Volpi, Charoux, Niobe Xandó e Maria Bonomix, entre outros, deixam
no livro de registros palavras de espanto e encantamento para a
obra pictórica de Belisário.
Waldemar Belisário, filho de Antônio Pellizari e Fortunata Pelizzari,
italianos naturais de Vincenza, tendo sido seu pai um artista virtuose
em marchetação e escultura em madeira e restaurador de móveis e
peças antigas, diz ter passado sua adolescência na Europa, entre
Itália, França e Alemanha, onde desenvolveu seu pendor pelas artes
em convívio com artistas e museus. Seu contato com os modernistas
foi evidente:
Fui discípulo aqui no Brasil de Ficher Elpons, tendo também
aproveitado algumas aulas de Pedro Alexandrino no ateliê de Tarsila
do Amaral, minha irmã de criação, pois seus pais, os Estanislau
do Amaral, eram meus padrinhos de batismo. A noite, eu cursava o
Liceu de Artes e Ofícios, recebendo aulas de desenho do prof. Enrico
Vio. Mas, voltemos à Semana de 22. A turma que fez o movimento,
tinha dinheiro... O movimento começou lá por 1921, fiquei a par
de tudo, conheci o Graça Aranha no ateliê de Tarsila e ele falava
muito no modernismo e na organização dessa Semana de Arte Moderna.
Depois, ela foi para Paris, e não participou da Semana no Teatro
Municipal e eu fiquei aqui, trabalhando, estudando e pintando.
Conta Belisário que, deflagrado o processo de 22, percebeu logo
não ter recursos para participar do movimento. Naquela época, pintores
como ele, não vendiam quase nada. "O artista era considerado um
pária. Ninguém conseguia uma sala para expor, só os pintores ricos...
Não havia galerias de arte. E no entanto diz Belisário com
um laivo fui colega de Jenny Klabin, de Maria, filha de Washington
Luis, e de gente importante, no curso de Elpons... Mas o grupo principal
de pintores e artistas, que se consideravam modernistas e revolucionários,
como Oswald, Mário, Menotti, Guilherme e outros, eram os que dominavam,
eram ligados aos ricos e poderosos de então. Que fazer?"
Belisário, ali no Museu, entre suas telas de elaborada técnica,
vai contando:
"Resolvi fazer um Salão de Arte de S. Paulo, foi idéia minha
e do Manzo, também pintor. Organizamos o Salão a muito custo e conseguimos
realizar o I Salão Paulista de Artes Plásticas no Palácio das Indústrias,
que cedeu, com muito custo, uma de suas salas, no prédio da Várzea
do Carmo. Talvez meus estudos com Elpons e Vio, talvez o fato de
que tivesse ganho, em 1916, um prêmio no Salão Nacional de Belas
Artes do Rio de Janeiro, tivessem influido para que, em torno de
mim, se congregasse um grupo de artistas, que participou do I Salão.
Os pintores e escultores que participaram foram, além de mim, que
fui o melhor sucedido, vendendo 5 telas, do total de 10 vendidas,
Bernardino, Ataíde, Cozzo, Agostini, Larocca, Lombardi, Pavan, Prado,
Rossi Osir, Perissinoto, Tarquínio, Angelo Simeone e outros.
Explica Waldemar Belisário que o grupo tinha uma certa unidade,
além da principal, que era o de serem artistas pobres. A tendência
do grupo não era o modernismo avançado dos de 22, justamente, em
muitos pontos, o contrário. Eram mais ligados por serem artesãos
do ofício de esculpir ou pintar, unicamente.
"Éramos quase todos pintores de domingo, pintavamos paisagens, figuras,
naturezas-mortas, tudo... O Volpi já era pintor de paredes,
como tantos deles, que vieram depois, como o Zanini e o Rebolo também
eram e não sei porquê não aderiu logo a nós. Eramos sim paisagistas
de arrabalde, eramos empreiteiros e caiadores de casa. Ganhávamos
a vida assim".
"O público compareceu escassamente diz Belisário
ao I Salão. Não tivemos crítica, apenas o único que compareceu,
foi Monteiro Lobato, que fez uma critica no "Revista do Brasil".
Mas se a repercussão não foi muita, como a da Semana de Arte Moderna,
o resultado moral foi extraordinário, pois iniciamos o movimento
de conjunto, para realizar uma arte fiel que representasse S. Paulo
e seus verdadeiros valores e ainda conseguimos arrebanhar muitos
pintores que estavam esquecidos e que ingressaram em nosso grupo
depois, nos anos das décadas de 20 e 30. No correr dos anos, tivemos
pouca ligação com os revolucionários de 22, todos ficaram famosos,
tinham possibilidade de promoção dos críticos e dos jornais.
E assim foi. Conta que o pessoal participante do I Salão, obteve
frutos: Cozzo
foi para o Rio, Bernardino para Itanhém, Rossi Osir fez um grupo
e até uma firma, a Oziarte, onde trabalharam Zanini e Volpi. Muitos
deles, frequentaram o Santa Helena, "mas muitos que dizem terem
estado lá, na verdade nunca estiveram naquele ateliê de verdadeiros
pintores paisagistas e do natural".
