TEXTO INÉDITO REVELA UMA OUTRA ANITA MALFATTI
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Publicado
na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 15 de março de 1982
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Nogueira Moutinho
A passagem do 60° aniversário da Semana de Arte Moderna
vem sendo um saudável pretexto para o aparecimento de entrevistas,
análises, debates e documentos relativos aos famosos "sete
dias que abalaram as artes". Figura da maior importância
em nossa criação plástica, cultora do expressionismo
bebido na Alemanha nas lições de Lovis Corinth, violentamente
atacada por Monteiro Lobato ao expor pela primeira vez em 1917,
Anita Malfatti só agora, graças às pesquisas
e às análises de Marta Rossetti Batista esta começando
a ser avaliada em sua real estatura. Acredito, por esse motivo,
que a revelação de uma face desconhecida de seu talento
criador constitua fato da maior pertinência, não só
por tratar-se da artista excepcional que é, como também
por acrescentar ao acervo documental de nosso primeiro modernismo
peça inédita, que certamente merecerá dos especialistas
a análise que reclama. Retiro-me a um texto escrito de Anita
Malfatti, página que se poderia classificar de poema em prosa
ou de devaneio lírico, intitulada "O Anjo Fardado",
e que me foi generosamente comunicada pelo escritor Mucio Porfirio
Ferreira. Detentor desse autógrafo da pintora há muitos
anos, decidiu ele, nesta passagem do 60° aniversário
da Semana, doá-lo ao Museu da Imagem e do Som, enviando-me,
gentilmente, cópia xerográfica do curiosíssimo
texto, reproduzido abaixo na íntegra.
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O
Anjo Fardado
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"O bonde estava cheio de amargar! Três horas, crianças
voltando da escola carregadinhas de livros e pastas, operários
empurrando com força, mulheres com pequenos nos braços,
embrulhos de todo o jeito: outros se espichando por cima da gente
para dar o sinal de parada, e por cúmulo um calor de rachar.
Consegui me sentar num lugar no começo do "camarão".
Desviava os empurrões escondendo a cabeça como podia
De repente, pronto, a coisa mudou! Uma paz gostosa
envolveu a mexida, e a beleza entrou fardada e sentou na minha frente
do outro lado do bonde. Ah! se eu pudesse... se tivesse tempo...
Comecei a querer vê-lo pela frente... não era possível,
retorci-me toda... vi-o de três quartos, só por segundos...
e acabei contentando-me a vê-lo pelas costas. Assim mesmo
tudo era perfeito... desenhava aflita... pensava... não dá
tempo para pintar... e continuava escolhendo as cores. Os ocres
esverdeados, certos azúis, mais verdes, um pouco de carmim
para esquentar o tom, mais azul para afastar os planos... Ah! não
dava tempo, mas sim preciso continuar... e continuava meu trabalho.
"As costas do modelo começaram a se movimentar formando
um sulco diagonal que ia do ombro perto da gola até o cinturão
do oficial. Me lembrei depressa que o retratado nunca deve estar
cônscio do interesse que desperta, tentava não fitá-lo,
mas o tempo acabava, o bonde chegava à praça e eu
continuava na faina. Havia galões de ouro, verdes e azuis
no boné com a borda toda listadinha, nos ombros torcidinhos
de galões dourados e outras coisinhas, nos punhos, credo,
eram tantos que não dava mesmo tempo. Como é que eu
faço, meu Deus, não consigo. O cabelo pretíssimo,
glostorado, aí, preciso misturar o carmim com o preto, senão
não consigo o ultrapreto; agora sim, era o rosto meio virado
para mim, todo inquieto, o que eu não queria: é o
nosso moreno paulista, as mãos estou vendo agora mais morenas,
mais um pouco de siena queimada, o rosto mais um nadinha do verde-terra
no ocre. O bonde parou! Saio ou não saio... Praça
Marechal Deodoro! Deram o sinal, o bonde estrepitou e parou, fico
ou não fico... nisto meu modelo se levanta, olha para mim
esquisito e vai saindo, olhando sempre para trás e eu atrás
da visão. Aí sim! Aproveitei pra pintar os galões,
os vermelhões, os ultramares e cromos com verdes de esmeralda!!
Eu estava na esquina da praça. A maravilha num instante atravessara
a praça e eu atrás encantada.
Então, no meio da confusão medonha, vi o quadro perfeito,
de pé, parado, no meio do jardim ao lado da estátua.
Percebi que me achava no meio de rodas de caminhões, de carros,
bicicletas e de gente gritando, um horror, quando vi a visão
voltar e dirigir-se em minha direção correndo, no
meio da confusão, do tremendo movimento! Me agarra pela mão
e começa a me puxar e me convencia dizendo: por aqui, rodeie
o caminhão, não se afobe, passe atrás do auto,
abaixe-se mais sobre o pára-lama e aos poucos o espaço
se abria e não sei como foi que me achei sã e salva
na calçada do largo. De novo perto das florzinhas do canteiro
com ambas as mãos segurando no meu rosto, abaixou-se um pouco
e disse: "É demais de distraída. Notei isto quando
entrei no bonde... quase morreu, sabe?" Eu não tinha
percebido nada! Não vira perigo algum, não podia dizer
nada. O anjo fardado de novo desaparecera assim de repente no meio
do canteiro das florzinhas. O que sim desconfio até hoje,
é que o anjo fardado era paulista!"
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Uma
escrita visual
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Sem revelar veleidade literária alguma, antes, redigido com
espontaneidade e despretensão, esse pequeno relato de Anita
Malfatti impressiona à primeira vista por seu caráter
eminente visual, plástico. O sensorial domina totalmente
o racional, o lógico, dando lugar ao desenvolvimento de uma
escrita organizada segundo critérios puramente pictóricos:
anônimo, sem indicação alguma de autoria, qualquer
leigo seria capaz de adivinhar sob esse texto a mão de um
artista plástico.
Resta especular sobre a origem da cena descrita. Experiência
empírica vivida pela pintora numa tarde paulistana, possivelmente
na década de 40, ao longo de uma viagem de "camarão"
até a praça Marechal Deodoro? Ou anotação
vivida, de um jato, de algum sonho particularmente impressivo? O
tom meio onírico do relato inclina-me a escolher a segunda
hipótese, embora nada impeça que a pintora tenha projetado
num sonho algum incidente efetivamente sofrido por sua sensibilidade.
Por outro lado, instigante, o texto oferece outras pistas a serem
decodificadas: as alusões ao "paulistismo" do personagem,
sua identificação com um "anjo" terão
raízes no caráter reivindicatório da Revolução
Constitucionalista de 32? É dispensável uma referência
ao tradicional alheamento dos paulistas em relação
à carreira das armas: não seria o "anjo fardado"
a sublimação de algum trauma no inconsciente dessa
artista muito mais complexa, muito mais profunda, muito mais rica
do que se pensou até agora, e que se chama Anita Malfatti?
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