Entre eles, recorda-se, figuravam o Rosa, Saia, Pennacchi, Rebolo,
Zanini, Volpi e Manuel Martins. Quanto a ele, Belisário, em 1930,
foi candidato ao Prêmio Viagem à Europa, tinha a proteção de Olivia
Guedes Penteado e Julio Prestes... Iria certamente na primeira vaga
como adido à Embaixada da França ("como o Graciano hoje"), mas "Getúlio
resolveu amarrar o cavalo no Obelisco, Prestes foi barrado e fiquei
a ver navios... Em S. Vicente, pintei um quadro com esse tema, conheci
Martins Fontes, que me induziu a conhecer a Ilha Bela, onde conheci
a professora Celina Guimarães, também pintora, e onde resido alternadamente
com a Capital, desde 1930. Entrementes, expús em Santos, Porto Alegre,
São Paulo, ganhei prêmios, participei da I Bienal e realizei exposições
na Domus, com Celina, Waldomiro Siqueira, Di Preti e Wladislav,
e na Seta, em 1970".
Belisário conta outros lances de sua vida de pintor e apaixonado
do folclore da Ilha Bela, que procura retratar em suas telas, além
das paisagens da Ilha, que considera paradisíaca. Entre 1941 e 1964
viveu em S. Paulo, participando de exposições e lecionando na Escola
Britânica e no Ginásio do Estado. Na Ilha Bela, há pouco tempo,
surge-lhe à frente a figura do Prof. Bardi, procurando pelo "pintor
da Ilha". Era ele. Bardi conheceu então e se admirou
a sua pintura. Comprou uns quadros. E convidou para essa individual-retrospectiva
no MASP.
"Aqui estou, pois, no limiar dos 80 anos, achando-me o mais velho
dos pintores vivos, mais velho mesmo que o Volpi, que ainda não
chegou aos 80".
"Comprei tintas em S. Paulo, revi os amigos, e não vejo a hora
de voltar a Ilha Bela, estimulado, reconfortado para pintar a minha
pintura onde procuro ser autêntico, ser natural, reviver o nosso
folclore, a nossa arte, o nosso povo e seus temas".
Belisário não terminou ainda, faz uma profissão de fé, as luzes
do Museu estão prestes a se apagar.
Acho que valeu a pena a nossa luta. Acho que o artista deve
se renovar cotidianamente, de acordo com seu estado de espírito.
Sou contrário à pintura repetida, estandartizada, que se plagia
a si própria. Sempre fui sincero com a minha emoção, eis tudo. Respeitei
os antigos, como Gauguin, Cezànne, Van Gogh, os modernistas como
Matisse, Vlaminck, Rovanlt e outros. No Brasil, minha admiração
vai a uns poucos pintores, não desejo desgostar ninguém, mas destaco
apenas Portinari com excepção das influências que recebeu
e o Volpi dos anos 30. E claro, meus colegas paisagistas e pintores
do natural, dos arrabaldes e das marinhas, capazes de pintar com
emoção a atualidade.
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Alguns
Esquecidos
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"Waldemar Belisário, uma figura da Escola Paulista que deverá ser
admirado", Mário Schemberg.
"Uma
surpresa! Sempre é tempo para se conhecer um artista que embora
meio-escondido aparece para nos comunicar sua personalidade inconfundível".
Aracy Amaral.
"Inocêncio
Borghese é um operário da pintura, um dos últimos que vai ao campo...
quando o velho Borghese conta suas aventuras, abrem-se as páginas
dos anos faroésticos de S. Paulo... Aluno de Salvatore Parlagreco,
Borghese conviveu com o grupo de pintores que formou a elite do
academismo nacional, desde Parreiras e Carlos Oswald, Batista da
Costa e Luiz Graner." P. M. Bardi.
"R.
Galvez, que atuou na época do Santa Helena, com ativa participação
nos movimentos artísticos dos anos 30 e 40, é um excelente pintor
e escultor que deverá interessar aos pesquisadores da estética da
época. Expõe agora, após 32 anos, na Praça Roosevelt, Galeria Portinari,
a partir de 3 de julho". T. Harumi.
"Angelo
Simeone, criança, veio ao Brasil. Seus pais eram imigrantes que
deixavam Cápua... Em Simeone parecem florescer traços desse meridionalismo.
No início foi pintor de parede. Outros colegas seus também produziram
nesse ofício e também foram admiráveis. Angelo Simeone é bem um
exemplar oposto a esse careirismo desenfreado que por aí campeia...
Um dia, como Volpi e outros, de pintor de paredes, passou à pintura
de cavalete... aí colocando a chama do seu espírito." Paulo Mendes
de Almeida.
"Ottone Zorlini, eis um outro artista que se deve associar ao grupo
Santa Helena. Ia a campo com Volpi e Zanini. Os três são da mesma
família, provocavam uma expressão livre e franca... Quando pinta
é artista de outro calibre: pinta para o gosto de fazer impressões
exclusivamente para si mesmo; vocação de "petit-maitre" da paisagem,
captador de atmosferas, de horizontes agitados de tempestades, de
ambientes aldeianos, praias e montanhas. O Museu de Arte o homenageia
com esta comunicação". P. M. Bardi.
"Perissinoto,
contemporâneo de Bonnard e Vailard que então faziam suas rotas pela
França ensolarada, impressionistas ainda, seguindo os ensinamentos
dos mestres Corot e Monet, eis o artista percorrendo o Centro-Sul
do Brasil, elaborando, sobre uma realidade, toda sua fantasia."
Renato Magalhães Gouveia.
"Filho
de construtor, Perissinoto veio menino da Itália. Começou a pintar
por vocação... Perissinoto com seu grupo, e mais tarde os santhelenistas,
seguiram os modos franceses... Corot ou Cézanne foram, também, operários
dessa categoria: acharam o meio de juntar à história da pintura
uma expressão nova, de alto valor." P. M. Bardi.
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